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A história das bibliotecas

Sala de leitura da Biblioteca Nacional da China / Foto:  Reprodução
Sala de leitura da Biblioteca Nacional da China / Foto: Reprodução

Por: HERBERT CARVALHO

Na maioria das línguas indo-europeias a palavra “biblioteca” pode referir-se tanto a coleções de livros quanto ao lugar que os abriga. Estes surgiram junto com a escrita, na Mesopotâmia Antiga, e se multiplicam até hoje, no século 21, principalmente em países emergentes como a China, acompanhando a edição de livros físicos que continua a crescer, apesar do advento da internet. Apenas no Reino Unido foram vendidos 229 milhões de livros em 2010, um aumento incrível em relação aos 162 milhões comercializados em 2001.

A ideia de contar a história das bibliotecas do ponto de vista da arquitetura, analisando a trajetória da evolução dessas edificações ao longo dos séculos, ocorreu ao arquiteto e historiador James W. P. Campbell quando ainda era estudante e precisou pesquisar o tema. “Comecei procurando um livro que cobrisse toda a história da arquitetura de bibliotecas. Vinte anos depois, ainda sem encontrar um livro assim, senti que me era permitido escrevê-lo”, explica o autor no prefácio de A Biblioteca – Uma História Mundial, que as Edições Sesc São Paulo oferecem ao público brasileiro com tradução de Thais Rocha.

A obra pertence a uma categoria à parte, dada sua ambição e escopo. Como qualquer livro dessa natureza dependeria inteiramente de ilustrações, Campbell teve como parceiro na empreitada e coautor o fotógrafo Will Pryce, especializado em clicar edificações e seus interiores, representando com clareza a atmosfera dos ambientes retratados. Juntos, viajaram pelo mundo, visitando e documentando cerca de 80 bibliotecas, apresentadas em riqueza de detalhes nas 330 páginas protegidas por capa dura e guarda, que mostra O Salão Filosófico do mosteiro de Strahov, construído em 1797 em Praga, na República Tcheca (capa) e a Biblioteca Nacional da China, erguida em Pequim, em 2008 (quarta capa).

O resultado é uma obra de referência, que destaca as melhores bibliotecas não apenas como repositórios de livros, mas de conhecimento, de criatividade e de contemplação, simbolizando algumas das maiores conquistas da humanidade em matéria de cultura e civilização.

O primeiro dos oito capítulos do livro pesquisa os “começos perdidos” das bibliotecas da Antiguidade que desapareceram, deixando apenas relatos ou vestígios arqueológicos. Nos quatro mil anos compreendidos entre 3400 a.C., quando surge o alfabeto, até a queda do Império Romano, em 600 d.C., formaram-se as instituições que caracterizam a civilização ocidental, inclusive os tipos de bibliotecas existentes hoje, como as acadêmicas, as públicas e as particulares.

A importância da Ásia

Inventada para registrar as transações financeiras dos povos mesopotâmicos, a escrita era feita em pequenas tábuas de argila ou pedra que, armazenadas em arquivos, constituíram as primeiríssimas formas de bibliotecas. Em 1975, arqueólogos que escavaram o palácio da antiga cidade de Elba, na Síria (nas imediações da atual Alepo), descobriram uma sala contendo pequenos fragmentos e partes maiores de 15 mil tabuinhas originais que ainda estavam em suas prateleiras quando o local foi incendiado por invasores, entre 2300-2250 a.C.

A maior biblioteca da Mesopotâmia Antiga foi a do rei assírio Assurbanipal, em Nínive, no atual Iraque, datada de 668-630 a.C., cujos vestígios foram descobertos no século 19 e se encontram no British Museum. Ela representou a primeira tentativa de coletar todo o conhecimento de forma sistemática e antecedeu em 300 anos a mais conhecida biblioteca de Alexandria, no Egito, que desapareceu sem deixar traços durante a ocupação romana. Testemunhos dizem que foi queimada durante os incêndios acidentalmente provocados por Júlio César em 48 a.C. O fogo, desde essa época, é o grande perigo que ronda as bibliotecas, ao lado de outros inimigos dos livros, como pó, umidade, mofo, insetos e vermes.

Melhor exemplo sobrevivente de prédio de biblioteca da Antiguidade, a biblioteca de Celso (135 d.C.) em Éfeso, na Turquia, teve suas ruínas preservadas e constitui um exemplo de edifícios semelhantes espalhados pelos romanos em seus domínios. Construída para celebrar o procônsul (governador) da província da Ásia, Tibério Júlio Celso Polemeno, tem a fachada ricamente decorada com relevos. À época da morte de Augusto, em 14 d.C., Roma tinha três bibliotecas públicas, das quais restam sinais apenas de uma, na colina Palatina, próxima ao Templo de Apolo.

Da queda do Império Romano até o Renascimento – entre 600 e 1500 d.C., aproximadamente – os manuscritos clássicos sobreviveram em coleções medievais abrigadas em monastérios, cujo exemplo mais emblemático, embora ficcional, é descrito por Umberto Eco em O Nome da Rosa. A arquitetura que o escritor menciona é livremente inspirada na famosa planta da Abadia de St. Gallen, Suíça, um documento que chegou aos nossos dias sem o consenso dos historiadores sobre a existência real, ou não, das salas labirínticas utilizadas pelos monges.

As maiores bibliotecas da Idade Média, porém, não estavam na Europa e sim na Ásia, o que se explica pelo fato do papel ter sido inventado na China. A impressão era feita em blocos de madeira, uma sofisticação tecnológica para a época. Na atual Coreia do Sul e no Japão ficam as mais antigas do período, com acervos ainda intactos de escrituras budistas. Em 1420, na China, a coleção imperial da dinastia Ming tinha 20 mil títulos e 100 mil volumes.

Elas sobreviverão?

Outras culturas que também tinham coleções muito grandes eram as do mundo islâmico, já que o nascimento do Islã foi o responsável por espalhar a escrita árabe pelo mundo. No Oriente Médio, norte da África e Espanha os livros eram escritos à mão, com tinta, encadernados entre placas de madeira e cobertos de couro. As três grandes bibliotecas do mundo medieval islâmico eram a Omíada (em Córdoba), a Abássida (em Bagdá) e a Fatímida (no Cairo), mas nenhum edifício islâmico desse tempo sobreviveu.

No Ocidente, o mais antigo espaço de biblioteca que manteve suas características e coleção originais está em Cesena, nas cercanias de Rimini, na Itália: trata-se da Biblioteca Malatestiana, criada pelo tirano local Malatesta Novello, em 1452, que transferiu à prefeitura parte das ações de gestão, negócio responsável pela sobrevivência do espaço dividido em baias, cada qual com três mesas e uma prateleira na base, para guardar os livros acorrentados a uma haste de ferro.

Durante o período da Reforma, caracterizado principalmente pela tradução da Bíblia do latim para línguas europeias e sua impressão por meio da invenção de Gutenberg, surgiram as bibliotecas do Renascimento italiano, como a de São Marcos, em Veneza, e a Laurenciana, projetada por Michelangelo, em Florença.

O século 17 marca o início das bibliotecas modernas, adaptadas para receber livros menores e mais baratos. A Biblioteca do Escorial, na Espanha, ainda de 1585, foi a primeira de grandes dimensões a usar o sistema de estantes de madeira encostadas na parede. Como o alcance máximo de uma pessoa é de 2 metros de altura, a Biblioteca Ambrosiana, de 1609, em Milão, acrescentou galerias e escadas para o acesso às prateleiras mais altas. Ainda nesse período foram erguidas nos países católicos as bibliotecas barrocas e rococós, símbolos da Contrarreforma, como a que o rei de Portugal dom João V mandou construir na Universidade de Coimbra.

No século 19, diante do enorme aumento de usuários, as bibliotecas ganharam estantes de ferro, iluminação a gás e fichas de catalogação. É quando surgem as bibliotecas nacionais, o que no Brasil se posterga para o início do século 20, com a inauguração, em 1910, do edifício neoclássico que sedia a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, os prédios de bibliotecas seguiram o estilo Art Déco ou o Arts and Crafts, predominante dos Estados Unidos e no Reino Unido.

O último capítulo do livro é dedicado ao futuro das bibliotecas na era eletrônica do século 21, ameaçado pela previsão da morte iminente dos livros impressos e pelas crises econômicas, que obrigam os governos a cortes de gastos que atingem duramente a área cultural. Os autores apostam que, enquanto a humanidade valorizar o poder da imaginação e do conhecimento, as bibliotecas sobreviverão de alguma forma.