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Nada ao ralo, nem ao sanitário

Óleo de fritura: 400 milhões de litros de resíduos a cada ano / Foto: Marcelo Santos
Óleo de fritura: 400 milhões de litros de resíduos a cada ano / Foto: Marcelo Santos

Por: MARCELO SANTOS

Todos os anos, cerca de 2 bilhões de litros de óleo vegetal comestível são consumidos no Brasil, o equivalente a 800 piscinas olímpicas cheias, algo em torno de 10 litros per capita. E quase a totalidade desse volume – 95%, aproximadamente – é extraído da soja. Do consumo total do país, 80% é ingerido junto com outros alimentos. Já os 20% restantes transformam-se em resíduo de frituras. Quase todas as pessoas que já se aventuraram na cozinha em algum momento estiveram diante da dúvida sobre o que fazer com aquele óleo queimado e sujo pontilhado de partículas escuras, tudo o que sobrou na panela após a fritada de batatas, bifes e salgadinhos. Um caldo poluente que na maior parte das vezes acaba tendo como destino o ralo e mesmo o vaso sanitário, as piores escolhas possíveis. Tanto que é comum a ocorrência de danos na tubulação de casas e apartamentos, o primeiro inconveniente do lançamento do material na canalização caseira e o início de um desastre ecológico que acaba, fatalmente, contaminando os corpos de água. “Parte do óleo fica preso nas paredes das tubulações e nas caixas de gordura. Isso ajuda a reter outros sólidos e é uma das principais causas de entupimento dos canos na rede pública e também nas casas e nos condomínios”, explica Sônia Oliveira, gestora de projetos ambientais da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). Ela destaca que, além dos dissabores que isso acarreta e dos altos custos cobrados pela desobstrução da rede, o óleo e os restos de alimentos retidos acabam invariavelmente dando margem à proliferação de ratos e baratas.

O óleo que passa pelas paredes das tubulações e chega aos rios e represas é ainda mais nocivo: de acordo com a Sabesp, um litro daquele poluente é suficiente para contaminar cerca de 25 mil litros de água limpa. O biólogo Rodolfo Salm, professor da Universidade Federal do Pará, campus Altamira, explica que o óleo vegetal despejado nos cursos de águas é degradado por bactérias e outros micro-organismos presentes nos rios. “Esse processo consome oxigênio e causa o empobrecimento e destruição da fauna aquática, matando peixes, crustáceos e moluscos”, relata. Segundo Salm, o fato de o óleo não se misturar à água dá origem a mais um problema: a formação de um filme flutuante na superfície que, atuando como barreira, prejudica a entrada da luz solar, a aeração pelo vento e a oxigenação da água. “Quando o óleo é descartado diretamente no solo, causa impermeabilização, proliferação indesejável de micro-organismos e fermentação. Em grandes quantidades pode prejudicar o sistema radicular de plantas”, explica.

A atitude correta, capaz de evitar o emporcalhamento do meio ambiente, é esperar que o óleo esfrie depois de utilizado e armazená-lo em recipientes seguros e bem fechados, como garrafas pet, por exemplo. Quando o vasilhame estiver cheio, deve ser entregue em um posto de coleta que, por sua vez, se responsabilizará por levá-lo às empresas de reciclagem. O óleo de cozinha recuperado é usado principalmente na produção do biodiesel, mas também entra na fabricação de desinfetantes, sabões, inseticidas, massas de vidraceiro, rações animais e tintas, entre outras aplicações. Também pode ser reaproveitado pela dona de casa para a fabricação de sabão em barra, um processo relativamente simples que pode ser aprendido em uma rápida pesquisa na internet. A receita, porém, inclui soda cáustica, produto altamente tóxico que deve ser manuseado e armazenado com cuidado.

As recicladoras pagam entre R$ 0,70 e R$ 1,30 por litro de óleo usado e a demanda pela matéria-prima é muito maior que a oferta. Os compradores têm tanto interesse no produto que, dependendo do consumo de um bar ou de um restaurante, é comum oferecerem aos donos dos estabelecimentos comodidades que vão da disponibilidade dos recipientes para armazenamento à retirada periódica do produto. Outro dado positivo é que o pagamento pelo óleo é quase sempre à vista. O mercado para o produto, depois de recuperado, é garantido, o mesmo quadro da demanda pelo material usado, que supera com folga a oferta.

Pontos de coleta

Os negócios nesta área deveriam integrar uma daquelas raras cadeias produtivas nas quais a reciclagem funciona sem sobressaltos, a partir das leis do mercado, como no caso do alumínio, por exemplo, gerando renda e trabalho sem requerer estímulos externos. Mas não é o que acontece. Por isso, na prática, apenas a décima parte do óleo residual usado nas frituras tem como destino a reciclagem, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), entidade que representa os fabricantes. E esses são números de São Paulo, estado que possui a melhor estrutura de coleta do país. “O grande nó reside no recolhimento dos resíduos domésticos, que é responsável pelo maior porcentual do volume descartado, simplesmente porque estamos falando de dezenas de milhões de residências pelo país”, explica Bernardo Pires, gerente de sustentabilidade da Abiove. “Quase todo o óleo consumido por estabelecimentos comerciais é recolhido e reciclado, pois há interesse de ambas as partes no negócio: o comerciante quer vender e o reciclador quer comprar. O grande desafio, mesmo, é retirar o material nas residências”, diz ele.

Se, na melhor das hipóteses, apenas 10% dos resíduos são encaminhados corretamente para reaproveitamento, podemos considerar que ao redor de 350 milhões de litros de um resíduo altamente nocivo para o meio ambiente são anualmente lançados nos cursos de água. Um problema e tanto que clama por solução. Os princípios de Responsabilidade Compartilhada e Logística Reversa, contidos na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS, Lei 12.305, de 2010), apontam que a responsabilidade aqui é das empresas produtoras de óleo e das companhias envolvidas com sua comercialização.

Márcio Barela, coordenador de sustentabilidade da unidade de alimentos da Cargill, do ramo produtor, defende a empresa, uma das mais importantes do setor, citando o programa Ação Renove o Meio Ambiente. A Cargill, a Sabesp e o Carrefour (do ramo supermercadista), tomaram a iniciativa de estimular a instalação de pontos de coleta de óleo usado, além de promoverem um trabalho educativo nas escolas sobre a importância do descarte adequado do resíduo. “Nosso objetivo mira as pessoas físicas”, observa Barela. O executivo da Cargill argumenta que as campanhas de conscientização são fundamentais e que sem elas o resultado é baixo. “O projeto começou em 2010, temos 600 pontos de coleta em supermercados e foram recolhidos, desde aquela data, mais de 1 milhão de litros.” O programa está hoje centralizado nas regiões Sul e Sudeste, mas Barela tem planos para levá-lo às demais regiões do Brasil.

Para a advogada Célia Marcondes, presidente da Associação Brasileira para Sensibilização, Coleta e Reciclagem de Resíduos de Óleo Comestível (Ecóleo), a gravidade da situação exige iniciativas mais eficientes e abrangentes por parte das empresas e dos governos. A Ecóleo está presente em 14 estados e representa a cadeia de catadores e recicladores. A entidade luta por políticas públicas que conscientizem a população, motivem a coleta e gerem renda e emprego protegendo o meio ambiente. “É preciso entender que não existe ‘jogar fora’. O ‘fora’ não existe porque estamos todos dentro do planeta. A reciclagem do óleo é 100% correta e protege o meio ambiente”, sustenta.

A história da Ecóleo começou em 2007, quando Célia, então presidente da Sociedade dos Amigos, Moradores e Empreendedores do Bairro de Cerqueira César (Samorcc), resolveu organizar a coleta de óleo de cozinha usado em condomínios daquele bairro paulistano, na zona oeste da capital. “Começamos com um prédio e, em pouco tempo, alcançamos mil condomínios”, relata. A Sabesp apoiou a iniciativa com a distribuição de informativos. Ao condomínio cabia a responsabilidade pela compra do recipiente de armazenagem do óleo, enquanto Célia e seus parceiros deviam organizar os coletores, esclarecendo sobre os locais onde deveriam recolher o produto e organizar o esquema de coleta.

Prática antiga

Uma das boas iniciativas implantadas pelo programa foi a de pagar aos zeladores dos edifícios pelo óleo recolhido. A ideia era que, mediante esse prêmio, eles se esforçassem no sentido de fazer com que o sistema funcionasse bem dentro do condomínio. Havia ainda outro estímulo aos zeladores: com o fim do descarte do óleo na tubulação interna, verificava-se uma drástica redução nas ocorrências de entupimento de canos e de caixas de gordura dos condomínios. Isso poupava aos funcionários dos prédios o desagradável trabalho de desobstrução dos canos. A ideia fez tanto sucesso que a Sabesp acabou ampliando o projeto para todas as regiões da Grande São Paulo e para outros municípios do estado onde ela atua.

Célia passou então a ser uma referência nacional e até mesmo internacional no tema. Logo começou a ser procurada por municípios interessados em implantar o projeto, por empresas entusiasmadas com a ideia de recolher óleo, por políticos desejosos de criar leis relacionadas à coleta e reciclagem e por centros de ensino empenhados em aprofundar os conhecimentos sobre o assunto. Na Grande São Paulo, as entidades ligadas à Ecóleo recolhem hoje, mensalmente, mais de 1,6 milhão de litros de óleo vegetal usado, utilizando os mesmos princípios que deram certo em 2007. No estado são coletados 2,7 milhões de litros mensais em 60 municípios, investida que gera 1,2 mil postos de trabalho direto e, aproximadamente, 800 indiretos.

Assim como todos os negócios, a reciclagem do óleo de fritura também tem seus macetes.

Quando chega às recicladoras ele precisa ser filtrado para a retirada de restos de alimentos e outras impurezas. Passa também por processos de decantação e aquecimento para a eliminação da água que, inevitavelmente, acaba fazendo parte da mistura após o processo de fritura, em especial os congelados. “Nosso primeiro desafio é a coleta feita em restaurantes, bares e hotéis, onde deixamos bombonas que são retiradas depois de cheias”, conta Wagner Mendes, diretor da Duque Reciclagem, empresa de Sumaré, a 120 quilômetros da capital. “Uma parte da nossa matéria-prima vem também de pequenos coletores que recolhem de particulares e pequenos estabelecimentos”, revela. A Duque coleta e recicla entre 300 mil e 400 mil litros de óleo por mês. “Toda a nossa produção é vendida antes mesmo de o óleo ser recuperado, principalmente para as usinas de biodiesel. Estamos sempre procurando novos locais para coleta”, afirma. Mendes paga entre R$ 0,60 e R$ 1 por litro de óleo, perde cerca de 20% do volume no processo de purificação e vende o litro do material recuperado a R$ 2.

A bem da verdade, a reciclagem de óleo comestível é uma prática antiga, e sempre houve mercado para que os grandes consumidores pudessem comercializar o material usado. Toshimitsu Kusuki tem quase 30 de seus 52 anos atrás de balcões de barracas de pastéis em feiras livres de bairros da região sudoeste da Grande São Paulo. Ele tem 14 funcionários e sua marca Pastel do Toshi é um grande sucesso. “Nunca deixei de vender o óleo usado e sempre tem alguém que vai lá em casa retirar o produto”, diz. Toshimitsu consome em suas frituras, semanalmente, ao redor de 150 litros de óleo que geram 40 litros de resíduos que ele armazena em sua residência.

“Ficamos de fora”

Quase seis anos após sua promulgação, a PNRS, que tramitou no Congresso Nacional por longos 21 anos antes de ser aprovada, ainda não saiu do papel. Além desse “não ata e nem desata”, uma das maiores críticas dos ambientalistas ao texto é o fato de que ele deixa para os próprios empresários o debate sobre a responsabilização pelo resíduo decorrente de suas atividades, amarrando a política nos acordos setoriais. Historicamente, os empresários sempre se mostraram reticentes a bancar os custos da aplicação dos conceitos de Responsabilidade Compartilhada e Logística Reversa.

Um exemplo recente ilustra bem o problema. Em dezembro de 2015, a Abiove assinou um termo de compromisso com o Governo do Estado de São Paulo para o recebimento, armazenamento e destinação final ambientalmente adequada de resíduos de óleo comestível. “É a renovação de um acordo que já havíamos firmado em 2012, agora com novas metas para a instalação de novos pontos de coleta”, explica Bernardo Pires, da Abiove. Segundo ele, a associação banca a operação de cerca de mil pontos de coleta no estado de São Paulo e mais 300 espalhados por outros locais do território nacional. O acordo determina uma elevação gradual de cem pontos de coleta em São Paulo, a cada ano, podendo chegar a 1.450 em 2019. O compromisso também se refere à promoção de ações educativas nas escolas.

Para Célia Marcondes, da Ecóleo, o termo assinado pelos fabricantes cometeu o erro fundamental de não ter contado com a participação do setor que recolhe e recicla o óleo. “O segmento não foi chamado, os catadores e recicladores não participaram. Não fomos nem mesmo informados que o acordo estava sendo preparado. Nunca somos chamados pelos fabricantes, apesar de estarmos sempre disponíveis e interessados em colaborar com o conhecimento que temos”.

Célia observa que todos teriam a ganhar com essa aproximação. “Seria muito importante que desenvolvêssemos um trabalho em conjunto, pois só com a união de esforços podemos avançar”. Ela aponta algumas lacunas no termo de compromisso, como, por exemplo, a falta de referência ao cadastramento das pessoas e empresas que vão retirar o óleo nos pontos de coleta e a garantia da destinação correta. “Nós temos um programa pronto, de aplicação simples, e que, se apoiado pelas grandes empresas, pode zerar em poucos anos o enorme volume de óleo despejado nos rios”, garante. Célia também comenta a falta de definição sobre a quantidade de óleo a ser recolhida e reciclada. “Eles precisam determinar metas e não apenas aumentar os pontos de coleta. O texto deveria estabelecer um número para o recolhimento de acordo com a produção, volume que deveria experimentar um aumento progressivo a cada ano. Além disso, muitas empresas importantes nem mesmo assinaram o documento”, opina. A comandante da Ecóleo enfatiza que as empresas representadas pela Abiove, todas do ramo de produção, desconhecem o funcionamento da cadeia de reciclagem.

Bernardo Pires, o gerente de sustentabilidade da Abiove, defende, por seu turno, a legitimidade do termo de compromisso, afirmando que as empresas signatárias representam 70% da produção de óleo vegetal total do país. Para ele, a solução para aumentar a quantidade de óleo reciclado e reduzir de fato o volume jogado nos ralos e vasos sanitários cobra um maior envolvimento do poder público com a questão. “Os governantes deveriam fazer mais campanhas de conscientização, estimular os cidadãos e explicar a importância de se dar um destino apropriado ao óleo usado”, diz. Célia discorda. “O poder público neste caso é inerte, convencer as autoridades é um trabalho inglório. Você faz todo um trabalho de conscientização com uma autoridade do Meio Ambiente e, finalmente, quando consegue envolver o político para a causa, ele é substituído ou troca de área. E temos que começar tudo de novo.” É desanimador, ela diz, enfatizando que o poder público tem sim um papel muito importante na equação do problema, ditando leis que estimulem campanhas de conscientização e educação, criando mecanismos de fiscalização e de punição dos grandes consumidores que descartarem óleo de fritura irregularmente.