Postado em
Herança de alemães e italianos
Por: JOSÉ PAULO BORGES
Em janeiro, enquanto em boa parte das cidades brasileiras aumenta o som dos tamborins e repiniques nos ensaios de blocos, trios elétricos e escolas de samba rumo ao carnaval, nas ruas de Jaraguá do Sul, no norte do estado de Santa Catarina, cresce o vai e vem de jovens de diversas nacionalidades, carregando estojos com instrumentos nada carnavalescos, como flautas e oboés, violinos e trompas, violoncelos e fagotes. Com o mesmo entusiasmo dos sambistas nesta época do ano, aqueles músicos se preparam para receber, em duas semanas, lições de mestres, muitos de renome internacional, durante o Festival de Música de Santa Catarina (Femusc) – talvez o mais importante evento com perfil pedagógico de música erudita do Brasil, realizado no prédio de arquitetura moderna da Sociedade Cultura Artística (Scar), uma construção de 10 mil metros quadrados.
Para os apreciadores de sons mais contundentes, como os provocados por socos, chutes e cortadas de ídolos da luta livre, do futebol de salão e do vôlei, Jaraguá do Sul reserva outro palco igualmente grandioso. A Arena Jaraguá, com 10.415 metros quadrados de área coberta, uma estrutura suficientemente grande para abrigar um público de metrópole. De quebra, esta cidade catarinense, cercada por montanhas, é o paraíso de esportes que tem o céu por testemunha, como a modalidade de voo livre de parapente, por exemplo.
Pegadas de projetos inovadores estão espalhadas pela cidade. Algumas são de fácil identificação, como aquelas na esquina das ruas Reinoldo Rau e Guilherme Weege, bem no centro. À primeira vista, o que chama a atenção são as linhas de um moderno conjunto comercial erguido no local. Mas logo o olhar é atraído para o desenho da travessia de pedestres. A calçada foi alargada e as pessoas ganharam um espaço que antes era ocupado pela rua. Neste espaço extra, quem vai fazer a travessia tem uma visão mais ampla dos carros, e também é mais facilmente visualizado pelos motoristas. Canteiros e balizas protegem as pessoas que estão na área avançada. Além disso, a pequena inclinação da calçada e o piso tátil facilitam o acesso e a segurança de cadeirantes, gestantes, idosos, mães com carrinhos de bebê e pedestres com limitações físicas. Os proprietários do centro comercial colaboraram com a execução do projeto desenvolvido pelo Instituto Jourdan, órgão responsável pelas tarefas de pesquisa e planejamento do município, e a iniciativa faz parte do plano de revitalização urbana de Jaraguá.
Outras pegadas do empreendedorismo jaraguaense ficam visíveis apenas quando se atravessa a porta principal de algumas empresas. É o caso de quatro pequenas notáveis linhas de produção baseadas na cidade: a Voitila, a Arco-Íris e a Vitalin (todas do ramo de alimentação), e a Priori (do setor de tecnologia da informação). O traço comum entre elas é a obstinação pela marcação de território fora do Brasil. No ano passado, elas foram incluídas na lista das cinquenta micro e pequenas empresas catarinenses selecionadas pelo programa Exporta SC, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que tem por objetivo prepará-las para operar no mercado norte-americano. As firmas receberam todo o suporte daquela instituição, incluindo assistência administrativa, fiscal, jurídica, logística e de marketing; treinamento e análise do modelo de negócio para adaptação ao mercado americano. O projeto Exporta SC também ofereceu completa infraestrutura física para as empresas começarem a operar nos Estados Unidos por meio de uma incubadora instalada em Fort Lauderdale, na Flórida. No final do processo elas devem acumular autossuficiência necessária para empreender voos solos.
Presença internacional
“Estamos planejando a venda de 15 a 20 toneladas de nossas batatas recheadas congeladas, apenas no primeiro bimestre de atuação nos Estados Unidos”, afirma confiante, Thiago Roger Machado, um dos sócios da Voitila. “O diferencial do nosso cookie está nos ingredientes naturais e sem glúten, e nas porções individuais das pequenas embalagens. A combinação é perfeita para americanos preocupados com a obesidade”, aposta a empresária Jerusa De Marchi, da Vitalin. “Vamos lançar uma nova família de pães de mel, macios, úmidos e mais doces, para agradar o paladar dos americanos”, antecipa o fundador da Arco-Íris, Emílio da Silva Neto. “Além dos Estados Unidos, a meta é colocar nosso aplicativo de vendas off-line também no mercado europeu”, destaca o diretor comercial da Priori, Ademilson Piccoli.
Os números desse centro urbano catarinense são de encher os olhos. Em apenas 13 anos, o Produto Interno Bruto (PIB) de Jaraguá do Sul evoluiu 385,7% e, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente é de R$ 7,8 bilhões. Este valor é mais do que suficiente para colocar o município na quinta posição no ranking das cidades mais desenvolvidas do estado de Santa Catarina. A indústria local é responsável por 45,9% (R$ 3,6 bilhões) do PIB local, seguida pelo setor de serviços, com 31,5%. E o município é o terceiro maior exportador e o sexto principal importador catarinense.
As 9.515 empresas em atividade na cidade geram 68,7 mil postos de trabalho, e a maior parte delas (84,1%), em 2014, era composta por micro e pequenas organizações. Naquele ano, entre as principais responsáveis pela absorção de 55,9% da mão de obra no estado despontavam algumas corporações jaraguaenses. Pequenos núcleos familiares na origem, com o tempo elas se tornaram gigantes – com ramificações inclusive no exterior –, atuando nos ramos da metalmecânica (como a poderosa Weg, um dos mais importantes produtores de motores elétricos do planeta) e de confecção (a exemplo da Malwee, uma das principais empresas de moda do Brasil e uma das mais modernas do mundo responsável pela produção de mais de 80 milhões de peças de malha por ano). Empresas de tecnologia, energia, alimentação e prestação de serviços também se destacam na economia do município.
Praticamente, a totalidade da população (99%) conta com o serviço de abastecimento de água, e em 2016 com a conclusão da quarta estação de tratamento a rede de esgoto sanitário passará do atual índice de cobertura da ordem de 54% para 82%. Em 2010, o número de pessoas adultas no município que não sabia ler nem escrever representava 1,85% da população. O porcentual é significativo, tendo em vista que, no mesmo período, 4,3% dos catarinenses e 10,1% da população nacional formavam o imenso contingente de brasileiros analfabetos. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal – IDHM (indicador que agrega os fatores longevidade, educação e renda) é de nível alto (0,803). O jeito de falar dos 160 mil habitantes não deixa dúvidas sobre a descendência de cada um deles: 45% dos jaraguaenses têm antepassados que vieram da Alemanha, 25% da Itália, 6% da Polônia e 3% da Hungria. Jaraguá do Sul se destaca, com louvor, no quesito reciclagem de descartes doméstico e industrial. Tudo começou em setembro de 2013 com o programa Recicla Jaraguá. Até aquela época, apenas 4% do lixo gerado na cidade era reciclado. O programa foi deflagrado com uma campanha bem-humorada que tinha como slogan “olha quem chegou para encher o saco”. O mote referia-se a um personagem que era representado por um saco de lixo verde e batizado mais tarde de Sacolix. A campanha foi criada para estimular a população a separar o lixo seco a título de reciclagem nas milhares de sacolas ecológicas que passaram a ser distribuídas pela prefeitura. Deu certo, tanto que, atualmente, 16% do lixo coletado na cidade é reciclado. Para se ter uma ideia do que esse porcentual representa, basta dizer que no ano passado a cidade de São Paulo reciclou algo em torno de 2,5% de rejeito recolhido na metrópole. “O plano é reduzir o volume de detritos encaminhados ao aterro sanitário em 62% até 2033”, relata o presidente da Fundação Jaraguaense de Meio Ambiente (Fujama), Leocádio Neves e Silva. Outro benefício do programa foi o aumento da renda dos recicladores. “O salário médio desses trabalhadores é, atualmente, de R$ 1,5 mil”, conta Neves e Silva.
Problemas existem
Em 2015, o lugar esteve sob os holofotes de boa parte da mídia devido ao seu desempenho em três pesquisas diferentes. Um ranking inédito divulgado pela revista “Isto É” apontou Jaraguá como a 48ª melhor cidade de médio porte para se viver no Brasil. O levantamento analisou os municípios que mais se destacaram em um conjunto de indicadores das áreas digital, econômica, fiscal e social. Por sua vez, o Atlas da Exclusão Social no Brasil, publicado pela Editora Cortez, classificou a cidade em sétimo lugar entre os 35 municípios mais igualitários do país. O trabalho avaliou os seguintes indicadores: alfabetização, desigualdade social, emprego, escolaridade, juventude, pobreza e violência. Já num estudo elaborado pela Urban Systems (e publicado pela revista “Exame”), empresa especializada no levantamento de tendências de mercados e cidades, Jaraguá apareceu na oitava posição no ranking de desenvolvimento social. A pesquisa considerou fatores como educação, saneamento, saúde e segurança.
Nem tudo são flores, entretanto, na progressista Jaraguá do Sul. De janeiro a novembro do ano passado, 1.563 postos de trabalho simplesmente sumiram, total que representou quase o reverso da moeda em relação a igual período de 2014, quando foram registradas 2,2 mil novas vagas em todo o município. No quesito mobilidade urbana a cidade também enfrenta dificuldades. Em 2015, o número de emplacamentos cresceu 3%, e a cidade terminou o ano com uma frota de 111.510 veículos, um número de fazer cair o queixo, mas que afetou drasticamente o trânsito local, dando origem a grandes congestionamentos. Como se isso não bastasse, o jaraguaense também convive com os transtornos ocasionados pelos imensos comboios de trens da América Latina Logística (ALL), que atravessam a cidade todo santo dia. “Precisamos construir uma Jaraguá o mais sustentável possível e onde a população não dependa só do carro para se locomover”, prega o prefeito Dieter Janssen, 48 anos. Segundo ele, a construção de sete quilômetros de corredores exclusivos para ônibus contribuiu para trazer certo alívio ao trânsito.
Volta e meia, o prefeito é visto pedalando nas faixas e vias exclusivas para bicicletas existentes na cidade e que totalizam 54 quilômetros. Aliás, o transporte por bicicleta é uma das apostas de sua administração. “Atualmente, estamos trabalhando na implantação da Ciclovia do Trabalhador, que terá 19,7 quilômetros de extensão e ligará a cidade de leste a oeste”, afirma. Segundo ele, essa obra faz parte de um amplo sistema que, depois de concluído, irá somar 63 quilômetros de ciclofaixas e ciclovias.
A entidade que movimenta as peças do tabuleiro cultural da cidade é a Sociedade Cultura Artística (Scar). Tudo começou com a pianista Adélia Fischer, que sonhava com um espaço para acolher uma pequena orquestra, formada por ela, o marido Francisco e um grupo de amigos, e fazer apresentações à comunidade. Isso foi em 1956. O sonho de Adélia e de seus amigos ocupa hoje, 60 anos depois, um magnífico prédio de mais de 10 mil metros quadrados distribuídos por seis andares, com completa estrutura para a realização de eventos artísticos e culturais, espaços para exposições, salas para cursos de teatro, dança, música e artes visuais, além de dois teatros com todos os recursos cênicos. Grupos como o Balé Real da Dinamarca, a Companhia de Danças da Polônia e a escola do Teatro Bolshoi, e personalidades como Paulo Autran, Ana Botafogo, Arthur Moreira Lima e João Carlos Martins já se apresentaram nos palcos da Scar.
Construído e mantido com fundos privados da comunidade civil de Jaraguá do Sul, o centro cultural é o principal cenário do Festival de Música de Santa Catarina (Femusc), evento criado por iniciativa do maestro e oboísta gaúcho Alex Klein, com a proposta de “qualificar, democratizar, popularizar e internacionalizar o aprendizado da música erudita no Brasil”. Talvez nem o próprio Alex imaginasse que, em tão pouco tempo, o Femusc se transformasse no maior festival-escola de música clássica não competitivo da América Latina. Todos os anos, em janeiro, centenas de jovens estudantes de vários níveis, vindos de diversas regiões do Brasil e de outros países, desembarcam em Jaraguá para, como aconteceu em 2013, receber lições de músicos famosos como o violonista Leon Spierer, spalla da filarmônica de Berlim durante quase 30 anos. São mais de 30 mil horas/aula e por volta de 3 mil ensaios de centenas de obras do repertório sinfônico e de câmara executadas, muitas delas, por sugestão dos próprios alunos.
Fogo na fábrica
Outro grande palco de eventos é a Arena Jaraguá. Mesmo para uma cidade de grande porte, as dimensões causariam admiração: área construída de 20.640 metros quadrados; área da cobertura de 10.415m²; 32 bilheterias; 8 mil cadeiras; 10 cabines de transmissão; 22 camarotes (600 a 800 lugares); 1.200 vagas de estacionamento; praça de alimentação com área construída de 1.280m², e vão central de 31 metros. Em 2013, esses números causaram desconforto a capitais como Brasília, Fortaleza e Porto Alegre, candidatas na oportunidade para receber os gladiadores do Ultimate Fighting Championship (UFC), torneio de luta que envolve uma mistura de artes marciais. Elas simplesmente foram preteridas em favor de Jaraguá do Sul. Além de socos e pontapés, os jaraguaenses se acostumaram a ver ídolos do futebol de salão e do vôlei se apresentando no local.
Jaraguá é um paraíso para os amantes de esportes a céu aberto, como a modalidade de voo livre de parapente (paraglider, em inglês). Em dias ensolarados, quem volta os olhos em direção ao Morro Boa Vista logo percebe as cores dos equipamentos. A cidade conta com a única fábrica de parapentes do Brasil. Já para quem prefere lazer isento de fortes emoções, o cenário perfeito é o Parque Malwee em área preservada de aproximadamente 1,5 milhão de metros quadrados com mais de 35 mil árvores, 133 espécies de aves catalogadas e 17 lagoas. Inaugurado em 1978 por Wolfgang Weege, fundador da Malwee, o local é um dos principais pontos turísticos do norte do estado de Santa Catarina, recebendo mais de 70 mil visitantes por ano.
Sexta-feira, 6 de novembro de 1953, às 9h30 da manhã. Numa das salas do Colégio Marista São Luís, o estudante Eugênio Strebe estava com o rosto voltado para a parede e não via a hora de sair do castigo. Na prefeitura, o funcionário público Alberto Taranto preparava-se para subir a escadaria e ir até o Fórum, que na época funcionava no andar superior do prédio. De repente, um, dois, três estrondos muito fortes estremeceram a cidade. Quem presenciou o acontecimento diz que nunca se ouviu tanto na cidade “Mein Gott!” (“Meu Deus!”, em alemão). Os olhares dos assustados jaraguaenses tomaram a direção da fábrica de pólvora Pernambuco Powder Factory, que ficava perto do centro da cidade: dois cogumelos iguais aos da explosão de uma bomba atômica escureceram o céu da cidade.
Strebe esqueceu-se que estava de castigo. Desceu correndo a escadaria da escola, pegou sua bicicleta e em menos de dez minutos estava na fábrica em chamas. O funcionário público Taranto pedalou o mais que pode, mas não conseguiu aproximar-se muito, pois o local já havia sido isolado. Os dois jamais esqueceram as cenas que presenciaram ali. “Corpos carbonizados de funcionários eram recolhidos com pás e colocados no caminhão da prefeitura”, recordam. “Olhei para uns pés de pinheiros e vi partes de corpos pendurados em cima”, narra Taranto. A tragédia fez dez mortos, todos eles operários de condição muito humilde que, no momento, manuseavam embalagens com explosivos num galpão rústico, coberto por telhas comuns. A comoção foi grande.
No dia 1º de novembro de 2013, às 9h30, no mesmo horário da tragédia de 60 anos atrás, foi inaugurado no cemitério da cidade o monumento em memória às vítimas do maior desastre da história de Jaraguá do Sul. “A explosão tirou de cena aquela fábrica química, ajudando a mudar os rumos da industrialização de Jaraguá do Sul”, relata o historiador Ademir Pfiffer. “Os empresários passaram a investir em outros ramos fabris”, diz. A cidade, então, diversificou a área de atuação de suas empresas, transformando-se no potentado industrial de hoje.