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Os subterrâneos da capital paulista

Casa das Caldeiras, hoje um animado centro cultural / Foto: Coletivos do TodoDomingo
Casa das Caldeiras, hoje um animado centro cultural / Foto: Coletivos do TodoDomingo

Por: ALBERTO MAWAKDIYE

Está certo, São Paulo não é nenhuma Montreal, a metrópole canadense tida como a dona do maior complexo subterrâneo do mundo com uma bem iluminada rede com mais de 32 quilômetros de túneis. Além de interconectar diversos edifícios e equipamentos urbanos localizados na superfície, essa malha permite a moradores e turistas desfrutarem, nas entranhas da cidade, de centenas de lojas, restaurantes e espaços culturais e de serviços, principalmente durante o longo e gélido período de inverno.

Todavia, deixando Montreal de lado, o fato é que, entre as cidades brasileiras, São Paulo é a única que mantém, no seu subsolo, locais capazes de rivalizar – pelo menos na área cultural – com os points subterrâneos da charmosa urbe canadense, com opções que incluem teatros, monumentos, restaurantes, aquários e até catacumbas e destroços urbanos.

Essas atrações não são muitas – na verdade, mal resvala a duas dezenas – e muito menos estão diretamente interligadas, como em Montreal. Distribuem-se aleatoriamente pela cidade, embora o grosso se concentre na região central. O acesso a elas se dá, naturalmente, sempre pela superfície, o que lhes empresta certo ar de aventura e mistério, diferentemente do que ocorre num dos mais importantes centros industriais, comerciais e culturais da América do Norte, onde o gigantismo e o tratamento urbanístico dos túneis, puxado para a leveza, faz esquecer até de que se está debaixo da terra.

Também diferentemente de Montreal – cujos canais subterrâneos começaram a ser abertos no início da década de 1960 – a maioria das atrações paulistanas sob a terra destaca-se pela antiguidade e pelo valor histórico. É o caso do subsolo da Casa das Caldeiras, uma herança da época das Indústrias Matarazzo, o maior complexo industrial da América Latina até 1980, quando saiu de cena. Localizada entre o centro e a zona oeste da cidade, a Casa das Caldeiras era responsável pelo fornecimento de energia para as indústrias do grupo estabelecidas no entorno. O prédio, com arquitetura dos anos 1920, foi tombado em 1986 como patrimônio histórico de São Paulo, e posteriormente restaurado e revitalizado. Hoje, é um animado centro cultural dedicado a produções independentes, que se desenvolvem tanto na área principal como no jardim e no túnel do antigo equipamento industrial.

“O espaço é tão cheio de simbolismos que as pessoas acabam incorporando-o no processo de criação”, diz Karina Saccomanno, diretora da Associação Cultural Casa das Caldeiras (ACCC). “Acabou se tornando também um lugar que valoriza a memória e a história”. O local é um sucesso de público: em alguns domingos, a Casa das Caldeiras chega a receber 5 mil visitantes, em suas muitas e simultâneas atividades.

Como a área do subsolo da antiga central de energia das Indústrias Matarazzo, outras atrações subterrâneas de São Paulo também atraem um bom público por fazerem parte – ou servirem como espécie de “anexos” – de equipamentos turisticamente importantes, como as três criptas abaixo do chão existentes na cidade. Uma delas, instalada sob o Monumento à Independência, inaugurado em 1922, abriga os despojos de dom Pedro I e das imperatrizes dona Leopoldina e dona Amélia. A cripta foi construída durante a reforma do monumento em 1953, mas o acesso ao público só foi liberado em 2000. O monumento fica no Parque da Independência, na zona sul, ao lado do Museu do Ipiranga e do histórico riacho de mesmo nome.

Atualmente fechado para reforma, o museu tem no seu subsolo um longo corredor, onde estão expostos móveis e objetos dos séculos 18 e 19, além de artigos ligados à história dos tropeiros, como estribos, esporas e malas de viagem. Há ainda uma saleta com uma curiosa coleção de ferros de passar roupas, com alguns exemplares em ferro fundido a carvão que chegam a pesar 5 quilos. Já a Cripta da Catedral da Sé, no coração de São Paulo, com seus 619 metros quadrados e 7 metros de altura, está localizada bem debaixo do altar principal da igreja. Pequena, porém imponente, conta com piso de mármore de Carrara e arcos de tijolos. O estilo gótico da instalação contribui para a atmosfera um tanto lúgubre e opressiva. Ali, estão sepultados, entre outros, 15 bispos portugueses e brasileiros.

Espetáculos teatrais

Menos conhecida, no vizinho Pateo do Collegio encontra-se a antiquíssima Cripta Tibiriçá, aberta em 1757 para receber os restos mortais de padres jesuítas. O lendário índio Tibiriçá também foi sepultado primeiramente ali. Mas, poucos anos depois, com a expulsão dos jesuítas, a cripta foi fechada e os corpos enterrados tiveram que ser transferidos para outras igrejas e cemitérios. Reaberto apenas em 1979, o espaço serve hoje como sala de exposição. O índio Tibiriçá, na verdade cacique, era considerado o principal líder nativo na região. Na realidade, em São Paulo, até o surgimento do primeiro cemitério público, no século 19, era hábito o sepultamento no interior das igrejas, em seus altares laterais ou no recinto da capela-mor, um sinal de alta distinção social ao morto. Diversas igrejas e mosteiros paulistanos, por isso, são também dotados de criptas, embora elas não sejam totalmente subterrâneas e nem abertas para visitação.

Os destaques, todos no centro da cidade, são as criptas do Mosteiro de São Bento, do Mosteiro Frei Galvão e da Igreja Ordem Terceira de São Francisco – onde estão os restos mortais do militar Rafael Tobias de Aguiar, que deu o nome às Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), unidade de elite da Polícia Militar. No prédio da Rota, na Avenida Tiradentes, aliás, há um túnel de cerca de 100 metros que já chegou a ter quase três quilômetros de extensão, e tinha por função ligar o quartel a outras unidades de segurança e à antiga penitenciária localizada na avenida. Hoje museu militar, o túnel também foi usado pelos soldados na Revolução de 1924, maior conflito bélico registrado na cidade de São Paulo e que tinha por propósito destituir Artur Bernardes da Presidência da República. O local está aberto à visitação com agendamento prévio.

Outro programa “complementar” é o Aquário Subterrâneo do Parque da Luz, neste caso para quem vai passear no simpático bosque daquela região central da cidade, que dispõe de ampla área verde, chafariz, coreto, esculturas, espelhos d’água, lagos, mirante, playground e ponto de bonde. O aquário é bem pequeno, mas para lá de charmoso. Por sua vez, no subsolo do concorrido Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), perto da Praça da Sé, a atração é um grande cofre de 1901. Mas há espaços subterrâneos que são frequentados, por assim dizer, por conta de seus próprios atrativos, sem precisar depender em nada de “equipamentos-âncora”. Em um deles, no amplo subsolo do Instituto Cultural Capobianco, também no centro, são promovidos espetáculos teatrais e palestras com o foco na difusão da cultura, na defesa do patrimônio histórico e na promoção do desenvolvimento sustentável.

E tem o Teatro do Centro da Terra, 12 metros abaixo da superfície e, provavelmente, a atração subterrânea mais exótica da cidade. Inaugurado em 2001, após dez anos de obras e escavações no quarto e quinto subsolos de um edifício no bairro do Sumaré, na zona oeste, o espaço é referência de bom teatro em São Paulo. Além da sala de apresentações com capacidade para cem pessoas, o local, com quatro andares, dispõe de salas de ensaios e atividades de pesquisa, além de abrigar uma escola de arte, música e teatro chamada Grão do Centro da Terra.

Para chegar até o teatro, todavia, é preciso usar capacetes e luzes de mineiro para a descida por túneis e escadarias de uma mina de ouro abandonada – embora quem não queira confrontar-se com a escuridão dos numerosos degraus possa recorrer a um moderno elevador. Numa ou noutra opção, o espectador irá desembocar numa bonita sala de espera, onde há um bar com bons vinhos e reconfortantes sofás. “Não há dúvida de que o fato de ser subterrâneo acaba sendo um chamariz para o teatro”, diz Keren Ora Karman, coordenadora-geral da instituição. “Muitos paulistanos não estão acostumados com isso, e acham a ideia no mínimo curiosa”.

Obras de arte

Famosa por sua boa e diversificada gastronomia, São Paulo também não poderia deixar de oferecer algumas atrações subterrâneas no segmento de bares e restaurantes, como uma tradicional pizzaria montada em um antigo casarão no bairro de Santa Cecília, região central. Ali, no subsolo, funciona um bar, cuja arquitetura e mobiliário antigo remetem o lugar às caves europeias. Na zona oeste, o Tatu Bar & Palco foi instalado no subsolo do bucólico restaurante Jacarandá para oferecer bebidas finas e boa música em um ambiente sempre mergulhado em acolhedora penumbra. “É um espaço para jovens e grisalhos que gostam de dançar”, resume Ana Maria Massochi, badalada restaurateur de origem argentina que, além desses, criou outros empreendimentos referenciais em São Paulo, como os restaurantes típicos Martín Fierro e La Frontera.

Apesar de não ter concorrentes no Brasil na oferta desse tipo de atração, a capital dos paulistas empalidece quando comparada não só com as cidades dotadas de áreas subterrâneas – como Montreal ou a também canadense Toronto, cuja rede de túneis lembra um enorme shopping center – mas com várias outras ao redor do planeta. São metrópoles que dispõem das chamadas “passagens subterrâneas” em geral normalmente conectadas a estações de metrô, oferecendo toda sorte de equipamentos para o lazer, a cultura e as compras.

Em São Paulo, as duas únicas passagens subterrâneas de fato são a Literária da Consolação – que passa sob a rua de mesmo nome quase na esquina da Avenida Paulista, e é um espaço para exposições e apresentações musicais – e a exuberante Galeria Prestes Maia, no centro. Com paredes e colunas revestidas de mármore, a galeria possui três níveis ligados por escadarias e escadas rolantes. Foi um dos primeiros locais da cidade a utilizar esse tipo de escada, inaugurada em 1955. No mundo, exemplos de passagens subterrâneas podem ser encontrados em Buenos Aires, Santiago e Chicago, nas Américas; Paris, Estocolmo, Londres, Moscou e Roma, na Europa; e Bangkok, Cingapura, Pequim, Hong Kong, Nova Déli, Osaka, Taipé e Tóquio, na Ásia. Em algumas cidades europeias, aliás, além dessas passagens, há verdadeiros monumentos históricos disponíveis para os visitantes nas áreas subterrâneas, como as catacumbas de Londres, Paris e Roma.

Barcelona, a cidade-ícone da arquitetura espanhola, curiosamente, também já teve uma importante “cidade” subterrânea, a Avinguda de la Llum (Avenida da Luz, em catalão), que durou de 1940 a 1990 e hoje está abandonada depois de ter se tornado um lugar marginalizado e perigoso. Os muitos atrativos a céu aberto da cidade e o clima temperado são comumente citados como as principais razões para o insucesso da empreitada, que de qualquer forma teve uma vida relativamente longa.

Talvez seja esta também a causa principal de os brasileiros não se esforçarem muito para se aventurar debaixo da terra. “O clima do país, de ameno para quente, não é exatamente propício para projetos desse tipo”, diz Gisleine Coelho de Campos, pesquisadora da seção de geotecnia do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) de São Paulo. “Não é que nos falte capacidade técnica, pelo contrário, o Brasil é fortíssimo na área de engenharia subterrânea, bastando ver o metrô paulistano”. De fato, parte considerável das linhas do metropolitano de São Paulo é subterrânea, com algumas estações 25 metros abaixo da superfície – o equivalente a um edifício de 11 andares –, como a Alto do Ipiranga, República e São Bento. A estação mais profunda, no entanto, é a de Pinheiros, cujas plataformas de embarque ficam cerca de 30 metros abaixo do leito do Rio Pinheiros, que atravessa aquele bairro.

Nada comparável, claro, ao sistema de metrô mais profundo do mundo, em São Petersburgo, na Rússia, cidade à beira do gelado Mar Báltico, que integra estações localizadas a 105 metros abaixo da superfície, e cujo projeto de expansão, em andamento, prevê estações com profundidades superiores a 150 metros. Mas pelo menos o metrô paulistano é quase tão cheio de arte como o de São Petersburgo, tido como um dos mais luxuosos do planeta. Atualmente, 37 estações abrigam 91 obras de arte representadas por esculturas, murais e painéis assinados por mais de 60 artistas da importância de Aldemir Martins, Maria Bonomi, Mário Gruber e Tomie Ohtake.

Almas penadas

A natureza “alagadiça” do subsolo paulistano – a qual muitos moradores, aliás, atribuem, até hoje, o trágico desabamento da própria estação Pinheiros quando ela estava em construção, em 2007, e que matou sete pessoas – é outro impeditivo de mais investimentos em projetos subterrâneos. Embora aquele acidente tenha sido motivado, na verdade, por problemas de projeto e execução, em muitos trechos da capital a pequena resistência do subsolo torna a execução de projetos abaixo da superfície de fato, bastante cara, quando não antieconômica.

São Paulo é uma cidade quase fluvial: é banhada por 280 rios e córregos, número que seria muito maior se 300 a 500 cursos de água não tivessem sido canalizados para a abertura de ruas e avenidas. “Aqui, não importa o local, ninguém está a mais de 300 metros de distância de um curso de água”, afirma o urbanista José Bueno, um dos diretores do projeto Rios & Ruas que, desde 2010, mapeia os rios e córregos subterrâneos da capital. Não é à toa que, nos períodos de muita chuva, São Paulo tenha enchentes por toda parte.

Os altos custos – aliados a uma boa dose de comodismo administrativo – são também um dos responsáveis pelo pequeno aproveitamento do subsolo no segmento de infraestrutura. O subsolo paulistano é aproveitado basicamente para a rede de água, esgotos e gás – uma rede ínfima, neste caso – e para as áreas de estacionamento dos edifícios mais modernos (há apenas dois estacionamentos subterrâneos públicos em toda a cidade).

Pior do que isso, a capital paulista tem, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), apenas 7% de seus fios enterrados – ao contrário das capitais europeias, por exemplo, onde as redes aéreas são exceção. Pelos postes da cidade passam quase 40 mil quilômetros de cabos elétricos, internet, televisão e telefonia, à mercê das condições do tempo e tornando feia a paisagem urbana.

“Ao longo dos anos, sempre que houve tentativas de enterrar os fios, elas foram barradas”, critica Carlos Augusto Ramos Kirchner, representante da Federação Nacional dos Engenheiros (FNE) na Frente de Defesa dos Consumidores de Energia Elétrica e diretor do sindicato da categoria em São Paulo. “O problema é o custo, que ninguém quer bancar, nem o poder público, nem as empresas que exploram o setor”. O que, aliás, é perfeitamente compreensível. Estimativas da Eletropaulo, a concessionária que distribui eletricidade em São Paulo, indicaram um custo de R$ 100 bilhões para acabar com a fiação elétrica exposta nas ruas paulistanas.

Já houve pelo menos uma tentativa de desenvolver projeto urbano com base no uso racional do subsolo em São Paulo, o da Nova Paulista, desenhado pelo arquiteto e urbanista Nadir Mezerani a pedido do então prefeito José Carlos de Figueiredo Ferraz, na primeira metade dos anos 1970. Foi Mezerani também o responsável pela construção da passagem subterrânea Literária da Consolação.

De acordo com o projeto, o trânsito da Avenida Paulista seria absorvido por um complexo de túneis e a avenida se transformaria em uma esplanada livre para caminhar e pedalar. Aberturas no canteiro central daquela via pública ligariam os ambientes da superfície e do túnel. O projeto até chegou a ser tirado do papel, com parte do túnel escavado; todavia, como a obra foi abandonada, o resultado é que a Paulista, hoje, não pode ser arborizada, porque é toda oca, e tem em seu subsolo 22 galerias desocupadas, ou ocupadas indevidamente.

De qualquer forma, inaugurado em 1971, o trecho inicial do túnel semiaberto idealizado por Mezerani é uma amostra daquilo que a avenida poderia ter se tornado ao longo de sua extensão. Nesse trecho, entre as ruas da Consolação e Haddock Lobo, a via fica mais estreita e conta com menos faixas para os veículos – não casualmente, o espaço do canteiro central é conhecido como Praça do Ciclista. Isso deu ao projeto um caráter quase premonitório. Hoje dotada de ciclovias, a Avenida Paulista é agora fechada para o trânsito aos domingos, sendo utilizada só por pedestres e ciclistas. “A oposição à ideia foi muito grande, principalmente por parte dos proprietários de edifícios que haviam ocupado indevidamente o subsolo da avenida”, lembra Mezerani, segundo quem o caminho do túnel tinha pela frente mais de duas dezenas de construções irregulares, entre elas garagens de prédios, a caixa-forte de um banco estatal e até a quadra de esportes de um clube.

Ou seja, debaixo do principal cartão-postal de São Paulo existe um verdadeiro destroço urbano. Mas está longe de ser único. Logo abaixo da estação Pedro II do metrô, no centro, há o esqueleto de uma estrutura que começou a ser construída no fim dos anos 1960 e nunca foi concluída, já que serviria de plataforma para uma linha de trens que não chegou a existir. Mas pelo menos ela parece não abrigar fantasmas, como os porões do Theatro Municipal, perto dali, fechados depois de uma das obras de restauração do prédio, e que muitos dizem ser um ninho de almas penadas.