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As contas de casa
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Nos bons tempos do começo do Plano Real, o presidente Fernando Henrique foi às compras e, gastando o salário mínimo da época, R$ 70, encheu meio carrinho de supermercado, levando todos os itens mais importantes da chamada cesta básica. Se voltasse às compras em meados de maio último, com um salário mínimo de R$ 180, poderia repetir a façanha, já que, segundo dados do Procon, a cesta básica inteira custava R$ 143 em São Paulo. Por que, então, as pessoas têm cada vez mais dificuldade para equilibrar suas contas, num quadro aparentemente estável?
O que as compras no supermercado não mostram é o verdadeiro peso das tarifas públicas cobradas por serviços de consumo familiar essencial, como esgoto, água, luz, telefone, gás e transporte. São justamente esses itens que mais têm pesado no orçamento doméstico, como revela a Fundação Getúlio Vargas: os custos de habitação (que incluem boa parte dos gastos acima citados) subiram 167%, entre agosto de 1994 e fevereiro deste ano, enquanto os alimentos encareciam pouco mais de um terço disso (45%) e o vestuário, menos ainda (19%). A Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), da Universidade de São Paulo, acompanha a alta do custo do transporte e a evolução das tarifas de ônibus na capital paulista e concluiu que, para o paulistano, essa despesa cresceu 172% entre julho de 1994 e abril de 2001, período em que o Índice de Custo de Vida, calculado pela entidade, mal passou dos 90%. Em fins de maio, a prefeitura paulistana aumentou a tarifa do ônibus para R$ 1,40, uma elevação de 21,74% sobre a anterior, de maio de 1999. O número assusta ainda mais quando se sabe que esse item representa 4,4% do cálculo da inflação.
Pesquisa da Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo (Aabic) indica que as despesas com água e luz respondem por 18,6% da taxa condominial média paga pelo paulistano. No cômputo geral da Fipe, em 1991 os gastos com habitação significavam 26,6% do orçamento total. No ano passado, saltaram para 32,8%, e dessa parcela 8,2% correspondem a fornecimento de água, energia elétrica, gás e imposto predial. Somando-se essas contas às despesas com equipamentos de telefonia, dos quais fazem parte o telefone, o pager, a TV a cabo, a Internet, chega-se a um total de 11,9% apenas para manter o funcionamento de uma casa.
"Esses itens você primeiro consome e depois tem de pagar", lembra Heron do Carmo, economista e coordenador do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) da Fipe. Apesar do empenho da população em obedecer às metas de racionamento estabelecidas pelo governo, é muito difícil controlar o consumo através dos medidores de água e luz. A despesa com telefone, que nos gastos familiares representava 1% do IPC em 1990, chega a 3% nos dias de hoje. É preciso computar que cresceu o acesso das famílias brasileiras aos serviços de telefonia, que abrangem também a área de informática e aparelhos celulares. Só em São Paulo, o Grupo Telefônica praticamente dobrou o número de linhas em serviço: de 5,8 milhões em setembro de 1998 para 11,2 milhões em abril de 2001; nos lares da classe C a instalação de linhas saltou de 33% para 69% em dois anos, e na classe D quadruplicou, subindo de 11% para 42% no mesmo período. Mais telefones significam, é claro, mais contas para pagar e a possibilidade de estourar o orçamento no fim do mês. Tanto que, no primeiro trimestre deste ano, a inadimplência na rede Telecom foi de 3,2%, de 8% nos serviços da Embratel, de 5,8% na Telefônica e de 5,4% na Telemar.
Condições precárias
Se pode controlar seus carnês de compra de móveis, eletrodomésticos, sapatos e roupas, mudando hábitos de consumo economia na comida, na roupa, e até no lazer e na escola em que matricula os filhos para ajustar o orçamento ao salário, a família não consegue fugir desses outros preços, justamente os que vêm nas contas dos órgãos públicos ou são fixados pela prefeitura, pelo estado, pela União. São despesas representadas por siglas bem conhecidas da classe média, como IPTU, IPVA, IR, que atormentam o contribuinte todos os anos.
Se a situação é essa para a classe média, pior ainda para as categorias abaixo dessa linha. Quem consulta o Perfil dos Municípios Brasileiros, divulgado há pouco tempo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), se depara com uma informação dolorosa: chega a 1 milhão o número de domicílios em condições precárias e a 63 mil o de loteamentos irregulares em mais de 5 mil municípios brasileiros. Condições precárias significam, entre outras coisas, que quem mora lá se serve de água de poço, o esgoto corre a céu aberto, gambiarras levam a energia da rede pública para as casas, em cujas cozinhas espiriteiras ainda dividem espaço com fogões a gás quase sempre mal regulados. É lá que mora quem tem renda vinculada ao salário mínimo, cujo aumento sempre depende de decisão política do governo federal (este ano, o salário mínimo é 18% maior que o do ano anterior), ou apenas consegue reajuste pelo índice da inflação e não tem condições de pagar os preços cobrados por serviços públicos. Para efeito de comparação, vale dizer que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), utilizado na maioria dos dissídios trabalhistas, foi de 5,44% em 12 meses terminados em abril de 2001.
Quando o Plano Real começou, a renda per capita do Brasil era de R$ 2.280,25, e em abril de 2001 foi calculada em R$ 6.560 acusando um aumento nada desprezível de 187%, quase o triplo do valor de 1994. O ano passado fechou com um Produto Interno Bruto (PIB) que ultrapassou a barreira do R$ 1 trilhão pela primeira vez na história, marco acentuado por ter sido batido o recorde depois da desvalorização cambial de 1999. Este ano, prevê o ministro Pedro Malan, da Fazenda, o PIB chegará a R$ 1,2 trilhão, mesmo com alguma redução no ritmo esperado de expansão, que acumulou mais de 100% nesse período.
PIB maior e renda per capita quase triplicada seriam sinais evidentes de prosperidade nacional, ainda mais que há outros indicadores positivos em curso ao longo da primeira metade de 2001: queda no ritmo da taxa de desemprego, por exemplo, e manutenção dos índices de inflação em níveis baixos, mesmo que sob diversos riscos de repiques. Mas há por trás disso tudo uma face cruel que muda o cenário da história: o crescimento da arrecadação fiscal, sempre acima das metas do próprio governo, levando para o Tesouro boa parte dos ganhos das famílias, que não saem do sufoco porque, se os preços concorrenciais baixam ou pelo menos não sobem mais com tanta velocidade , os chamados preços administrados, aqueles para os quais o governo ainda dá a palavra final, quando não os define diretamente, continuam esfolando a pele de quem anda de ônibus ou metrô, paga conta de luz, água, gás e telefone, enche o tanque de combustível do carro e, desconfiado do INSS, tenta se proteger contratando um plano de saúde particular.
Pode parecer paradoxal, mas esses preços em alta que corroem o orçamento familiar também concorrem para fazer crescer o PIB. Em cinco anos, revela pesquisa feita pelo IBGE, a participação dos serviços de energia elétrica e de comunicações e dos aluguéis no PIB cresceu 31%. Para um Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA) com alta de 66,56% nesse intervalo de tempo, as tarifas desses serviços cresceram 246%. A privatização do setor e a enorme gama de novos e freqüentemente melhores serviços prestados agora pelas ex-estatais justificam boa parte do aumento, embora nem por isso deixem de pesar no orçamento doméstico. Mas a maior parcela vem mesmo do lado dos impostos.
Estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) mostra que, em 1994, os 153 milhões de brasileiros pagaram em impostos um total de R$ 136,73 bilhões, o que dá uma contribuição per capita de R$ 893,68. No ano passado, os 169 milhões de brasileiros (10% mais que antes) recolheram R$ 342,01 bilhões (151%), elevando a participação individual a R$ 2.023,73 (126%). É dose pra Leão, desculpem a obviedade do comentário. Em 1994, foi recolhido como Imposto de Renda um total de R$ 18,87 bilhões; em 2000, de R$ 56,40 bilhões um aumento de 198%.
O saque ficou ainda mais claro quando, há pouco mais de dois meses, os brasileiros fecharam sua declaração de rendimentos e sentiram na pele que, a cada ano, a classe média recolhe mais impostos, principalmente o Imposto de Renda. Outro cálculo do mesmo IBPT indica que o IR cobrado a mais, pela falta de correção nas tabelas, vai de R$ 686, para quem tem salário mensal de R$ 1,5 mil, a R$ 1.734, para quem recebe R$ 15 mil ao mês. O instituto usou para essa simulação o IPCA do IBGE (35,28% de 1996, data em que a Receita Federal fez a última correção na tabela, a 2000).
O que melhorou
O lado tragicômico da história toda é que na última segunda-feira de abril, data final para a entrega das declarações, a Internet ficou congestionada, pois grande parte dos contribuintes usou seus PCs para cumprir a obrigação fiscal. Há poucos anos, as agências de banco tinham esquemas especiais, incluindo abertura no fim de semana, para atender as longas filas de quem tinha de entregar seu Imposto de Renda. O Brasil ostenta a marca de país latino-americano com maior número de PCs 10 milhões de usuários , um dos mais expressivos mercados de Internet, apesar de apresentar elevadas tarifas na importação de bens de informática.
O peso de cada um dos itens obrigatórios nas despesas domésticas vem sofrendo transformações nos últimos dez anos, assim como o tamanho da família média brasileira, que antes tinha 4,5 integrantes e encolheu para 3,4. Os sinais de mudança, principalmente depois do Plano Real, em 1994, já podem ser detectados e apontam para alguma melhora nas condições de vida do trabalhador em relação ao início da década passada.
Faz um bom tempo que a dona-de-casa que vai às compras não convive com a falta de determinados produtos nas prateleiras e muito menos com as filas, tão comuns nos anos 90. Consegue, ainda com dificuldades, acrescentar novos itens ao cardápio diário da família e diversas vezes inclui iogurte, bolachas e chocolates na lancheira das crianças. Arrisca-se na compra a crédito para ter um novo aparelho eletroeletrônico, tem acesso à TV por assinatura (em 1996, eram 4% da população total, índice que passou para 8% em 2000; 81% dos assinantes são das classes A e B, 17% da classe C e 2% das classes D e E). E pode desfrutar até de algumas comodidades, como o telefone celular, com as quais nem ousava sonhar num passado recente.
A renda média mensal cresceu 29,8% em 1999, segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais 2000, do IBGE, na comparação com estudo semelhante realizado em 1992. Mas a realidade não é tão cor-de-rosa e mostra que o brasileiro continua vivendo apertado.
A inadimplência de crédito quase dobrou. Em São Paulo, segundo o economista Marcel Solimeo, da Associação Comercial de São Paulo, os indicadores baseados no Serviço de Proteção ao Crédito mostram que a inadimplência pulou de 4,5%, há dez anos, para 9,5%. No entanto, é preciso considerar que agora o acesso ao crédito e a prazo é maior. Mas pagar carnê em dia sempre foi ponto de honra para a maioria das famílias de renda mais baixa. Michael Klein, filho de Samuel Klein, o fundador das Casas Bahia, uma das maiores no varejo popular, explica que a cada ano são feitos 10 milhões de crediários. Do cadastro de 5 milhões de pessoas, dois terços renovam compra antes de terminar o carnê. Segundo declarou à imprensa recentemente, algumas vezes a pessoa pode ter o nome registrado no SPC, mas nada consta contra ela no cadastro das Casas Bahia. Nesse caso, o que vale é o da loja, que vende sem problemas.
Nesse panorama, não dá para perder de vista que o peso de cada um dos itens que compõem o orçamento doméstico varia segundo a faixa salarial de cada trabalhador. Daí a importância de fazer uma nova leitura sobre esse peso, conforme propõe Heron do Carmo, da Fipe. Segundo ele, alguns itens como vestuário e alimentação apresentaram queda. Gasta-se muito com habitação, em função do aumento constante das tarifas e do fato de que não se pode simplesmente cortá-las. Tanto que subiram 154% em relação à inflação acumulada de 90,25% do Plano Real até abril deste ano.
O preço da escola
Gasta-se mais agora com educação no orçamento doméstico? Segundo o economista, o valor manteve-se praticamente estável, passando de 3,9% em 1991 para 3,8% em 2000 no caso das famílias que ganham até 20 salários mínimos. "É claro que a realidade não é a mesma para quem está nas extremidades dessa faixa salarial, onde os gastos com educação são distintos", afirma. Esse item dói mais no bolso de quem paga uma mensalidade média de R$ 500 por mês para cada filho mantido na escola privada numa cidade como São Paulo. E bem menos para aqueles que usam a escola pública e arcam somente com o custo do material escolar.
E esse contingente é bem mais expressivo: dos 50 milhões de alunos matriculados da educação infantil ao ensino superior , apenas 6,4 milhões freqüentam escola particular, ou seja, 12,8%, segundo dados do Censo Escolar de 1999, do Ministério da Educação. A inadimplência de famílias que não conseguem pagar em dia a mensalidade é grande, e a alternativa tem sido a transferência do filho para a escola pública.
"Eu diria que a família que tem os filhos em escola particular gasta boa parte de seu orçamento com educação e também com saúde, no caso de ter plano de saúde para todos os dependentes", diz Heron do Carmo. Saúde representa hoje 7,1% do orçamento, contra 4,6% registrados na última Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 1991.
Vale lembrar, segundo o economista, que no início da década de 90 quem precisasse dos serviços de um médico particular pagava do próprio bolso, e só uma pequena parcela com renda mais alta contava com plano de saúde. Essa realidade mudou, e hoje muitos se associam a um plano de saúde ou usufruem plano da empresa onde trabalham.
Já para a população de baixa renda, que não tem outra opção senão fazer uso da rede pública de hospitais e postos de saúde quando adoece, além de conseguir remédios distribuídos gratuitamente, o item saúde não tem peso significativo no orçamento. Nesses casos, embora o bolso do trabalhador não seja muito afetado, a qualidade do serviço deixa muito a desejar.
Os gastos com as despesas pessoais da família média brasileira lazer, higiene e cultura foram mantidos: 12,4% em 1991 e 12,3% em 2000. A indústria do vestuário modernizou-se e, ante a concorrência até de importados, começou a oferecer preços competitivos, ampliando o acesso à população de diferentes faixas de renda. Em 1991 a compra de roupa nova representava 8,6% do orçamento e em 2000 caiu para 5,3%.
O mesmo ocorreu com a alimentação. Em média, esse item pesa hoje menos no bolso do brasileiro, embora o nível de consumo tenha se mantido. Dados da POF mostram que as despesas caíram de 30,8% em 1991 para 22,7% em 2000. "O gasto é proporcional à renda do trabalhador. Na década de 1930, a família paulistana consumia metade do orçamento na compra de alimentos. Hoje quem ganha menos compromete sua renda com a alimentação, mas é desprezível seu custo nas famílias de renda mais alta", garante Heron do Carmo.
Maior produtividade
Muita coisa mudou na alimentação do brasileiro desde a implantação do Plano Real. O sumiço de produtos dos supermercados, o aumento abusivo do preço e as filas e cotas para consegui-los fazem parte de um passado recente, inaugurado com o Plano Cruzado. Na avaliação de Nelson Martin, diretor do Instituto de Economia Agrícola da Secretaria de Agricultura do estado de São Paulo, o Plano Real acabou com a especulação do setor, que triplicava preços. A importação rápida, quando acontecem quebras de safras, serviu para estabilizar o mercado.
"Melhorou a tecnologia do setor produtivo e, como conseqüência, cresceu a produtividade nas safras de grãos, na pecuária, na produção de açúcar, laranja e hortaliças. Com isso, o preço médio dos alimentos subiu bem menos do que o de outros componentes do orçamento doméstico", conclui.
A estabilização da economia mudou o mercado e aumentou o poder de compra do brasileiro. A indústria de alimentos beneficiou-se até o fim de 1996, quando houve grande consumo de produtos de valor agregado. Denis Ribeiro, diretor do Departamento de Economia da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos (Abia), afirma que cresceu 35% o consumo de produtos como refrigerantes, lácteos, chocolates e frango. A partir de 1997, com o impacto de crises econômicas internacionais e a elevação de juros na economia brasileira, ocorreu sensível diminuição no consumo da classe mais pobre. Apesar disso o setor revitalizou-se, segundo ele: reduziram-se custos, a concorrência melhorou a qualidade dos produtos e sua competitividade aumentou.
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