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Potencial invejável

 

Bagaço de cana: potencial de 4 gigawatts / Foto: Arquivo PB

Ameaça de apagão desperta o interesse por fontes alternativas

RAFAELA MÜLLER

Diante de uma crise energética sem precedentes, o Brasil busca alternativas para a geração de eletricidade e volta a discutir a exploração de novas fontes renováveis de energia. Até agora, porém, somente as termoelétricas a gás natural, priorizadas pelo governo como solução de curto prazo, têm ocupado o centro das atenções. Com essa opção, no entanto, corre-se o risco de deixar de lado pesquisas e aplicações que poderiam levar a uma verdadeira mudança na matriz brasileira de geração de energia elétrica, rumo a um modelo mais sustentável do ponto de vista ambiental, estratégico e econômico.

O aproveitamento de muitas dessas fontes renováveis, como o vento, o bagaço de cana e outros resíduos industriais e agrícolas, já é viável e apresenta enorme potencial. Os óleos vegetais e o lixo urbano, por exemplo, podem em poucos anos trazer uma contribuição significativa à produção de eletricidade do país. Mesmo tecnologias mais avançadas, como a dos painéis fotovoltaicos, que transformam a luz solar em energia elétrica, apesar de mais caras, já encontram diversas aplicações e poderiam tornar-se acessíveis em alguns anos. Não é por acaso que os especialistas são unânimes em dizer que, ao contrário de muitos outros países, o Brasil dispõe de várias alternativas interessantes.

Enquanto as cidades correm o risco de sofrer apagões, muitas localidades no campo e em lugares isolados do país têm energia elétrica garantida, gerada a partir da queima de óleos extraídos de plantas locais. Essas comunidades, que antes não tinham eletricidade ou utilizavam o diesel para obtê-la, hoje são um exemplo de produção sustentável que pode levar energia elétrica aos cerca de 25 milhões de brasileiros que não a têm e, num futuro não tão distante, garantir geração em maior escala. De acordo com Suani Teixeira Coelho, secretária executiva do Cenbio (Centro Nacional de Referência em Biomassa, iniciativa do Ministério de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Energia do Estado de São Paulo e outras instituições), é possível gerar energia elétrica a baixos custos utilizando como combustível o óleo de plantas locais, com freqüência nativas, como abacate, algodão, coco, amendoim, dendê, mamona, milho, urucum e soja, entre outros.

No Pará, o Cenbio dá assessoria à Comunidade Vila Boa Esperança, onde mais de cem famílias utilizam eletricidade gerada a partir da queima do óleo de dendê que produzem. Buriti, babaçu e outras frutas típicas são a fonte de energia para 250 casas de Carauari, comunidade do interior do Amazonas. Essa alternativa, além de evitar a emissão de gases poluentes, reduz as despesas com compra de velas, querosene ou óleo diesel. "Às vezes, para transportar um barril de diesel até lá, mais três seriam gastos", conta Armando Shalders Neto, da Secretaria de Energia do Estado de São Paulo. Mas esse tipo de geração enfrenta o problema da falta de interesse comercial, já que o consumidor é exatamente a população de baixa renda.

Apesar de tradicionalmente usados em pequenas comunidades, os óleos vegetais têm potencial para geração de maior porte. O Ivig (Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a Petrobras, desenvolve um projeto de produção de biodiesel a partir de óleos vegetais para utilização em automóveis e para geração de energia elétrica. Análises químicas mostraram que o biodiesel é similar ao óleo diesel e, atualmente, os testes mecânicos já estão ocorrendo. O biodiesel deve ser introduzido no mercado através do B20 – mistura de 20% de biodiesel com 80% de diesel. Segundo Luciano Basto, coordenador executivo do Ivig, espera-se que a homologação para a utilização desse combustível em todo o país seja obtida no início do próximo ano e que seu emprego na geração de eletricidade em regiões mais isoladas ocorra em breve. O uso do biodiesel reduz em 98% as emissões que contêm enxofre e em 78% as dos gases responsáveis pelo efeito estufa.

Num esforço para conjugar bom potencial e benefícios ambientais, cresce o interesse pela geração de eletricidade a partir do reaproveitamento de diversos resíduos. No caso do lixo, de acordo com Luciano Basto, dos 20 milhões de toneladas produzidos a cada ano no Brasil, 7 milhões poderiam ser reciclados e os 13 milhões restantes gerar energia elétrica, na ordem de 50 milhões de MWh por ano, o equivalente a mais de 15% do total produzido no país. A tecnologia mais simples é o aproveitamento do biogás – ou gás do lixo –, liberado na decomposição dos materiais, com o qual seria possível obter 2,1 milhões de MWh. Outra alternativa em estudo é a utilização de celulignina, combustível sólido produzido a partir do aproveitamento de restos alimentares. Nesse caso, a geração chegaria a 20 milhões de MWh por ano. O esgoto, por sua vez, poderia gerar energia a partir do metano liberado na digestão anaeróbica realizada por bactérias. As poucas estações de tratamento de esgoto que existem, entretanto, apenas queimam o gás. "É como jogar dinheiro fora", lamenta Suani Teixeira.

No caso do bagaço da cana-de-açúcar, esse material já vem sendo usado pelas usinas de cana para gerar eletricidade. No estado de São Paulo, elas já são auto-suficientes, e algumas até vendem energia para a rede. "Mas o excedente que comercializam é de cerca de 50 MW, o que não é nada comparado ao potencial que temos", explica Suani Teixeira. O país mói hoje 300 milhões de toneladas de cana em 350 usinas (safra 1999/2000) e tem um potencial de geração de eletricidade a partir do bagaço estimado em 4 mil MW, com tecnologia comercialmente disponível, segundo dados do Cenbio. "O problema não é tecnológico, é político", completa Suani Teixeira. De acordo com o físico José Goldemberg, professor colaborador do Instituto de Energia e Eletrotécnica da USP (IEE/USP), "a estrutura favorece as fontes tradicionais e, quando não há escassez, ocorre até um ‘desincentivo’ às renováveis, como acontece, por exemplo, com essa possibilidade de utilizar o bagaço de cana em maior escala".

Do espaço para a terra

Quando se fala em usar a luz do sol para gerar energia elétrica, a tecnologia mais eficaz são os sistemas fotovoltaicos, construídos com materiais semicondutores, como o silício, que, sensibilizados pela luz solar, geram corrente elétrica. A tecnologia foi usada pela primeira vez no satélite espacial norte-americano Vanguard 1, em 1958, como fonte de reserva para a bateria do rádio, e sua eficiência ficou comprovada, pois o aparelho continuou emitindo sinais mesmo depois que o satélite já havia sido desativado.

No Brasil, como em vários outros países, os sistemas fotovoltaicos são utilizados para a eletrificação de comunidades rurais a que a rede não pode chegar, por ser economicamente inviável ou por se tratar de áreas de preservação ambiental. Segundo o engenheiro Roberto Zilles, do IEE/USP, a própria população pode efetuar a manutenção dos painéis de captação e a troca das baterias que armazenam a energia produzida, operações que não apresentam dificuldades quando são bem explicadas.

O IEE assessora hoje duas comunidades do município de Cananéia, no vale do Ribeira (SP), e mais quatro na região do alto Solimões, no Amazonas. "Começamos instalando os painéis fotovoltaicos nas escolas, para conseguir o envolvimento de toda a comunidade", conta Paulo Serpa, antropólogo que acompanha os trabalhos. Hoje, além das escolas, muitas casas já dispõem de luz elétrica graças à energia solar. O antropólogo ressalta que a inserção dessa tecnologia ajuda a evitar o êxodo rural e a preservar o modo de vida local.

A energia solar fotovoltaica também enfrenta a falta de interesse comercial, que poderia propiciar uma produção em maior escala, uma vez que grande parte dos atuais usuários são pessoas de baixa renda. O preço para o mercado residencial e comercial de pequeno porte, de acordo com o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel), vinculado à Eletrobrás, é de duas a quatro vezes maior que o da eletricidade convencional. "Mas já houve uma redução de aproximadamente 40% nos últimos cinco anos", afirma Roberto Zilles. Com a manutenção dessa tendência, a tecnologia pode vir a ser competitiva, inclusive para as cidades, num prazo de cinco a dez anos, segundo o Cepel. Para Zilles, a redução do preço depende muito mais da escala de produção do que de melhorias tecnológicas.

Em âmbito nacional, o Programa para o Desenvolvimento Energético de Estados e Municípios (Prodeem), do Ministério de Minas e Energia, já instalou muitos sistemas fotovoltaicos em comunidades isoladas do país. A coordenadora do Prodeem em São Paulo, Maria Julita Ferreira, insiste na importância de criar e manter uma estrutura governamental de pesquisa e apoio a projetos com fontes renováveis de energia, como a fotovoltaica. "Senão, tudo isso vai virar sucata", ressalta.

Mesmo sem estar estabelecida no mercado, a tecnologia fotovoltaica vem despertando crescente interesse em empresas multinacionais, principalmente de grandes grupos de petróleo, que se adiantam na corrida por alternativas para fazer face ao declínio dos combustíveis fósseis. A tendência, concordam os especialistas, é de que essas empresas se tornem, cada vez mais, produtoras de energia, investindo em várias fontes de geração.

Outra tecnologia de produção de eletricidade a partir do sol pode aumentar o leque de alternativas limpas em alguns anos. As plantas heliotérmicas, também conhecidas como sistemas de CSP (do inglês, concentrating solar power), têm um princípio semelhante ao de uma termoelétrica: o sol aquece um fluido – gás ou líquido, que se transforma em vapor – que faz girar uma turbina, produzindo energia elétrica. De acordo com o Cepel, um estudo sobre a viabilidade técnico-econômica dessa tecnologia no Brasil está em fase de preparação. Nos Estados Unidos, mais de 354 MW são gerados graças a essa alternativa.

Porém, se a questão é o curto prazo, o aquecimento a partir da energia solar pode ser muito interessante para a redução do consumo de eletricidade. Aquecedores solares para chuveiros, responsáveis por cerca de 7% do consumo de energia elétrica do país, já existem no mercado brasileiro há vários anos. "O que importa é torná-los acessíveis a toda a população", ressalta o engenheiro Augustin Woelz, integrante do projeto Aquecedor Solar de Baixo Custo (ASBC), desenvolvido por uma equipe sediada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas da USP (Cietec). Segundo ele, um modelo barato de aquecedor custa hoje por volta de R$ 900. Com o projeto, um modelo mais simples, adaptado às condições de casas populares, poderá ser adquirido a preços entre R$ 15 e R$ 130 e montado pelo próprio usuário. Hoje, ao menos dez sistemas do ASBC já estão funcionando como projeto piloto.

Combustível limpo

No futuro, as pessoas poderão gerar energia elétrica para sua residência e seu carro a partir da mesma tecnologia: as células a combustível a gás hidrogênio. O transporte público também poderá ser movido a hidrogênio, contribuindo para a redução da poluição nas grandes cidades. Dentro da célula a combustível, a energia química de um energético – como o hidrogênio, que atualmente apresenta o melhor rendimento – é transformada em energia elétrica, sem a ocorrência de combustão e sem emissão de poluentes.

O alto custo dessa alternativa ainda não permite que ela seja explorada comercialmente, mas sua inserção no mercado já tem um caminho traçado. "Temos de pensar na célula a combustível a hidrogênio como solução para os locais em que as condições do meio ambiente exigem uma fonte limpa, pois são esses os nichos de mercado que vão possibilitar uma produção em maior escala e a conseqüente redução dos custos", explica Ennio Peres da Silva, professor de física da Unicamp e secretário executivo do recém-criado Centro Nacional de Referência em Energia do Hidrogênio (Ceneh). Ele cita como exemplo a cidade de Los Angeles, que sofre com a grave poluição causada pela imensa frota de veículos. Em casos como esse, a alternativa são os carros "limpos", movidos a energia elétrica, que pode ser proveniente de células a combustível.

No Brasil, a partir da metade do próximo ano, ônibus a hidrogênio estarão circulando pelas ruas de São Paulo, servindo o corredor Jabaquara–São Mateus durante quatro anos, graças a uma parceria entre a Empresa Municipal de Transportes Urbanos (EMTU), Aneel, Ministério de Minas e Energia e USP.

O maior interesse atual é viabilizar a produção de hidrogênio – altamente explosivo – dentro dos próprios carros. "O grande potencial do Brasil neste caso é conseguir o gás a partir do etanol, obtido da cana-de-açúcar", ressalta Ennio Peres. Um outro processo para obtenção de hidrogênio, a eletrólise da água, explica o físico, requer uma área ampla, possível no caso de geração de energia para residências. O Ceneh desenvolve hoje um protótipo de equipamento para obtenção do hidrogênio pelo etanol para ser usado em carros, que deve ficar pronto até o final do próximo ano.

Falta incentivo

Alternativas não faltam. Em diferentes estágios de desenvolvimento, com uso já disseminado ou em projetos piloto, as fontes renováveis para a geração de energia elétrica não podem mais ser consideradas possibilidades remotas e pouco eficazes.

"Temos sol e água, poderíamos produzir uma energia limpa para substituir os combustíveis fósseis, que, segundo os mais otimistas, não vão durar mais que 60 anos", ressalta Armando Shalders. Muito já está sendo feito, mas mesmo as fontes que já são comerciais carecem de mais incentivos e diretrizes mais claras. "O que falta é um lobby tão forte quanto o que as tecnologias tradicionais já têm", afirma o engenheiro Augustin Woelz. O físico José Goldemberg ainda sugere: "É possível resolver o problema do custo e do desconhecimento que as pessoas têm das fontes renováveis de energia introduzindo um dispositivo na lei que obrigue as empresas de energia a vender uma porcentagem fixa de eletricidade proveniente dessas fontes, como já ocorre em países da Europa e nos EUA".

Momentos de crise costumam ser propícios para o desenvolvimento de novas alternativas. Resta garantir que essas fontes renováveis, abundantes no Brasil e condizentes com a crescente preocupação ambiental, tenham seu espaço para que possam desde já contribuir para solucionar a crise e indicar um novo caminho, diversificado e descentralizado, para a geração de energia elétrica no Brasil.


Vantagens de uma boa ventania

"A energia eólica é uma das melhores alternativas para gerar muita energia em curto prazo", afirma Everaldo Feitosa, diretor do Centro Nacional de Energia Eólica (CNEE). "Nossas jazidas de vento são as melhores do Brasil e do mundo", explica ele, referindo-se ao potencial eólico da região nordeste, que é de 10 mil MW. Segundo o Cepel, o potencial dos ventos brasileiros é de cerca de 60 mil MW, e a estimativa é de que mais de 25% poderia ser efetivamente aproveitado. "A capacidade instalada poderia chegar a 20 mil MW, mas hoje há apenas 20,3 MW", relata Feitosa. "Se o governo definisse um preço para que o investidor pudesse colocar a alternativa no mercado e adotasse uma resolução para obrigar as distribuidoras a comprar essa energia, poderíamos ter 2 mil MW em dois anos." O diretor do CNEE ainda lembra que a instalação de uma turbina é rápida e tem baixo impacto ambiental, deixando a área livre para a agricultura ou pecuária.

"A tecnologia está dominada e tem um custo totalmente compatível com o das usinas térmicas", ressalta o engenheiro Augustin Woelz. Segundo o CNEE, o custo desse tipo de geração está na faixa de US$ 60 a US$ 80 por MWh. A primeira turbina brasileira, de 75 kW, foi instalada em Fernando de Noronha em 1992. Hoje, instalações eólicas de grande porte concentram-se nos estados do Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e Paraná. Existem mais de 30 mil turbinas no mundo, e a União Européia pretende, até 2010, gerar 10% de sua eletricidade a partir dos ventos, o que equivaleria a um potencial de cerca de 60 mil MW – quase o total do potencial instalado do Brasil, hoje na casa dos 70 mil MW.

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