Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Clareou e alumbrou

 

Maria Clara, em julho de 1977 / Foto: Reprodução

Maria Clara Machado nasceu e viveu para o teatro

JORGE LEÃO TEIXEIRA

O fenômeno Maria Clara Machado é o resultado de uma feliz coligação entre intuição, criatividade e coragem de fazer. Intuir, criar e realizar estiveram presentes na sua vida desde os tempos do teatro de bonecos, que ela fazia com grande prazer, na Fundação Pestalozzi, no Patronato Operário da Gávea e na favela em suas imediações, em festas de aniversário infantis. Bonecos que anos depois ressurgiriam em suas peças, interpretados por gente de carne e osso: Pluft, Maroquinhas Fru-Fru, o Boi e o Burro. E que foram as sementes de sua aventura no Tablado, o grupo que fundou com Martim Gonçalves e alguns amigos que freqüentavam as famosas domingueiras promovidas pelo seu pai, o escritor Aníbal Machado.

O Tablado completa no final deste ano nada menos que cinco décadas de atividade ininterrupta, marco que ela infelizmente não conseguiu comemorar. Costuma-se dizer que o Tablado é um triunfo da iniciativa privada, pois em sua longa vida raras vezes recebeu verbas oficiais. Numa dessas ocasiões, justiça se faça, ela veio de Edmundo Moniz, então diretor do Serviço Nacional de Teatro, para que o teatrinho modesto do Patronato, atingido por um princípio de incêndio, fosse transformado num teatro de verdade, já que até então os espectadores sentavam-se em cadeiras emprestadas por uma escola que funcionava no local (quando a peça fazia sucesso e lotava a platéia, o jeito era acomodar o público nos bancos trazidos de uma capela situada no pátio da instituição). E gerenciando essa iniciativa, com entusiasmo, espontaneidade e uma energia que conflitava com sua figura frágil, estava a incansável fundadora do grupo.

Criatura singular, que o diretor inglês George Devine definiu como a little fighting woman (uma mulherzinha lutadora), pairava acima de vaidades mundanas, passando ao largo do prestígio que possuía, dentro e fora do país. As peças infantis de sua autoria foram representadas no Brasil por dezenas de grupos e traduzidas em diversos idiomas.

Nem tudo foi fácil para Maria Clara, que cresceu entre dúvidas, receios e desencontros com o que dela esperavam e o que ela ainda não descobrira. Era filha de um escritor de idéias avançadas mas que desejava das filhas um comportamento digno da tradicional família mineira – estudar, namorar, casar e ter filhos, arranjando, se possível, um emprego enquanto o príncipe encantado não surgia. Apesar disso, ela partiu para a França, com uma bolsa, matriculando-se num curso que tinha a supervisão de Jean-Louis Barrault.

De volta da França ganhou um papel no filme Ângela, da Vera Cruz, dirigido por Alberto Cavalcanti. A locação era em Pelotas (RS), e tudo deu errado na filmagem, culminando com uma briga que resultou na substituição de Cavalcanti por Tom Payne. O filme, que era ruim, lhe valeu apenas pela experiência profissional que adquiriu. Mas a vacinou contra o cinema. O teatro seria o seu destino e sua missão. Nem mesmo a televisão conseguiu seduzi-la, quando escreveu uma novela para a Rede Globo, chamada "A Patota".

Atriz ou diretora?

Um dos dilemas que Maria Clara enfrentou foi o de sua presença no palco, ora como atriz, ora como diretora. Entre a Farsa do Advogado Pathélin, texto medieval francês que um grupo pré-Tablado, Os Farsantes, montou em 1949, e o ano de 1961, Maria Clara trabalhou como atriz em dez espetáculos encenados pelo Tablado, além de uma participação em O Diálogo das Carmelitas, de Georges Bernanos, no Teatro Copacabana. Em 1981, aceitou o desafio de substituir Henriette Morineau, que adoecera, em Ensina-me a Viver, no Rio de Janeiro e São Paulo. E, em 1985, concluiu sua carreira como atriz fazendo um papel na comédia Este Mundo É um Hospício (Arsênico e Alfazema). A partir de 1961, contudo, já decidira encerrá-la, concentrando sua atividade nos trabalhos como autora, diretora das peças que escrevia ou remontava, e no acompanhamento dos cursos livres que começara a promover no Tablado e que hoje em dia reúnem mais de 500 alunos. Os cursos atendem, por faixa de idade, crianças, adolescentes, adultos e até a terceira idade, uma das muitas invenções de Maria Clara que deu certo.

Embora tenha se destacado pela exigência e cuidado não só como encenadora mas na escolha de responsáveis por cenários, adereços e trilha sonora, como autora Maria Clara era um primor de indisciplina. Pluft, o Fantasminha foi escrito em 20 dias. O Cavalinho Azul levou um ano para ficar pronto, porque era difícil conciliar seu caráter cinematográfico com a adequação para o palco. A Menina e o Vento, Maroquinhas Fru-Fru, A Gata Borralheira, Aprendiz de Feiticeiro e Maria Minhoca são peças que surgiram após o convívio com a psicanálise, traduzindo sua alegre crítica às convenções sociais. De uma coisa, porém, ela sempre teve consciência: peça infantil não é instrumento educativo para crianças, que não estão preparadas para ouvir e assimilar os altos e baixos da condição humana. Daí sua preocupação com a necessidade de a criança vencer medos interiores para mais tarde saber usar sua liberdade – o que exige a presença de um herói que lhe sirva de apoio, para que possa chegar a um porto seguro.

Na primeira versão do Cavalinho Azul, o menino Vicente não voltava para casa, mas uma sobrinha, Cacá Mourthé, hoje diretora e atriz, ao ouvir a história, protestou do alto de seus 3 anos: "Ele vai ficar sozinho? Sem voltar para casa?" O certo seria Vicente montar no cavalinho azul e curtir sua liberdade, mundo afora, mas uma criança pequena sente sempre necessidade de retornar para a segurança da mãe e do pai. Por isso, ela se rendeu e fez Vicente voltar para casa.

Maria Clara também escreveu peças para adultos, incidentalmente. Miss Brasil, que pensara em montar com Zezé Mota, foi encenada em 1970, no Teatro Opinião. Os Embrulhos, obra experimental em um ato, subiu ao palco, em 1969, no Tablado. Outra peça em um ato, As Interferências, montada em 1966 no Tablado, é injustiçada ao permanecer na gaveta, seu texto confinado aos números 36 e 57 dos "Cadernos de Teatro", publicação editada pelo Tablado. A ação se passa num hotel de veraneio, onde um grupo de turistas, isolados por uma circunstância inusitada que os detém no local, começa a revelar seus complexos e seus aspectos negativos, num ambiente tenso em que aparelhos de rádio de repente deixam de dar notícias e passam a emitir estridentes sons, interferências que agravam a situação, arranhando os nervos e disparando reações.

Críticas e alegrias

Maria Clara, às vezes, magoava-se ou irritava-se com algumas críticas, principalmente quando diziam que seu trabalho era ultrapassado, ou com aqueles que pessoalmente ou pelo telefone – local e interurbano – indagavam o que poderiam fazer para conseguir matrícula no curso que ela mantinha "para a TV Globo". Na verdade, essa confusão foi gerada pelo grande número de artistas formados no Tablado que atuaram e atuam na emissora. Quanto à acusação de ser uma alienada política, rebatia, citando várias peças infantis de sua autoria que tinham sido retiradas de cartaz por autoridades, em diversos pontos do país, sob a alegação de que eram subversivas, e por isso foram censuradas pelo regime militar.

Outra coisa que a irritava era o desleixo com que suas peças eram tratadas, ou deturpações que sofriam, em montagens de ocasião, feitas por grupos que só pensavam em explorar o nome da autora. Algumas versões estrangeiras também a decepcionaram, principalmente certas agressões ao Cavalinho Azul, em adaptação a que assistiu, na França, e na sem-cerimônia de uma montagem alemã, que mudou o final da peça: nela o cavalo não mais voltava azul, sob o pretexto de que a criançada não poderia ser enganada.

Quanto ao fato de não ter profissionalizado o Tablado – em 1958, o grupo alcançara grande prestígio graças ao sucesso de montagens como A Sapateira Prodigiosa, de Federico García Lorca; Nossa Cidade, de Thornton Wilder; Tio Vânia, de Anton Tchekov; O Baile dos Ladrões, de Jean Anouilh; e O Tempo e os Conways, de J. B. Priestley –, Maria Clara nunca se arrependeu, apesar de ter sofrido bastante quando, inconformados com essa decisão, Geraldo Queiroz, Carmem Sylvia Murgel, Cláudio Corrêa e Castro, Kalma Murtinho e Emílio de Mattos fundaram o Teatro da Praça, que não teve vida longa. Rubens Corrêa e Ivan Albuquerque também decidiram tentar a sorte numa companhia própria, que conseguiu sobreviver graças ao teatro que Rubens construiu em Ipanema, num terreno que pertencia a sua família. Ela, porém, optou pelo teatro amador, para dar longa vida ao Tablado, em sua base do Patronato, decisão cujo acerto o tempo confirmaria.

Essa opção não impediu que ao lado das peças infantis também fossem montados textos para adultos, interpretados pela prata da casa, seus alunos ou ex-alunos, ocasionalmente acrescidos por algum profissional disposto a prestar sua colaboração ao Tablado. "Viver da bilheteria e dos raros auxílios do governo me pareceu impossível naquela ocasião. Estou certa de que o Tablado não teria durado muito. Em compensação, transformou-se num celeiro de vocações teatrais, graças aos nossos cursos. O mais importante foi o fato de que nenhum daqueles que deixaram o Tablado naquela ocasião rompeu comigo, apesar das divergências, mantendo intacta nossa amizade", dizia sem esconder a satisfação, toda vez que alguém abordava o assunto.

Maria Clara também nunca aceitou as insinuações de que o Tablado era elitista, um teatro que só recrutava gente da classe média alta, na zona sul carioca. O Tablado, insistia, sempre fora uma casa aberta para todos. E tinha razão. Paulo Padilha era um humilde aprendiz de alfaiate do subúrbio, apaixonado por teatro, quando começou a assistir aos ensaios de A Sapateira Prodigiosa. Sabia todos os papéis de cor e salteado. Quando o ator que faria o sapateiro sentiu dificuldades com o papel, ele o substituiu imediatamente, começando uma brilhante carreira. Germano Filho também tinha origem humilde, tendo recebido do Tablado apoio médico para tratar-se, quando lá chegou. A molecada da Gávea que jogava pedras no teatrinho foi aliciada por Maria Clara para ajudar na conservação do local e em trabalhos de montagem. Um desses meninos, talentoso, transformou-se num grande iluminador: Jorginho de Carvalho. No velório de Maria Clara, junto a seu caixão, Lui Mendes, emocionado, contava como ela o tirara das ruas para o convívio com o pessoal do Tablado.

Alegrias, Maria Clara teve muitas, principalmente com o sucesso de seus alunos. Hamilton Vaz Pereira, que aos 16 anos interpretou o Maneco, em Camaleão na Lua, fundou o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone. Louise Cardoso, Drica Moraes, Malu Mader, Andréa Beltrão, Maria Padilha, Cinira de Paula, Cláudia Abreu, Miguel Falabella, Carlos Wilson Silveira (Damião), Wolf Maia, Maurício Mattar, Guilherme Fontes, Luís Tourinho, Ernesto Picollo e tanta gente mais saíram daquele bando de jovens que tratava Maria Clara de "Mãe". Todos adoravam sua conversa, seus conselhos, suas brincadeiras – certa vez, mestra na improvisação, expressão corporal e mímica, aluna que foi de Decroix, na França, ela disfarçou-se de mendiga maluca, e, com um porrete na mão, invadiu uma das aulas e botou os alunos para correr, sem que a reconhecessem.

Falar das alegrias também é falar de sua emoção com a grande homenagem que recebeu com o projeto Maria Clara Clareou, que entre 8 de julho e 21 de agosto de 1994 reuniu instalações lúdicas, workshops, seminários e esquetes infantis no Sesc Pompéia, na capital paulista. Na volta ao Rio de Janeiro, confessou a um amigo: "Estou até com medo de me achar uma pessoa realmente muito importante".

Seu nome foi lembrado mais de uma vez para candidatar-se à Academia Brasileira de Letras, com a vitória tida como certa. Essas lembranças a deixavam satisfeita, mas explicava que não era literata, nada tendo a fazer na academia. Considerava-se, apenas, alguém que escrevia peças para crianças. Entre outros motivos, porque gostava de montar e dirigir seus textos.

Comentários

Assinaturas