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O engenho resiste
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Usinas se modernizam, mas ainda escondem problemas sociais
LEONARDO SAKAMOTO
No Brasil, a história da cana-de-açúcar confunde-se com a do país. Desde a
fundação das primeiras cidades até o desenvolvimento da tecnologia de automação, a
exploração da cana criou em torno de si relações que determinaram muito do que somos
hoje.
Uma das conseqüências do longo período de colonização foi o atraso no processo de
modernização. Talvez por isso, ainda hoje encontramos engenhos em diferentes estágios
de desenvolvimento, e com relações humanas muito parecidas com as da época em que
surgiram.
A reportagem de Problemas Brasileiros percorreu os estados de Pernambuco, Bahia,
Minas Gerais e São Paulo visitando essas fábricas de açúcar e álcool. E constatou
que, apesar da evolução da casa-grande, as condições sociais da senzala permaneceram
praticamente as mesmas ao longo dos séculos.
Não há silêncio nas ruínas do Engenho de São Jorge dos Erasmos, no sopé do morro da Caneleira, em Santos (SP). Em suas paredes de pedra, erguidas em 1534 de costas para o mar, está registrado o barulho da cana sendo esmagada, do caldo cozido em tachos, resfriado, colocado nas fôrmas de cerâmica (os pães-de-açúcar que, pela semelhança, vieram a batizar o morro carioca), raspado e, então, pulverizado. Mas, apesar do que as paredes evocam, ouve-se apenas o eco de buzinas de automóveis e da gritaria das crianças nos condomínios ao lado.
Martim Afonso de Sousa aportou em 1531 em terras tupiniquins e, em 1532, dava início à colonização portuguesa. As mudas de cana-de-açúcar que balançaram semanas nos porões dos navios indicavam uma das prioridades: implantar a lucrativa indústria açucareira.
A construção dos engenhos no Brasil foi iniciada na recém-fundada vila de São Vicente, a primeira do país, pelo próprio Martim Afonso. Em 1540, um deles, o de São Jorge, foi vendido à família Schetz, que estava entre os maiores comerciantes da Europa, e incorporou o nome de um de seus membros, Erasmos. Sob sua administração, o engenho chegou ao apogeu durante o século 16, e continuou funcionando até o século 18, mesmo quando o foco de produção há muito já estava na Zona da Mata nordestina.
É o único que resta para contar história. Hoje, a preservação desse patrimônio está a cargo da Universidade de São Paulo (USP), através de sua Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária. "A idéia é transformar a região em uma área educacional para visitação", afirma Margarida Andreatta, professora do Museu Paulista e coordenadora da pesquisa arqueológica.
Os trabalhos de campo, que estavam parados há algum tempo, devem ser retomados agora com a promessa de liberação de recursos pela universidade. O dinheiro chegará em boa hora, pois uma das paredes do conjunto, que está precisando de reparos, corre o risco de desabar.
A mesma sorte não será compartilhada por 1,1 mil famílias de uma comunidade próxima ao engenho. Quando chove, os moradores não dormem à noite com medo de que suas casas sejam levadas pelas águas.
"Em dezembro do ano passado, desmoronou uma casa com seis crianças dentro. Daquela vez, todas saíram com vida dos escombros", lembra Marta Ruas, presidente da Associação dos Moradores de Caneleira III. "Aqui as pessoas dormem com o perigo. Todos sabem que a área é de risco, mas com vários filhos nas costas e sem dinheiro não há o que fazer."
O córrego de São Jorge, que escoou a produção de açúcar do engenho, quando transborda sitia a favela. Os moradores ficam cercados entre a lama do morro e a água do córrego. Falta também espaço dentro dos barracos. Há construções que chegam a medir míseros 3,40 por 2,40 metros. Marta pergunta como é possível pessoas viverem com tão pouco. Amontoados, sem o suficiente nem para comer, não é à toa que morrem cedo. Como os escravos que habitavam as senzalas dos Erasmos séculos atrás.
Escravos e quilombo
Como os índios resistiam à escravidão, intensificou-se o tráfico negreiro para obter mão-de-obra para o empreendimento do açúcar. As condições de trabalho eram insalubres, não havia descanso. Para girar os pesados roletes de madeira, era utilizada tração animal, rodas-d’água (caso dos "engenhos reais") ou mesmo a força humana. E, como a máquina não podia parar, um machado era deixado sempre ao lado como garantia. Se o braço de algum escravo fosse esmagado e preso pelos roletes, o machado cortava o membro, evitando que a moenda puxasse o corpo inteiro, interrompendo a produção.
Muitos negros conseguiam fugir dos maus-tratos das fazendas de cana e iam se esconder na mata. Dessa forma – em busca de liberdade – foram surgindo quilombos do norte ao sul da colônia. O mais famoso deles, Palmares, no atual estado de Alagoas, chegou a reunir dezenas de milhares de almas.
Atualmente existem classificadas 724 comunidades remanescentes de quilombos no país, totalizando mais de 2 milhões de pessoas, distribuídas em 30,6 milhões de hectares. Desde 1998, o governo federal vem conferindo a essas comunidades títulos que atestam a descendência de antigos quilombos e passando as terras em definitivo para as mãos dos atuais moradores. Mas, até agora, apenas 18 comunidades receberam seus certificados de propriedade.
Uma delas é Barra e Bananal, em Rio de Contas, na Bahia (ver matéria publicada em Problemas Brasileiros nº 342). Lá ainda existe uma velha moenda de madeira – movida a tração manual ou por bois – para a produção de rapadura e melaço, que depois são comercializados. Ao cair da tarde, é possível ver senhoras mexendo o tacho com colher de pau enquanto o fogo cozinha lentamente o caldo. Misturam farinha de mandioca ao melaço, criando uma pasta que, de tão doce, provoca dor nos dentes. Atrás do gigante de madeira, uma pequena plantação de cana divide espaço com alguns pés de algodão, feijão, milho, mandioca e tudo o mais que a agricultura de subsistência permite aos 740 habitantes.
Nos últimos 300 anos, a cana se manteve, mas a cultura quilombola foi sofrendo um lento e contínuo processo de desaparecimento, ora devido ao racismo e à invasão de valores externos, ora por conta de uma autocensura que se tornou maior após a abolição da escravidão.
Carmo Joaquim da Silva, presidente da Associação de Desenvolvimento Comunitário Rural de Barra do Brumado, Bananal e Riacho das Pedras, diz que a comunidade ainda está ganhando consciência de sua raça e de seu valor. E, com a ajuda de organizações de cultura negra de Salvador, vem tentando resgatar o que perdeu. Isso no entanto tem de ser feito rapidamente, pois os mais velhos, que ainda guardam em sua memória a cultura do lugar, estão morrendo. E com eles a própria história do quilombo.
Trabalhar por comida
Ironicamente, os negros que vinham trabalhar nas fazendas de cana podiam ser comprados com cachaça. Produzida em alambiques no Brasil e depois transportada pelo Atlântico, era moeda corrente no comércio de escravos na costa africana.
Ainda hoje, a cachaça continua tendo alto valor de troca. Pelo menos na cidade de Salinas, no vale do Jequitinhonha, sertão de Minas Gerais. Devido a uma confluência de fatores – calor, boa água no lençol freático, solo rico – a região produz as melhores marcas do país. A mais famosa delas, Havana, chega a custar R$ 130 a garrafa, em São Paulo. A valorização do produto é tal que o pagamento dos funcionários que trabalham no corte de cana para a Havana também é feito em espécie: duas garrafas por semana.
Toda fama, porém, tem seu preço. "Muita gente está falsificando os rótulos e os selos de controle sanitário de Salinas. Chegam a pegar nossas garrafas vazias e encher com outras aguardentes", diz Sabino Pinto de Souza, proprietário da Preciosa e da Brinco de Prata, que vem enfrentando problemas financeiros por causa da pirataria.
Apesar da falsificação e do alcoolismo – outra grave preocupação na cidade – o maior problema local continua sendo a seca. Sem água para a plantação, o sertanejo do vale do Jequitinhonha deixa sua casa para ir trabalhar no corte de cana nas fazendas de São Paulo, Mato Grosso e Goiás. Com isso, as "viúvas de marido vivo" (esposas, mães e irmãs) ficam boa parte do ano tocando a vida por conta própria. Antônia Moraes dos Santos é uma delas. Mora à beira da estrada que vai para Montes Claros, em Riachinho, município de Rubelita, bem próximo a Salinas. A comunidade tem 150 pessoas. Com seis filhos – o mais velho não fala nem ouve –, Antônia passa meses sozinha quando o marido parte para trabalhar em São Paulo.
"Ninguém aluga ninguém para trabalhar aqui, não. Olha só esse solão, a tempestade de Deus aqui pra gente", lamenta Angelino Pereira dos Santos, que viaja para o corte de cana desde 1986. "A gente tem uma terrinha, mas a seca matou a plantação. Feijão, milho, acabou tudo."
"Se o cara for bom para cortar cana, consegue tirar até R$ 600 por mês. Mas os ruinzinhos, que nem nós, tiram no máximo R$ 200", revela Angelino. Nas fazendas onde costuma trabalhar, R$ 50 são descontados todo mês para alojamento, comida e tudo o mais. E quem é contratado pelos chamados "gatos" (atravessadores), tem um rombo maior no salário: R$ 100.
"Agente de saúde não passa. Médico também não. Morre tudo pelo mato. Muita criança por diarréia, por pneumonia. Depois de 25 anos, é idade para se começar a morrer de doença de Chagas", lembra Betinho Gomes da Costa. "Mas morre-se mais de fraqueza e de doença", como se citasse Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto ("de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida").
Se as moendas de Barra e Bananal e de Salinas pouco evoluíram ao longo do tempo, o mesmo não pode ser dito dos grandes engenhos do nordeste. Do tapete verde da Zona da Mata, vão saltando dezenas de chaminés de tijolos lançando ao céu a fumaça da queima do bagaço de cana. Bois, água e negros foram substituídos pelo vapor.
Escravos foram trocados por trabalhadores livres que recebem salário, que é gasto com produtos manufaturados. A produção explode. A área plantada também. Morre o engenho e nasce a usina.
Durante muito tempo, tudo era cana. Além do açúcar, o álcool, tido como solução tupiniquim para a crise do petróleo na década de 70, ajudou a manter o status quo. Porém, com o fim do Proálcool, combinado a péssimas administrações familiares em um tempo de crescente profissionalização nos negócios, várias usinas fecharam as portas, deixando centenas de desempregados.
A desejada reforma agrária nos latifúndios nordestinos não avança e, por isso, o êxodo rural continua em direção às capitais ou ao sul maravilha. Os cortadores de cana talvez sejam os mais afetados. Trabalhadores sazonais e sem registro na carteira de trabalho, eles dependem da boa vontade das usinas ainda existentes e das flutuações do mercado para conseguir colocar comida na mesa. E as coisas tendem a piorar, pois agora há máquinas para quase tudo: colher, plantar e adubar. É como se o trabalhador não fosse mais necessário.
O caldo que gera luz
A cana, plantada em extensas áreas, é prensada e moída até se extrair todo o caldo. O bagaço resultante do processo segue para ser queimado nas fornalhas e gerar vapor, que movimenta a própria moenda e todo o sistema. Parte dele, porém, é deslocada para uma central que produz energia elétrica suficiente para abastecer toda a usina, e o excedente é fornecido para a rede local. O caldo é transformado em açúcar e álcool combustível. As cinzas resultantes da queima do bagaço e a vinhaça, subproduto da destilação do caldo, servem para adubar a plantação, fechando o ciclo.
Diz-se que do boi se pode aproveitar tudo, menos o mugido. O mesmo ditado vale para a cana nas usinas do interior de São Paulo, que souberam modernizar-se. O setor sucroalcooleiro agora também produz energia elétrica, que é vendida às concessionárias. A Usina Santa Elisa, fundada em 1936, em Sertãozinho, até mudou de nome. Agora é Companhia Energética Santa Elisa, pois, como gostam de ressaltar, tudo o que produzem é energia. A companhia, com a capacidade hoje instalada, tem potencial de geração de 30 MW, dos quais pode jogar até 10 MW para a rede da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL).
Maurílio Biagi Filho, presidente da Santa Elisa e do Conselho Superior de Meio Ambiente e Infra-Estrutura da Fiesp, diz que a eletricidade ainda responde por muito pouco do faturamento total da empresa – 0,4% no ano passado, com previsão de 0,8% neste ano. Mas poderia ser mais. Segundo ele, as usinas de cana-de-açúcar de todo o Brasil poderiam ajudar a solucionar a crise de energia se fossem adotadas políticas adequadas e liberados investimentos. "Se a planta energética do país fosse reestruturada, de modo que a produção através de biomassa tivesse mais espaço, em seis anos forneceríamos 10 mil MW para o sistema nacional."
A Santa Elisa foi classificada pela revista "Exame" como uma das cem melhores empresas para se trabalhar no Brasil – uma exceção no ramo usineiro. Conta com mais de 4 mil funcionários, dos quais 3 mil trabalham no setor agrícola – uma vez que o complexo industrial é totalmente automatizado. Atualmente, cerca de 50% do corte é feito manualmente, mas a tendência é de diminuição gradativa para todas as empresas do setor, ou seja, também aqui os bóias-frias perderão o serviço.
Para os trabalhadores que vêm do Jequitinhonha, a mudança não é boa, pois terão de buscar alternativas para garantir o sustento da família. É o caso de Petronilo Luís Ferreira, 54 anos, que mora entre Araçuaí e Virgem da Lapa. Como vem para São Paulo desde 1973, já se tornou encarregado. "No começo, dormíamos no chão. Mas agora melhorou, dão colchão, beliche", conta ele.
A queima da cana está proibida pelo governo do estado, por razões que vão da poluição até problemas de visibilidade causados nas rodovias. Mas é só dar uma volta por qualquer estrada para ver que caminhões carregados de cana tingida de preto continuam a circular. É que o fogo na plantação antes do corte facilita o trabalho dos bóias-frias, pois elimina folhas e mato, deixando só os roletes.
Lourival Máximo da Fonseca, 27 anos, de Botumirim, próximo a Salinas, é considerado um bom colhedor pelos companheiros. Corta 18 toneladas de cana queimada ou 8 toneladas de cana crua por dia. A fazenda para a qual trabalha paga R$ 1,60 a tonelada. "A folha da cana é afiada, corta o rosto, cega muita gente", diz Petronilo Ferreira, enquanto mostra uma cicatriz no olho. Saudoso, ele acrescenta: "Esta terra está cheia de gente do Jequitinhonha. Se chovesse por lá, não vinha ninguém trabalhar aqui, nem por R$ 500 por dia".
A produção da pequena moenda de Santos ficou para a história. Hoje somente a Santa Elisa fabrica 400 mil toneladas de açúcar e 200 milhões de litros de álcool por ano. Martim Afonso nunca imaginaria que aquelas mudinhas escondidas em seu navio teriam tanto sucesso. Infelizmente, o desenvolvimento dos engenhos favoreceu apenas uma pequena parcela da sociedade. A grande massa dos trabalhadores permanece como antes: vivendo precariamente, sofrendo preconceito, muitas vezes em estado de semi-escravidão, que não distingue crianças de adultos. O engenho ainda existe, e com ele a casa-grande e a senzala.
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