Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Homem de engenho

 

José Lins, em caricatura de Moura

Há cem anos nascia na Paraíba o romancista José Lins do Rego

CECÍLIA PRADA

O centenário de nascimento de José Lins do Rego, ocorrido no dia 3 de junho último, serve-nos não só para a evocação de sua personalidade marcante e de sua vasta obra de romancista, mas para a reavaliação de alguns aspectos polêmicos de que até hoje ela se reveste. Sua geração teve expressão máxima nas décadas de 30 a 50 do século 20 e caracterizou-se pelo engajamento político, de esquerda ou de direita, infiltrado na literatura e nas artes – um reflexo das grandes correntes ideológicas que prepararam a 2ª Guerra Mundial e marcaram todo o século.

Por esse motivo nem sempre a avaliação crítica de sua obra foi isenta e justa. No cenário político tumultuado, o "romance do nordeste", do qual foi Zé Lins o maior representante, sofreu por conta de radicalismos paradoxais, e foi ora exaltado ora menosprezado pelos críticos, apesar da absoluta popularidade de que gozou. Mas a polêmica estabelecida naquele "tempo de homens partidos", como definido por Drummond, não teve apenas aspectos políticos – foi também o grande debate estético-literário entre os defensores de um realismo superado, visto como único meio de expressão para a temática que se propunham, e outros que, voltados para o panorama internacional, queriam ver nossa arte e nossa literatura acertar o passo com a grande ruptura modernista das décadas de 1910 e 1920.

Nasce um romancista

Maceió, uma tarde, no final do ano de 1931. Dois amigos caminham pelas ruas tranqüilas, falando de literatura – Zé Lins e Valdemar Cavalcanti. De repente Zé pega no braço de Valdemar e diz: "Vou escrever um livro, uma espécie de memórias". Em pouco mais de 20 dias, redigindo primeiro num caderno escolar, e depois ditando para que o amigo datilografasse, Zé Lins terminava um romance de cento e poucas páginas que, não obstante o reduzido tamanho e a falta de pretensão, causaria impacto em todo o país – Menino de Engenho. É fácil compreender esse fenômeno. O primeiro parágrafo do romance causa até hoje frisson em qualquer leitor:

"Eu tinha uns 4 anos no dia em que minha mãe morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã me acordei com um enorme barulho na casa toda. Eram gritos e gente correndo para todos os cantos. O quarto de dormir de meu pai estava cheio de pessoas que eu não conhecia. Corri para lá, e vi minha mãe estendida no chão e meu pai em cima dela como um louco. A gente toda que estava ali olhava para o quadro como se estivesse em um espetáculo. Vi então que minha mãe estava toda banhada em sangue, e corri para beijá-la, quando me pegaram pelo braço com força. Chorei, fiz o possível para livrar-me. Mas não me deixaram fazer nada. Um homem que chegou com uns soldados mandou então que todos saíssem, que só podia ficar ali a polícia e mais ninguém".

É claro que o usineiro João do Rego Cavalcanti, pai do escritor, não assassinou a esposa, como acontece no romance. Mas a comparação entre a obra ficcional e o livro de memórias autênticas, Meus Verdes Anos, de 1956, esclarece as circunstâncias trágicas que marcaram a vida do romancista, desde o início – sua mãe, Amélia, faleceu poucos meses após o nascimento do filho, ao que parece em conseqüência de um aborto. Sua irmã, Matilde, substituiu-a na criação do órfão, mas aos 8 anos este sofreria também a sua perda e seria mandado para o internato.

Nascido no Engenho Corredor, em Pilar, na Paraíba, criado como neto de senhor de engenho "que tinha inveja dos moleques da bagaceira", o escritor soube expressar por meio de seu alter ego, o personagem Carlos de Melo, cuja vida acompanhamos nos nove romances do Ciclo da Cana-de-Açúcar (publicados entre 1932 e 1943), as marcas profundas de sua criação em um meio caracterizado pela injustiça, pela violência, pelo machismo e pela repressão sexual – um Brasil rural, dominado pela estrutura latifundiária e pelo coronelismo.

A temática já tinha sido introduzida por alguns romances isolados – como A Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, considerado o marco inicial do ciclo de romances do nordeste, e O Quinze (1930), de Rachel de Queirós. Mas somente seria exposta de forma sistemática e vigorosa na obra de Zé Lins. Sua maneira direta de narrar, sua linguagem simples, calcada na oralidade, contribuíram para a popularidade de seus livros. Seus modelos foram, no ensaio, Montaigne – para o qual o discurso literário deveria ser "simples e ingênuo, tanto sobre o papel como na boca" – e, no romance, Stendhal e Zola. Entre os nacionais, admirava profundamente Machado de Assis, mas não seguiu sua trilha filosófica e introspectiva. Preferia os realistas como Raul Pompéia e Aluísio de Azevedo e confessava-se seduzido por Eça de Queirós, principalmente por Os Maias. Escreveu: "Eça foi um verdadeiro mestre de gerações. Suas obras assumiram papel de livros de educação literária".

Dos 12 romances que deixou, nove são ambientados no nordeste. Manuel Bandeira, que era grande admirador de Zé Lins, dizia-lhe: "Você não deve sair do nordeste. Você é motor que só funciona bem queimando bagaço de cana".

Gilberto Freyre

Aos 17 anos, Zé Lins iniciou-se no jornalismo literário, que nunca abandonou, publicando um artigo sobre Rui Barbosa. Em 1920 foi para Recife, cursar direito. Ainda estudante, conheceu e tornou-se grande amigo do intelectual que influenciaria toda a sua obra – Gilberto Freyre. Com ele, e com Osório Borba e Olívio Montenegro, fundou um semanário de política e literatura, "Dom Casmurro".

Após estudar durante cinco anos nos Estados Unidos e viajar pela Europa, Gilberto, ao regressar a Recife, formou um grupo de intelectuais a quem procurava passar um novo enfoque sociológico dos problemas brasileiros e uma nova visão do nordeste. Muitos não queriam ver nele mais do que "um estranho, um desajustado, um estrangeiro", mas Zé Lins tornou-se seu maior discípulo. Essa amizade perdurou até sua morte. Em artigo de 1941, diria: "Conheci Gilberto Freyre em 1923... e de lá para cá minha vida foi outra, foram outras as minhas preocupações, outros os meus planos, as minhas leituras, os meus entusiasmos".

Por sua vez, Gilberto diria, em artigo de 1975, que em 1924 confessara a Zé Lins o "segredo" de um livro que queria escrever, "sobre a minha própria meninice e sobre o que tem sido nos vários Brasis, através de quatro séculos, a meninice dos vários tipos regionais de brasileiros que formam o Brasil".

Zé Lins realizou esse projeto do amigo, de uma forma mais modesta e precisa, limitando-se a transpor sua experiência de vida, os temas do seu meio, para a obra literária. Em 1936, apresentando Usina, com o qual pretendia fechar o Ciclo da Cana-de-Açúcar, dizia o romancista: "A história desses livros é bem simples – comecei querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço da vida o que eu queria contar".

O grande mérito de Gilberto foi o de provocar no amigo a descoberta do seu próprio talento, transmitindo-lhe elementos culturais – como a revelação da literatura em língua inglesa – que lhe permitissem ultrapassar os modismos literários fanados e a limitação regionalista.

Sem meias palavras

Foi justamente essa incondicional admiração por Gilberto que fez Zé Lins assumir, no início de sua carreira literária, uma posição fundamentalmente crítica em relação ao modernismo resultante da Semana de Arte Moderna. Em 1935, contradizendo um artigo de Sérgio Milliet – que via a eclosão do romance do nordeste como um resultado da efervescência da Semana – o romancista, em seu estilo considerado "destabocado", sem meias palavras, dizia: "Para nós do Recife essa Semana de Arte Moderna não existiu, simplesmente porque, chegando da Europa, Gilberto Freyre nos advertia da fraqueza e do postiço do movimento". E confessava "verificar na agitação modernista uma velharia, um desfrute, que o gênio de Oswald de Andrade inventara para divertir seus ócios de milionário".

Deixando-se levar pelo temperamento impetuoso e emocional, Zé Lins parecia esquecer até que, justamente por iniciativa do antigo amigo Valdemar Cavalcanti, Maceió também havia tido, em 1924, uma Semana de Arte Moderna, copiada da paulista. E que a partir de 1923 as idéias básicas da Semana paulista já haviam chegado a Recife por meio de Joaquim Inojosa e eram discutidas amplamente.

Em Macunaíma, a virulência de Zé Lins via apenas "uma coisa morta, folha seca, mais um fichário de erudição folclórica do que um romance". De Oswald de Andrade, dizia que "a literatura nas mãos dele é sempre um instrumento de suplício para seus inimigos". Essa acesa polêmica, verdadeira guerra entre nordeste e sul, foi prolongada e acirrada, mas os paulistas souberam fazer justiça ao talento de Zé Lins. Mário de Andrade não tomou conhecimento de sua crítica. Retribuiu-a com generosidade ao classificar como "obra-prima" o romance final do Ciclo da Cana-de-Açúcar, Fogo Morto. Sérgio Milliet, igualmente, reconheceria que "Fogo Morto ficará na estante das obras-primas – que não são tão numerosas assim – da literatura brasileira".

Na maturidade, o romancista paraibano voltaria atrás na sua crítica aos "rapazes paulistas de 22": "A gente tem de confessar que havia, ao par das blagues, um interesse humano na força de criação deles", reconhecendo também "a força lírica de Mário de Andrade".

Defensor ele próprio de uma literatura programática, "para fazer a cabeça das pessoas", não poupava críticas nem a Jorge Amado, por querer "salvar a humanidade com seus romances". Não hesitava em classificar como "não-autênticas" e "perturbadas com as tarefas ideológicas" as obras do escritor baiano. Nem mesmo Euclides da Cunha escapava a seu rigor – achava que o sertanejo de Os Sertões correspondia mais à imaginação do autor do que à realidade.

Ontem e hoje

Fácil de entender, portanto, a polêmica estabelecida em torno de sua obra. Um dos mais acirrados críticos foi Wilson Martins, que não conseguia ver em seus livros mais do que um "documento social" e negava à sua obra qualidades literárias, classificando-a de "pobre e frustrada", com pouca probabilidade de sobreviver à época. Dizia, em 1965: "Esses livros de tanto sucesso suportam dificilmente a releitura; relê-los será, forçosamente, reavaliá-los – e reavaliá-los será forçosamente, em nossos dias, tirar-lhes, e não acrescentar-lhes, valor".

Desorientados diante da mistura de realidade e ficção em sua temática, muitos chegaram a negar valor ao romancista, justamente por ser "memorialista". E por retratar apenas "de maneira sombria e pessimista" – ainda segundo Wilson Martins – "uma sociedade ou seres que se desagregam". Como tal, foi definido "romancista da decadência", incapaz de despertar para a realidade do novo Brasil desenvolvimentista e industrializado do pós-guerra.

Mas para outros críticos, como Alfredo Bosi, a fusão dos elementos da memória na narrativa ficcional e o "espontaneísmo" de sua linguagem constituem o maior mérito de Zé Lins. Diz: "À força de carrear para o romance o fluxo da memória, José Lins do Rego aprofundou a tensão eu/realidade, apenas latente em suas primeiras experiências. E o ponto alto da conquista foi essa obra-prima que é Fogo Morto, fecho e superação do Ciclo da Cana-de-Açúcar".

Transcorridos 54 anos da morte de Zé Lins, e longe da euforia do governo Juscelino Kubitschek, no final dos anos 50, o reexame da obra do escritor paraibano, o estudo de seus personagens, das histórias do seu sertão impõe-se a estudiosos de todas as áreas, no Brasil deste início de século 21 – caracterizado ainda pelo brutal contraste social dos vários bolsões de pobreza e miséria existentes em todo o seu território. E pode servir como termo de comparação entre o ontem e o hoje – para mostrar que afinal, na parábola do progresso, muitos pontos se equivalem, avanços e retrocessos sucedem-se. E que, sob a capa que se quer resplandecente da "nona economia mundial", milhões de brasileiros sofrem ainda sob as estruturas decadentes do coronelismo e da violência.

Comentários

Assinaturas