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Transtornos, mas sem causa evidente

Pessoa com TAG: preocupação excessiva ou expectativa apreensiva? / Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Pessoa com TAG: preocupação excessiva ou expectativa apreensiva? / Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Por: MILU LEITE

Nos dias atuais, os problemas de ordem psíquica e psicológica são tantos e variados que está cada vez mais difícil encontrar uma pessoa que se considere cem por cento saudável – pelo menos nos grandes centros urbanos. Transtornos, os mais diferentes, com diagnósticos muitas vezes controversos, habitam cada vez mais os lares, colocando no olho do furacão opções de vida, de trabalho, de aprendizagem. O Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) é um deles. A ansiedade é um sentimento normal. Trata-se de uma resposta fisiológica diante de situações específicas, tendo um papel benéfico – até certo ponto – para a maioria das pessoas. Assim sendo, por exemplo, não há problema algum em ficar ansioso quando alguém avisa que há uma cobra por perto. A resposta de estresse do organismo humano às situações de perigo é necessária para nossa sobrevivência.

Mas não é só nos casos de perigo que a ansiedade surge. Ela antecede, e mesmo acompanha, momentos de alegria, de realizações etc. É normal ficar ansioso quando se aguarda uma premiação ou a realização de uma prova. Quem nunca ficou ansioso, com o coração aos pulos, esperando a resposta para um encontro amoroso? A ansiedade, nesses casos, pinta com cores vibrantes os acontecimentos, tornando as pessoas mais bem dispostas, mais aguerridas.

O problema com a ansiedade desponta quando ela é intensa, constante e desproporcional às situações vivenciadas. Vejamos o mesmo caso da cobra: ao ser informado da presença do réptil, o indivíduo fica alerta e busca uma saída para o problema. Num caso extremo de transtorno de ansiedade, a pessoa não só entrará em pânico como levará esse sentimento consigo para casa. Em outras palavras, para algumas pessoas, a intensidade dessas respostas é mais severa, mais duradoura e pode interferir negativamente no seu dia a dia e nas suas relações interpessoais. O transtorno passa a acontecer de forma desmedida, com medo intenso em situações de aparente ausência de risco. Em outras palavras, é a sensação de receio e de apreensão, sem causa evidente, a que se agregam fenômenos somáticos como taquicardia e sudorese, por exemplo.

Existem vários tipos de ansiedade, como os medos específicos e intensos (fobias), que podem ser de altura, de animais, de chuva, de barcos, de escuro, entre outros. A síndrome ou Transtorno do Pânico (TP) também é considerada um transtorno de ansiedade. Nela, a pessoa apresenta crises recorrentes de pânico e este nada mais é do que a manifestação mais extrema, em intensidade, de um estado de ansiedade. Só que no caso do TP, as crises são fortes e se repetem, fazendo com que o indivíduo muitas vezes busque o serviço de saúde porque acha que vai morrer. O TAG, por sua vez, é um quadro de ansiedade elevada no dia a dia, com sua própria rotina e os acontecimentos habituais. O indivíduo sente-se irritado, desconcentrado, tenso, constantemente aflito com tudo que o rodeia. O TAG pode interferir no sono e no apetite e seu diagnóstico só se confirma quando o quadro perdura por mais de seis meses.

Fobia social

Segundo o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM), trata-se de um distúrbio caracterizado pela “preocupação excessiva ou expectativa apreensiva”, persistente e de difícil controle, que é acompanhado por no mínimo três dos seguintes sintomas: fadiga, irritabilidade, inquietação, dificuldade de concentração, tensão. Para um diagnóstico correto, o médico deve ainda incluir na avaliação o modo de vida do paciente, além de pedir exames complementares.

A fobia social também é um transtorno de ansiedade. Por ter como principal característica um comportamento de timidez extrema, traz enormes dificuldades à convivência social, sobretudo para aqueles que se deparam com situações de exposição, como falar em público, fazer uma pergunta em sala de aula ou comer fora de casa. O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) ocorre quando o indivíduo vive uma experiência traumática, de potencial risco à vida, como um sequestro relâmpago, um assalto ou acidente automobilístico. “Nesses casos, a pessoa apresenta a revivência desse momento com muito sofrimento, além de sobressaltos e sintomas depressivos”, esclarece Ricardo Cezar Torresan, professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp.

O Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e o TEPT também são classificados como transtornos de ansiedade. Pessoas com TOC costumam ter pensamentos repetitivos de dúvida em relação a seus atos. Por exemplo, se trancou portas, se foi contaminada por tocar em algo, se machucou alguém sem notar. As compulsões surgem como resposta a essas dúvidas, ou seja, a pessoa começa a repetir e ritualizar ações na tentativa de aliviar os sintomas. Esse comportamento traz mais prejuízo e sofrimento.

Os transtornos de ansiedade ou de reação ao estresse são, portanto, um grave problema de saúde pública. “Essas manifestações transpassam praticamente todo o tempo de nossa existência”, ressalta Torresan. Ele diz que já foram encontradas documentações muito antigas com as mesmas descrições que os atuais critérios diagnósticos utilizados para classificar a ansiedade e outros transtornos ditos mentais. “Apenas a maneira de explicar e cuidar dos sujeitos acometidos distingue-se conforme a época, a cultura e os recursos disponíveis.” Entre elas, relata o professor, estão textos babilônicos de 3.500 a 4.000 anos atrás, descrevendo alguns quadros psiquiátricos e neurológicos. “Isso demonstra a sua existência atemporal e que havia a percepção de seu impacto nos mais diversos períodos, a ponto de merecerem ser documentadas para as gerações futuras”, ele completa.

Muitos dos quadros ansiosos se iniciam próximo a um evento negativo na vida do indivíduo. Em situações de tragédia, tanto os sobreviventes como seus familiares tendem a ficar extremamente abalados, o que contribui para a ocorrência de depressão, TEPT ou transtorno de pânico. Ou seja, vivências de perda, morte e outros fatores estressantes às vezes funcionam como um gatilho nos quadros de ansiedade doentia. A prevalência dos transtornos de ansiedade é maior entre indivíduos mais jovens, mulheres, moradores do interior (no caso de fobias) e grupos vulneráveis a eventos violentos. “Parece que há uma prevalência maior também em países mais pobres”, observa Márcio Bernik, coordenador do Ambulatório de Ansiedade (Amban) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Entretanto, isso não significa que o mal não atinja pessoas idosas, que são, aliás, cada vez mais numerosas em diversas regiões do planeta – segundo as estatísticas, entre 2000 e 2050 a proporção de idosos em relação à população passará de 11% para 22%. Ou seja, daqui a 35 anos haverá no planeta 2 bilhões de idosos.

Mãos frias e úmidas

Em seu boletim médico publicado no início deste ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta para o aumento da incidência de doenças mentais entre as pessoas de idade mais avançada. Cerca de 20% delas sofrem de algum transtorno mental ou neural, e destas 3,8% se referem a transtornos de ansiedade. Seja como for, porém, mais velho ou mais jovem, todo adulto com TAG frequentemente se preocupa em demasia com circunstâncias cotidianas e rotineiras que implicam algum tipo de responsabilidade, pode ser no emprego, no controle das finanças, nos cuidados com a saúde etc. Um simples conserto de carro pode se tornar um tsunami para o portador do transtorno: ele pode ficar com as mãos frias e úmidas só de pensar em ter de lidar com o problema. Os sintomas não param aí. Boca seca, náusea, diarreia, falta de ar, frequência urinária aumentada, dificuldade para engolir e tensão muscular passam a fazer parte da sua rotina, acompanhados de inquietação, falta de concentração e “brancos” de memória.

Em estudo apresentado na 26ª Jornada da Associação Mineira de Medicina do Trabalho (Amint), em novembro de 2012, a psiquiatra Maria Cristina Palhares Machado expôs dados sobre as causas para afastamentos de funções de trabalho no Brasil. Segundo esse estudo, os transtornos de ansiedade e de reação ao estresse estão em segundo lugar no ranking das doenças que mais afastam, perdendo apenas para a depressão. Dados revelados por esse mesmo trabalho indicam que em São Paulo 20% da população sofre de algum transtorno de ansiedade.

Apesar da recomendação para cautela no diagnóstico de qualquer dessas doenças, muitas vezes a pessoa recebe a notícia de que tem TAG, mas não tem. Numa sociedade que prioriza o ritmo das decisões, que não admite o erro e a incerteza, e preconiza a otimização das capacidades profissionais, o que mais existe é gente nervosa, que não dorme bem, come pouco e mal, e não faz nenhuma atividade física. Há uma percepção de grande ocorrência ou notificação maior de transtornos mentais como também o uso acentuado de psicofármacos como os antidepressivos e os benzodiazepínicos, os calmantes. Estudos já demonstraram que o paciente, na sofreguidão por remédios eficientes e rápidos, pode influenciar o diagnóstico médico. Essa é uma das possibilidades para tratamentos inadequados. Há muitas outras.

“Existe, sim, um grupo de pessoas a quem é atribuído um diagnóstico de transtorno mental e indicado um tratamento com medicamento, podendo se tratar apenas de um sofrimento emocional momentâneo e sem impacto futuro para a saúde”, explica Torresan. Por outro lado, diversas pessoas retardam ou não são devidamente amparadas nem incentivadas pela família a procurar ajuda profissional apropriada para quadros de transtornos de ansiedade. Nesses casos, ele ressalta, o mal pode se agravar e tornar-se crônico, acarretando muitas vezes complicações de saúde. “Há evidências de que a depressão e os transtornos de ansiedade são fatores de risco para ocorrência e pior evolução dos infartos cardíacos ou mesmo agravamento de outros problemas cardiovasculares preexistentes.”

Em meio a tantos fatores, contudo, é cabível questionar se o que está ocorrendo é de fato um aumento no número de casos ou se houve ampliação do espectro para o diagnóstico desses transtornos, com consequente uso indiscriminado de medicamentos. A questão é ampla e não se restringe à ansiedade. São cada vez mais frequentes as críticas de parte da classe médica aos critérios para a classificação das doenças mentais como um todo. “Acho que temos, sim, nossa cota de eventos estressantes, mas outros estressores existiam no passado. Não é clara a ligação entre estresse cotidiano e transtornos de ansiedade. Acho que estamos diagnosticando mais. Se esses diagnósticos são excessivos, é uma grande pergunta”, pondera Bernik.

Criaturas maleáveis

Uma das vozes mais atuantes em relação a esse problema, o psiquiatra americano Allen Frances, em seu livro Saving Normal (inédito no Brasil), faz um mea culpa sobre seu trabalho. Ele, que dirigiu durante anos o DSM, fala também da quinta revisão da publicação, que considera um retrocesso por ampliar o número de transtornos patológicos. Em entrevista publicada no site do jornal espanhol “El País”, Frances afirma que a ampliação de síndromes e patologias no DSM vai transformar a atual inflação diagnóstica em hiperinflação. Segundo ele, os fármacos são necessários e muito úteis em transtornos mentais severos e persistentes. Mas não ajudam nos problemas cotidianos, pelo contrário, o excesso de medicação causa mais danos que benefícios. No bojo do problema estão a submissão ao poder da indústria farmacêutica e a ânsia da população por soluções milagrosas para os sentimentos de mal-estar. “Os seres humanos são criaturas muito maleáveis. Sobrevivemos há milhões de anos graças a essa capacidade de confrontar a adversidade e nos sobrepor a ela. Agora mesmo, no Iraque ou na Síria, a vida pode ser um inferno. Entretanto as pessoas lutam para sobreviver. Se vivermos imersos em uma cultura que lança mão dos comprimidos ante qualquer ocorrência, vamos reduzir nossa capacidade de confrontar o estresse e também a segurança em nós mesmos. Se esse comportamento se generalizar, a sociedade inteira se debilitará diante da adversidade. Além disso, quando tratamos um processo banal como se fosse uma enfermidade, diminuímos a dignidade de quem verdadeiramente a sofre”, ressaltou Frances na entrevista ao jornal.

Os antidepressivos são atualmente as drogas prescritas para o tratamento dos transtornos ansiosos, inclusive o TAG. Inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) e os tricíclicos são os mais utilizados. Ansiolíticos como os benzodiazepínicos também são prescritos; entretanto, medicamentos dessa classe podem causar distúrbios da memória e levar à dependência física. A informação está disponível e ao alcance de todos no site da Associação dos Portadores de Transtornos de Ansiedade (Aporta). A página da entidade disponibiliza ainda outros serviços aos seus associados.

A psicoterapia cognitivo-comportamental é uma aliada indispensável ao tratamento. A medicação auxilia na diminuição da ansiedade ao passo que a psicoterapia ajuda a pessoa a identificar os sintomas de ansiedade, incentivando a prática de técnicas de controle.

 O TAG, porém, revela um alto índice de persistência. Segundo um artigo publicado na “Revista de Psiquiatria”, em 2007, “mais da metade dos pacientes com TAG apresenta sintomatologia crônica e persistente”. Diversos fatores contribuem para o problema e a busca por novas abordagens terapêuticas com o intuito de melhorar o quadro tem acontecido com frequência cada vez maior. “Acupuntura, técnicas de relaxamento, ioga, massagens e suplementos alimentares, como L-metilfolato, já mostraram uma certa efetividade em alguns estudos científicos e podem contribuir. A atividade física também tem colaborado para o alívio e a prevenção da depressão e da ansiedade”, ensina Torresan, da Unesp. Artigo publicado pela revista “Psicologia: Ciência e Profissão”, em 2010, por André Luiz Picolli da Silva, professor de psicologia da Universidade Federal do Pará, destaca o papel da acupuntura no tratamento da ansiedade. No relato do caso de uma paciente com transtorno moderado, informa que ela apresentou significativa melhora depois de se submeter a dez sessões de acupuntura tradicional chinesa. A paciente relatou alívio dos sintomas a partir da sexta sessão.

A busca por tratamento alternativo, entretanto, não tira a relevância do problema. Os transtornos de ansiedade são reais e, apesar dos diagnósticos errôneos, eles estão cada vez mais presentes. “Os transtornos de ansiedade não devem ser encarados como uma forma de fraqueza moral. Se não tratados, podem levar à depressão, ao abuso de álcool e de outras drogas”, enfatiza Bernik. Então, que ninguém deixe de pensar nas questões relacionadas ao nosso modo de vida atual e nas escolhas que fazemos, muitas vezes sem levar em conta as condições de trabalho, de moradia e de lazer. Escolher mal pode ser o primeiro passo na direção do pantanoso terreno dos transtornos de ansiedade.