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Um não tem, mas o outro compensa

Alimentos se completam: aminoácidos que faltam num sobram no outro / Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Alimentos se completam: aminoácidos que faltam num sobram no outro / Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Por: MIGUEL NÍTOLO

Na gigantesca São Paulo, com 11,8 milhões de habitantes, ou em Serra da Saudade, em Minas Gerais, com 822 moradores, o menor município do país, a dobradinha arroz e feijão reina soberana na mesa. Não tão suprema quanto no tempo de nossos pais, é verdade, mas ainda imbatível como base da alimentação dos brasileiros. E isso por uma simples e compreensível razão: são dois comestíveis ricos em nutrientes que se complementam. Aminoácidos que faltam num, sobram noutro. Quando se juntam, os aminoácidos dão vida às proteínas, levando à constituição de cabelos, músculos, ossos e pele. O arroz, por exemplo, é fonte de aminoácidos sulfurados, como metionina e cistina (essenciais para manter a atividade metabólica normal), mas é deficiente em lisina (necessário ao crescimento, entre outras qualidades); em contrapartida, o feijão é rico em lisina, mas carente em metionina.

A proteína do feijão, em suma, é abundante em aminoácidos essenciais. É ideal, portanto, que essa combinação faça parte das refeições pelo menos uma vez ao dia, dizem os nutricionistas. Como contém muitos carboidratos, substâncias que fornecem energia ao corpo humano, o arroz também é excelente fonte de cálcio, ferro, fósforo sais minerais e vitaminas com a vantagem de não conter colesterol. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o cereal é capaz de suprir 20% da energia e 15% da proteína da necessidade diária de um adulto. Faltou dizer que o consumo dos dois alimentos também ajuda a prevenir doenças. “A fibra do arroz e a do feijão reduzem o risco de distúrbios cardiovasculares, diabetes e câncer de cólon, entre outros. E mais: contribuem para um melhor funcionamento do intestino”, afirma na internet o Hospital Albert Einstein.

São informações que muitas vezes passam despercebidas à maioria das pessoas; todavia, a ignorância sobre elas, mostra a realidade, não interfere no aceitamento da dupla pelos comensais. Refeição sem arroz e feijão, especialmente nos dias úteis, é como salada sem tempero ou pizza sem mozarela. Se assim não fosse, as tradicionais quentinhas (“marmitex”), que tomaram de assalto o Brasil de norte a sul, não fariam estrondoso sucesso, ensejando a entrada de novos empreendedores no negócio. Acessíveis basicamente a todas as camadas da população, os prosaicos recipientes em alumínio, em especial os vasilhames padrão do tipo prato pronto, têm mais de 70% de seu conteúdo constituído de arroz e feijão. Mais ou menos como acontece em nossos lares, com a única diferença que, aqui, a dupla é servida em pratos de cerâmica ou de vidro.

Apesar dessa preferência, entretanto, não somos seus maiores consumidores. No tocante ao arroz, por exemplo, o Brasil responde por uma demanda anual de 12 milhões de toneladas, quase o mesmo tanto do que é produzido internamente: a safra 2014/2015 estava estimada, no início do ano, pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em 12,39 milhões de toneladas, um avanço de pouco mais de 2,3% sobre a colheita anterior. São números que dão ao país o primeiro lugar no ranking regional do setor, mas que passam longe dos números brandidos pelos asiáticos. A China é o maior produtor – e também o maior consumidor – com 143 milhões de toneladas anuais (30,4% da produção mundial – safra 2013/2014), vindo em seguida a Índia (21,5%), Bangladesh (7,3%), Vietnã (5,9%) e Tailândia (4,3%). Em torno de 90% de todo o arroz disponível no planeta é cultivado e consumido na Ásia.

Nos ombros dos gaúchos

Com tanta boca para alimentar, a China, com quase 1,4 bilhão de habitantes, tem sido obrigada a superar barreiras para colocar comida na mesa. O arroz, o milho e o trigo ocupam suas melhores terras, o primeiro no sul do país, os outros dois no norte. Os conterrâneos de Xi Jinping também são os maiores importadores mundiais de arroz, tendo respondido, no ano passado, por 10,1% desse mercado, seguidos pelos nigerianos, com 8,9%, e iranianos, com 4,3%.

Dados e estimativas do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) [United States Department of Agriculture], mostram que a produção de arroz em todo o planeta poderá atingir 474,6 milhões de toneladas na safra 2014/2015 ante um consumo de 483 milhões de toneladas, números que, na safra anterior, alcançaram, respectivamente, 480,5 milhões e 477,1 milhões de toneladas. Ainda de acordo com o USDA, o excedente mundial do cereal (estoque) na atualidade supera 98 milhões de toneladas contra 106,8 milhões no período 2013/2014. Os números referentes ao setor nunca deixaram de crescer. Há 10 anos, por exemplo, o consumo (safra 2004/2005) era de 407,9 milhões de toneladas e a produção de 400,8 milhões.

No Brasil, a produção de arroz se distribui basicamente por todo o país, mas é no Rio Grande do Sul – onde predomina o sistema por irrigação – que seu cultivo tem maior expressão. Os gaúchos responderiam por 66,7% da oferta nacional, seguidos pelos catarinenses (8,8%), maranhenses (5,5%), mato-grossenses (4,8) e tocantinenses (4,5%). De acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) a produção local do cereal vai continuar em expansão nos próximos anos, podendo chegar a 14,12 milhões de toneladas na safra 2019/2020. Já o consumo poderá atingir, daqui a cinco anos, a marca de 14,37 milhões de toneladas.

Como sempre, continua repousando nos ombros dos arrozeiros gaúchos a responsabilidade pela maior parcela dessa expansão. No final de abril, com 96,9% da área plantada já colhida, a produção do Rio Grande do Sul, com 8,37 milhões toneladas, caminhava para atingir a projeção traçada meses antes pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-RS) de 8,59 milhões de toneladas, 3% a mais que a safra 2013/2014 e pouco acima da estimativa da Conab, da ordem de 8,44 milhões de toneladas em área total cultivada de 1,11 milhão de hectares. E, como das vezes anteriores, Uruguaiana, no sudoeste do estado, com pouco mais de 125 mil habitantes, despontou como o maior produtor do sul do país, com 951.249 toneladas (98% da área colhida), segundo o Instituto Rio Grandense de Arroz (Irga), número que coloca o município em primeiro lugar na lista dos grandes cultivadores nacionais de arroz. Itaqui, na mesma região, com pouco mais de 38 mil habitantes, despontou em segundo lugar com 713.839 toneladas (98,4%), e Santa Vitória do Palmar, no sudeste, com 31 mil habitantes, apareceu logo a seguir com uma produção de 562.468 toneladas (97,2%).

A lista de municípios de real importância para a rizicultura gaúcha é extensa, podendo ser citados, entre outros Camaquã (492.686 toneladas), Alegrete (398.263), Dom Pedrito (380.316), Arroio Grande (343.344) e Guaíba (284.928). Rio Grande, de 207 mil habitantes, no sul do estado, não está na relação dos grandes produtores de arroz da terra do chimarrão (192.186 toneladas com 98% da área colhida), mas, em contrapartida, com 9 mil quilos por hectare, é o município com a maior produtividade do setor, 90 quilos a mais do que a marca alcançada por Uruguaiana. Boa parte dos produtores gaúchos é formada por pequenos agricultores, cujas propriedades não medem mais do que 100 hectares.

Luz amarela

Segundo o MAPA, em contraponto ao sistema de plantio dos gaúchos (por irrigação), a produção de arroz também se processa pelo sistema chamado sequeiro, em terras altas, e se concentra nas regiões centro-oeste (Goiás e Mato Grosso), nordeste (Maranhão e Piauí) e norte (Pará e Rondônia). “As pesquisas atuais priorizam ações para consolidar a presença da cultura nas regiões do Cerrado e, especialmente, com adaptação ao sistema de plantio direto.” O ministério esclarece que, entre 1975 e 2005, o Brasil reduziu a área de cultivo em torno de 26% e, mesmo assim, aumentou a produção do cereal em 69%, graças ao aumento de 128% na produtividade média. “O crescimento da produção permitiu ao país tornar-se autossuficiente em arroz já na safra 2003/2004”, destaca.

O sudeste da Ásia, segundo muitos historiadores, pode ter sido o local de origem do cereal, e é possível que as primeiras plantações tenham surgido na Índia, isso há alguns milênios. Nas Américas, trazido pelos espanhóis, ainda no tempo da colonização, o Brasil foi o primeiro país a cultivar o arroz, iniciativa que data do fim do século 16, algumas décadas após o descobrimento. Os primeiros passos da rizicultura brasileira tiveram a Bahia como berço, logo se estendendo ao Maranhão e, posteriormente, para o resto da nação. Mas foi no Rio Grande do Sul que o cereal avançou mais rapidamente, em especial a partir dos anos 1940, quando o Irga, uma entidade pública criada 75 anos atrás (sucedeu ao Instituto do Arroz) iniciou a construção de barragens em todo o estado com o propósito de desenvolver a cultura rizícola. A iniciativa, que foi abraçada pelos agricultores, teve o mérito de armazenar água na época de chuva com a finalidade de atender às necessidades da lavoura no período seco. Seguiu-se, então, o lento mas vigoroso processo de mecanização agrícola e a adoção de novas técnicas de cultivo, vertentes que ajudaram a projetar o agronegócio do país nos quatro cantos do planeta.

Com uma presença ainda tímida nesse mercado mundial, o Brasil comercializa no exterior, anualmente, de acordo com o MAPA, em torno de 5% de sua oferta. Empresários do ramo reclamam da elevada carga tributária, que encarece o produto final, e da concorrência dos produtores asiáticos, que se tornam imbatíveis em termos de preço por causa de subsídios governamentais. E há países que comercializam cereal de qualidade inferior ao brasileiro, mas são vitoriosos em seus negócios internacionais graças, especialmente, a um eficiente trabalho diplomático. O Oriente Médio e a América Central são mercados potenciais para a rizicultura brasileira: em dezembro de 2014, por exemplo, as vendas externas do setor cravaram em 177,98 mil toneladas devidas, em parte, a expressivos embarques realizados para o Iraque. Uma luz amarela, entretanto, acendeu no caminho dos exportadores: o reatamento das relações comerciais dos Estados Unidos com Cuba, ilha que compra 10% do arroz embarcado pelo Brasil. O preço de mercado do grão norte-americano com qualidade semelhante é inferior ao brasileiro, além do fato de que o frete médio entre aqueles dois países é significativamente menor ao do Brasil para a América Central. Há um outro detalhe a ponderar: a produção estadunidense de arroz (safra 2014/2015), segundo o USDA, é estimada em 7,07 milhões de toneladas, 15,5% a mais que o total da colheita anterior. Seja como for, conforme entendimento de Tiago Barata, diretor comercial do Irga, o Brasil tem de fidelizar seus clientes, pois o custo de produção acaba afetando a produtividade. “O cartão de visita do arroz brasileiro no mercado exportador é a qualidade”, afirma.

Paraná na frente

A Abertura Oficial da Colheita do Arroz, entre os dias 5 e 7 de fevereiro último, no município gaúcho de Tapes, no litoral da Lagoa dos Patos, a 103 quilômetros de Porto Alegre, serviu de chamariz para o mercado externo. Material distribuído na oportunidade para a imprensa pela Federação das Associações de Arrozeiros do Estado do Rio Grande Sul (Federarroz) informava que a ideia era trazer importadores para participar do evento e, assim, ajudar a alavancar a venda internacional do setor. Em conversa com os jornalistas o presidente da entidade, Henrique Dornelles, contou que potenciais compradores da América Central e do Oriente Médio haviam sido convidados a fim de que eles pudessem conhecer desde o plantio até o beneficiamento do produto. “Queremos que vejam como o nosso arroz é produzido, mostrar que temos segurança alimentar em todos os processos e que a qualidade do cereal não decorre apenas de uma questão natural, mas, também, de um contexto profissional e tecnológico”, salientou.

A história do feijão brasileiro se assemelha à sucessão de acontecimentos referentes ao arroz, diferindo apenas quanto aos números, menores, e aos protagonistas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima para 2015 (as três safras) uma produção de 3,4 milhões de toneladas de feijão, um salto, se confirmado, de 5,7% em relação a 2014, quando a colheita atingiu 3,22 milhões de toneladas. Trata-se de um excelente resultado diante de 2013, ano em que a safra não foi além de 2,8 milhões de toneladas, um recuo que pode ter desbancado o país da liderança mundial no ramo, levando à importação do alimento da Argentina, Bolívia, China e Paraguai (o consumo local gira em torno de 3,5 milhões de toneladas). A área cultivada na primeira safra foi estimada em 1,07 milhão de hectares, um recuo de 9,6% em relação à colheita passada. Na realidade, a maior parte dos estados produtores planejava reduzir a área de plantio com feijão. Segundo a Conab, “a comercialização instável e os riscos climáticos aliados à cultura, somados à atratividade de outros produtos concorrentes, como soja e milho, derrubaram uma maior intenção dos produtores em todo país, nesta temporada”.

Com a retomada da oferta nacional, o Brasil recuperou terreno, juntando-se à China, Índia, México e Myanmar no comando do setor em escala mundial (os cinco países participam com 65% da produção internacional de feijão). Desses, apenas a China e Myanmar – ao lado da Argentina, do Canadá e dos Estados Unidos – são exportadores de fato. Juntos, os cinco países são responsáveis por 73,5% das vendas externas do setor. A despeito de sua importância como produtor, o Brasil não ocupa papel de realce no comércio internacional da leguminosa porque quase tudo o que colhe é consumido internamente. Apenas uma pequena porção é vendida lá fora e, de acordo com o MAPA, a preferência do importador tem recaído sobre os tipos feijão-carioca, caupi ou feijão-de-corda, feijão-preto e feijão-rajado.

São conhecidos, aproximadamente, 40 tipos de feijão. Plantado em 21% da área produtora do país, o feijão-preto é consumido em maior escala nas regiões sul e leste do Paraná, sudeste de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Santa Catarina. No resto do país a espécie tem pouco ou quase nenhum valor comercial ou aceitação. O feijão-carioca é consumido praticamente em todo o Brasil e, justamente por isso, 52% da área cultivada é semeada com essa modalidade de grão. Já o feijão caupi, ou feijão-de-corda, é o campeão da panela no nordeste e na região norte, ocupando 9,5% da área plantada.

O Paraná é o maior produtor de feijão do país, e as previsões apontam para a produção de 409 mil toneladas na safra atual, 85 mil a mais que a anterior. Em todo o estado, milhares de agricultores estão envolvidos no cultivo do feijão e outros, empenhados na plantação de trigo, iniciativa que tem dado aos paranaenses a liderança na oferta do cereal em território nacional. A expectativa é que a safra de trigo na terra da araucária atinja 4 milhões de toneladas, superior, se concretizada, em 7% à colheita anterior ou, segundo estimativas da Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do Paraná, de 3 mil quilos do alimento por hectare, apesar de a área de plantio no estado ter sido reduzida em 2% por causa das oscilações do preço do produto no mercado.