Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Food trucks: onda ou negócio firme?

Depois do Brasil, a comida de rua avança sobre o mercado de nações vizinhas / Foto: Divulgação
Depois do Brasil, a comida de rua avança sobre o mercado de nações vizinhas / Foto: Divulgação

Por: ALBERTO MAWAKDIYE

Multicoloridos, bem equipados e ecologicamente sustentáveis, os food trucks – ou “caminhões de comida” – vão, de mansinho, se multiplicando pelas cidades brasileiras. É a repetição de um fenômeno que começou no final da década passada nos Estados Unidos e na Europa, promovido principalmente por jovens sem perspectivas de emprego depois da crise financeira global, de 2008, e que agora vai ganhando adeptos também na América Latina e em outros continentes. Hoje, é cada vez mais comum e divertido comer com rapidez e qualidade em uma casa de repasto montada sobre rodas.

É em São Paulo, cidade com forte tradição gastronômica – e que concentraria, segundo os experts, os melhores restaurantes do país –, que a novidade voa mais alto: o novo ramo empresarial já abriga cem unidades entre caminhões e vans, oferecendo os cardápios mais variados, desde pizzas e pratos de massa a sanduíches, a comida árabe, chinesa, japonesa e nordestina, passando por doces, salgadinhos e sucos.

Mas já há caminhões de comida em quase tudo quanto é lugar do Brasil, especialmente nas capitais e cidades de porte médio. Aglomerados urbanos fora do eixo Rio-São Paulo têm o que mostrar nessa área, como a paranaense Maringá e a paulista Piracicaba, onde charmosos food trucks operam há meses. Segundo uma projeção da consultoria Vecchi Ancona, trata-se de um nicho que deve movimentar em torno de US$ 2 bilhões em 2015, com crise econômica e inflação em alta.

Acredita-se que o crescimento do número de caminhões não tem sido mais forte devido ao fato de que só recentemente essa modalidade de comércio de rua foi regulamentada em São Paulo, o maior mercado consumidor do Brasil, embora em capitais como Belo Horizonte a comercialização de alimentos em veículos seja permitida sem autorização prévia e mais ou menos tolerada em outros municípios. De qualquer forma, projetos de lei estão pipocando em câmaras de vereadores de norte a sul do país, e alguma regulamentação pode ser adotada já na virada deste semestre pelas prefeituras de metrópoles como Rio de Janeiro, Curitiba (cidade onde a quantidade de food trucks já corresponde à metade do número de São Paulo) e Salvador.

“Defendemos a regulamentação porque queremos trabalhar na legalidade. E este é um segmento que gera emprego, renda e colabora com o turismo e o desenvolvimento da cidade”, diz o presidente da Associação de Food Trucks e Comida de Rua da Bahia, Gabriel Lobo, dono da van Guerrilha Truck, especializada em hambúrguer artesanal e “comida de feira”. Sem a regulamentação, os “truckeiros” só podem trabalhar oficialmente em eventos fechados, mas não em vias públicas. “O food truck é uma forma de empreendedorismo que só traz benefícios para a população e deve ser estimulado. É um salto de qualidade no que diz respeito à comida de rua”, enfatiza o vereador Andrea Matarazzo (PSDB), um dos autores da lei que oficializou o negócio em São Paulo, no final de 2013. “A legislação deve colaborar para isso. E ela tem a vantagem de subordinar a atividade a uma melhor fiscalização, obrigando os empreendedores a pagar impostos, do mesmo jeito que os donos de restaurantes tradicionais”, ele diz.

Tomada elétrica e torneira

A regulamentação, no caso de São Paulo, comprova que só faltava mesmo “soltar as amarras jurídicas” para que esse tipo de investimento, que permaneceu durante anos em uma virtual clandestinidade, deslanchasse e fizesse valer todo o seu aparente potencial. Afinal, foi só depois da definição das normas que se percebeu o tamanho do universo de candidatos a “truckeiros” existente em São Paulo – incrivelmente grande. Até agora, com 900 vagas disponibilizadas, a prefeitura já tem em mãos mais de mil solicitações de gente interessada em aplicar no modelo.

As exigências paulistanas são rígidas, mas não intransponíveis, e certamente deverão ser usadas como padrão no resto do país. O proprietário de um food truck – que pode ter, no máximo, 6,30 metros de comprimento por 2,20 metros de largura – é obrigado a abrir uma empresa e não pode ser proprietário de mais de um caminhão, um modo de evitar a concentração de capital no segmento. O candidato precisa também cadastrar-se na prefeitura e receber um parecer favorável da Coordenação de Vigilância e Saúde (Covisa).

Os caminhões só podem operar nos pontos predeterminados pelo poder público – ou seja, podem operar nas ruas, mas não circular por elas –, seguindo ainda as determinações mais ou menos exigentes da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) quanto ao uso dos espaços públicos, como calçadas e faixas de pedestres. Essa medida, adotada por razões de trânsito e de controle sanitário, desagradou, entretanto, a muitos “truckeiros”, que apontaram o evidente paradoxo de serem obrigados a trabalhar “parados” em um estabelecimento sobre rodas.

De qualquer modo, nem todos os food trucks são autossuficientes para trabalhar nas vias públicas – já que, dependendo do tipo de comida e de sua preparação, é preciso, muitas vezes, uma tomada elétrica e uma torneira. Essa necessidade de infraestrutura explica o que também parece ser uma espécie de proliferação dos chamados food parks, espaços confinados, em geral privados – em São Paulo, os mais famosos são o Butantan Food Park e a Panela na Rua – que, especialmente nos finais de semana, se transformam em verdadeiras “feirinhas gastronômicas”.

A expansão dos food trucks em território brasileiro, todavia, não deve ser creditada apenas ao fator modismo – ou a uma mera imitação de um modelo de negócios que parece estar dando certo na parte mais desenvolvida do mundo. Um pouco é por isso mesmo, claro, pois o que não falta é divulgação sobre essa atividade. Na TV a cabo, por exemplo, há tempos são transmitidos realities shows sobre os bastidores dos food trucks, promovidos tanto por canais americanos como também por TVs brasileiras, engrossando a já enorme lista de programas culinários presentes na grade televisiva.

A “cultura gourmet” que caiu no gosto das classes médias de basicamente todo o planeta também tem a ver com ela, pois muitos caminhões de comida não deixam de tornar a alta gastronomia mais acessível, embora mantendo as suas duas características básicas, a de servir comida rápida com um estilo de serviço simples e prestativo. Ironicamente, à maneira das populares e tradicionais kombis e vans de cachorro-quente, cujo número é assombroso no Brasil, assim como nos Estados Unidos, onde os carrinhos de hot-dog atuam desde meados do século 19 e são considerados, com justiça, uma espécie de “ancestrais” dos food trucks. Apenas na Grande São Paulo, por exemplo, eles superam 5 mil unidades. São tantos que a prefeitura paulistana não emite nenhuma nova licença desde 2007. Antes da regulamentação dos food trucks, apenas cachorro-quente podia ser vendido nas ruas da cidade. Olhando por aí, trata-se de fato de um upgrade no ramo de comida de rua, embora com um óbvio viés elitista.

De outro lado, o comércio sobre rodas também desfruta de uma forte tradição no país, que vem se renovando e acolhendo novos seguidores, colaborando diretamente para a expansão dos food trucks. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em pouco mais de dez anos esse tipo de negócio experimentou um crescimento de quase 12%, com 9 mil novos microempresários apenas no estado de São Paulo. Em 2001, os paulistas que transformaram seus veículos em comércio ambulante chegavam a 76 mil. Já em 2012, esse número havia saltado para 85 mil, com os autos vendendo de tudo, de hortigranjeiros a roupas, e de utensílios domésticos a produtos de artesanato e bijuterias e, mais recentemente, prestando serviços como cabeleireiro, manicure e dentista.

Redes sociais

Mas há outra razão para a explosão dos food trucks, talvez a mais importante de todas: o empreendedor brasileiro adora investir em comida. Um levantamento, feito em 2012 pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo (Sebrae-SP), mostrou que o setor de alimentação é o que mais atrai investidores. Naquele ano, de acordo com a entidade, 140.910 das 728.077 microempresas paulistas voltadas para os serviços pertenciam ao ramo de alimentação.

Os food trucks, obviamente, abrem assim uma nova alternativa de negócios para quem deseja atuar na área de alimentação. Com os preços dos edifícios comerciais pela hora da morte, montar um caminhão de comida pode ser, decididamente, um bom negócio, a começar pelo investimento inicial. Calcula-se que um veículo pronto para operar custe, em média, R$ 250 mil, podendo equivaler à metade do preço de um ponto comercial bem localizado – mas com a vantagem da mobilidade e do apelo representado por esse tipo de empreendimento. Foi essa a razão que levou a técnica em gastronomia, Ieda Matos, a montar o Bocapiu, um food truck especializado em comida nordestina que, em pouco mais de seis meses, já conseguiu certa fama em São Paulo. “Eu queria mesmo era abrir um restaurante. Mas não achei um ponto que coubesse no meu bolso”, ela conta. “Pesquisei e vi que um food truck seria a melhor opção para o meu caso. E acertei em cheio, pois em dias bons chego a vender de 120 a 150 pratos.”

Além de trabalhar ocasionalmente em pontos oferecidos pela prefeitura – especialmente nas zonas sul e oeste, onde estão vários bairros de grande afluência na capital paulista – e em tudo quanto é evento, Ieda, boa negociante, fechou parcerias com diversas cervejarias da cidade, passando a vender seus produtos nesses estabelecimentos. “O Bocapiu acaba sendo um chamariz para as cervejarias, e eu me beneficio do fato de o público delas ser das classes A e B, com dinheiro no bolso”, diz. “Neste tipo de negócio, precisamos saber onde o nosso cliente está e ir atrás dele.”

Outra culinarista, Kelly Tabata, foi bem mais longe. Proprietária do OluOlu Drink Truck – especializado em slushies, bebida americana à base de creme de gelo –, Kelly expandiu sua área de atuação, antes restrita à cidade de Maringá, no norte do Paraná, ao imenso circuito de rodeios e festas cívicas e religiosas do interior do estado, e também no Mato Grosso do Sul e em Minas Gerais. “Está dando certo. O público dos rodeios, principalmente, compõe um mercado para lá de compensador”, opina.

Nessa busca pelo cliente, praticamente todos os food trucks acabam se tornando usuários das redes sociais – forma prática de serem acompanhados em suas peregrinações pela freguesia mais fiel. Isso beneficia, por tabela, os proprietários e anunciantes dessas mídias, que vêm lucrando com a expansão da comida de rua mais sofisticada. Mas não são apenas eles que estão ganhando dinheiro com a explosão da modalidade: está surgindo no Brasil uma pequena cadeia produtiva voltada para o atendimento do setor, demonstrando sua relevância para a própria economia do país.

O setor automotivo tem sido, é claro, o principal beneficiário. Várias oficinas de customização veicular adaptaram-se para preparar as vans e os caminhões para o novo mercado, com a demanda, em algumas delas, tão grande que há até lista de espera. “Estamos ampliando as instalações para dar conta da procura”, garante Gislene Viana, proprietária da FAG Brasil, na região do ABC paulista, empresa especializada na transformação e adaptação de veículos especiais, que diz estar recebendo, só pelo site da empresa, mais de 30 pedidos ou consultas por dia do Brasil inteiro. É, aliás, na Grande São Paulo que está concentrada, por enquanto, a esmagadora maioria das customizadoras de food trucks, desenvolvendo projetos que vão da simples pintura do veículo até a implantação de todos os equipamentos necessários para um serviço de cozinha e atendimento ao cliente. Os preços variam, em média, de R$ 25 mil a R$ 150 mil, embora, em alguns casos, sejam mais elevados.

De vento em popa?

Há empresas que estão até produzindo veículos prontos para a modalidade, como a Clau-Her Traillers, que lançou na feira Brazil MotorHome Show & Brazil Food Truck Show, realizada em abril, em Jundiaí, interior de São Paulo, um food trailer com ar-condicionado, balcão refrigerado, coifa com filtro, iluminação em led, pias, sistema hidráulico e esgoto, vitrines expositoras e por aí vai. “Hoje há demanda de mercado para um produto como este”, afirma Antônio Donizetti Guariento, diretor da companhia. Tanto há que até uma feira já foi idealizada para a “área automotiva” do setor.

Já a aposta da empresa Sunlution para o segmento é um food truck abastecido com energia solar. Com tecnologia trazida dos Estados Unidos, o equipamento produz energia suficiente para garantir autonomia a qualquer estrutura de cozinha. “Será um avanço para o setor em termos de sustentabilidade”, garante Orestes Gonçalves Júnior, sócio-diretor da Sunlution, que apresentou a novidade na Feira Profissional de Alimentação e Hospitalidade, realizada em março em São Paulo. Grandes marcas também estão pegando carona na onda do comércio ambulante de comida, aparelhando os veículos para a divulgação de seus produtos, como vem fazendo a rede de supermercados Pão de Açúcar, a Cervejaria Bohemia e a fabricante de caminhões Iveco, que cedeu um moderno modelo Iveco Daily para o reality show “Food Truck – A Batalha”, transmitido no canal a cabo GNT.

Do mesmo jeito, alguns restaurantes e lanchonetes estão entrando no negócio por meio de franquias, como a rede de temakerias Makis Place e a Bob’s, célebre na área de sanduíches. “É um espaço que temos de aproveitar”, diz João Baptista da Silva Jr., diretor de franquias da rede Rei do Mate e coordenador do Grupo Setorial das Redes de Food Service da Associação Brasileira de Franchising (ABF). “Mas a tendência é essas franquias serem utilizadas como unidades de negócio pelos franqueados e, pelo lado das marcas, para efeito de propaganda. É o caminho natural.”

Enfim, parece que o barco da nova comida de rua vai de vento em popa, mas já começaram a surgir algumas nuvens escuras no céu. Em São Paulo, por exemplo, a indisfarçável preferência dos “truckeiros” pelos food parks, eventos genéricos ou específicos e em pontos da prefeitura localizados nos bairros mais ricos ou com vocação boêmia, está, ainda que meio imperceptivelmente, colocando os food trucks antes como uma opção de lazer do que, propriamente, como uma alternativa de alimentação no dia a dia. Tanto que a clientela paulistana é visivelmente composta mais por jovens “descolados” do que por assalariados.

“Os food trucks podiam ser uma boa opção para a hora do almoço, mas a gente nunca encontra um por perto, por exemplo, no centro ou na Avenida Paulista”, critica a advogada Fátima Tornelli. “Por isso, só utilizei seus serviços uma única vez.” Fátima frisa que “para usá-los como programa de lazer prefiro ir de vez a um restaurante”. Esse problema já foi detectado por algumas associações de food trucks fora de São Paulo, como Salvador e Rio de Janeiro, que estão atentas para impedir que uma distorção mercadológica desse tipo aconteça em suas cidades. “Vamos espalhar o negócio pelo Rio inteiro, Zona Sul, Zona Norte, área central. É uma alternativa que tem de ser oferecida a todos os cariocas, onde quer que eles morem e seja qual for a sua renda”, sustenta Estela Carrara, uma das coordenadoras da Associação de Comida Artesanal sobre Rodas do Rio de Janeiro (Acaso-RJ) e que se prepara para pilotar uma franquia da Gula-Gula, rede de restaurantes sediada na capital fluminense.

Já o especialista em food service e fundador da Food Consulting, Sergio Molinari, vê um injustificável clima de “oba-oba” cercando a nova atividade. “Ter um food truck é quase tão caro e complicado como ter um restaurante, e as pessoas não estão percebendo que não se trata de uma aventura”, adverte. Diz que elas “nem sequer se dão conta de que em dias chuvosos o movimento é praticamente nenhum”. Molinari acredita que haverá uma “proliferação” de food trucks no Brasil em curto prazo, mas muitos deles não irão adiante – assim como muitos restaurantes ficam pelo caminho. Ele tampouco acredita que uma cidade como São Paulo tenha capacidade de absorver mais que três centenas deles. “Em Nova York, por exemplo, existem dois mil. Mas ali a renda per capita é cinco vezes maior, a organização é melhor, a infraestrutura é de primeira. Aqui é tudo meio precário. Está se vendendo um sonho que poucos terão condições de realizar”, dispara. O tempo dirá se Molinari está ou não sendo exageradamente pessimista. Sabe-se, por ora, que alguns proprietários já colocaram seus caminhões de comida à venda nos classificados, mas será preciso esperar para ver se essa onda é mesmo um tsunami ou uma marola.