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Entrevista
Maria Lenk
Se houvesse um livro de patentes para registrar as invenções nos estilos da natação, os atletas que nadam borboleta teriam que pagar royalties para a brasileira Maria Lenk. Afinal, foi ela, durante os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, que inaugurou entre as mulheres o nado borboleta. Antes desse evento, na Olimpíada de 1932, em Los Angeles, Maria Lenk já havia estabelecido um outro recorde: foi a primeira mulher latino-americana a participar dos Jogos Olímpicos. Dentro e fora da piscina, as façanhas da nadadora se multiplicaram: bateu os recordes mundiais de nado peito e borboleta, em 1939 e fez parte da primeira turma de civis a se formar em Educação Física no Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva de Maria Lenk para a Revista E.
Como a senhora começou a nadar? É verdade que a senhora nadava no rio Tiête?
Eu devo dizer como eu morava mais ou menos próximo ao rio Tiête meu pai me levou lá para me ensinar a nadar, porque na época não havia piscinas. O rio Tietê de então era bem diferente do que vocês conhecem hoje. Era muito agradável. Durante muitos anos, no rio, acontecia a prova Travessia de São Paulo a Nado, uma espécie de São Silvestre da natação. Essa travessia tornou-se muito importante para São Paulo, até certo ponto mesmo depois de se construírem piscinas. Os nadadores saíam da ponte de Santa Maria e chegavam na ponte Grande (atual ponte das Bandeiras). Nadava-se, com a correnteza rio abaixo, sete quilômetros.
E a senhora competia nessa prova?
Sempre. A primeira vencedora dessa travessia foi uma nadadora de Santos, antes de mim. Quando comecei a participar era muito jovem. Venci a corrida por muitos anos. Era uma prova muito popular. O próprio João Avelange, que todos conhecem pelo futebol, na realidade é nadador e venceu várias vezes essa travessia.
A senhora se lembra de quando foi a primeira vez que entrou numa piscina?
Foi quando se construiu a piscina na Atlética.
Em que ano?
Em 1930 se construiu a primeira piscina olímpica da cidade. O Clube Paulistano já tinha uma piscina mas era limitada para os sócios, por causa do balneário. Só depois dessa piscina da Atlética, de 25 metros, é se construiu uma de 50 metros no Cube Tietê, para onde eu fui para poder treinar para as Olimpíadas de Berlim.
Mas antes a senhora participou dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1932. Como aconteceu o convite para integrar a delegação brasileira?
Naquela ocasião a natação feminina estava começando em provas que se faziam aqui em São Paulo. A imprensa da época, principalmente os jornais Diário de São Paulo e a Gazeta Esportiva, davam incentivo para inclusão de provas femininas. Naturalmente, ao vencer, tornei-me conhecida, e quando se compôs a equipe que seria enviada para Los Angeles eu fui chamada. Fui a única mulher na ocasião.
A senhora tinha 17 anos na época. A senhora tinha consciência de que era a primeira mulher latino-americana a participar de uma Olimpíada?
Eu diria que só vim descobrir a importância disso tudo ao chegar lá nos Jogos Olímpicos. Diga-se de passagem que no mundo inteiro a mulher estava começando a ingressar no esporte de competição. Em 1932, em Los Angeles, já houve participação de várias nações com nadadoras mais desenvolvidas que eu, porque aqui na América do Sul nós não tínhamos conhecimento de métodos de treinamento. Nos próprios Jogos Olímpicos de Berlim eu completei a aprendizagem com a equipe japonesa, que era a mais destacada. Naturalmente isso me permitiu bater recordes mundiais em 1939 e estava no auge para disputar os Jogos Olímpicos de 1940. Mas por causa da guerra eles não se realizaram.
Como foi a experiência de viajar com 17 anos?
O meu pai era muito aberto e ele me entregou aos cuidados do chefe da delegação e não houve problema nenhum. Naquela ocasião o país vivia a crise do café e o governo não tinha dinheiro para bancar a delegação. Então, ele emprestou o navio para a viagem e as despesas extras foram pagas com café que nós levamos e que de toda a forma seria queimado por aqui. O governo permitiu que esse café a bordo fosse vendido e ajudasse nossa estadia lá. Na mesma ocasião, explodiu a Revolução Constitucionalista, o que tornou nossa comunicação com o Brasil quase impossível.
E a sua experiência de vida nesses jogos? A senhora fala muito do respeito entre os atletas...
Esse é um ponto interessante porque primeiro havia a lei do amadorismo. Então ninguém podia tirar vantagem da prática de natação. Nem para ganhar dinheiro em espécie nem para outras vantagens. Basta dizer que eu escrevi um livro e não pude publicá-lo porque eu me tornaria profissional, ainda que eu não ganhasse muito dinheiro com a publicação. Não se podia ganhar dinheiro nem como salva-vidas. Não se podia receber nem mesmo roupas especiais. Era um amadorismo muito severo. Esse era um dos aspectos. O outro era a idéia do espírito desportivo, de se respeitar o adversário, de cumprimentá-lo depois da vitória ou da derrota. Um outro detalhe para o qual não se dá mais tanto valor hoje era o amor ao clube. Nós competíamos por nosso clube e de jeito nenhum aceitaria mudar para um outro, porque era ao clube que a gente prometia lealdade. Havia conceitos, na época, que no decorrer do tempo se perderam. Hoje, um profissional, mesmo na natação, ganha muito. Vocês, jovens, talvez nem possam compreender como se vivia na época e num mundo. Por outro lado, esse outro mundo era muito difícil. Eu acabei de encontrar umas meninas na piscina aqui do Sesc, uma piscina linda, fechada e aquecida, que era impossível na minha época. Eu treinei em pleno mês de junho e julho numa água gelada, de 14o e 15o, para ir aos Jogos Olímpicos. Dá para perceber que as circunstâncias eram outras. Não havia conforto nem viabilidade técnica. A gente não conhecia métodos de treinamento e técnicas de esporte como se conhece hoje.
Como era o treinamento então?
A gente nadava até a exaustão e, às vezes, tentava usar lógica diante dos conceitos de movimento dentro d'água. Com isso houve também uma revolução nos estilos. Os estilos de então eram diferentes do que se faz hoje, exatamente porque não se tinha conhecimento maior dessa técnicas de nado. E essas técnicas foram evoluindo conforme o interesse dos técnicos e foram ampliando também os programas. A primeira competição olímpica de natação para mulheres foi em 1912 e só havia uma meia dúzia de concorrentes. Só havia uma prova de 50 metros e uma outra de 300 metros e só. Hoje a natação brasileira está muito bem informada, seus técnicos estão bastante entrosados usando o seu intercâmbio internacional e eles trazem para cá informações e formam grandes nadadores.
A senhora falou que em 1932 as mulheres, em todo o mundo, tinham ingressado recentemente no esporte de competição. Eu imagino que no Brasil a participação feminina devia ser ainda menor. A senhora sentia algum tipo de preconceito? Como era para uma jovem mulher estar num meio considerado masculinizado como o do esporte de competição?
Tudo o que inova tem, naturalmente, dois aspectos. Um deles é o de receptividade, que eu senti principalmente por parte da imprensa. Os jornais incentivavam e elogiavam a mulher fazendo esporte. Mas havia também as pessoas com preconceitos conservadores e antiquados, que não gostavam de ver a mulher no esporte. Eu não senti nenhuma restrição porque por um lado meus pais eram abertos a isso. Eles me incentivaram e até me ensinaram. Por outro lado, o meio que eu estava era um meio familiar e de muita camaradagem, aceitação e respeito. De forma que eu não me sentia inibida. O que, naturalmente, deve causar estranheza, e era diferente na época, eram os trajes de banho. Hoje eu vi uma mocinha se exibindo numa roupa que era menor do que a que eu usava para competir.
E qual era o material?
Era uma coisa pesada. Era de algodão. Atualmente, existe uma evolução tão grande em trajes de banho que até os homens usam cobertura do corpo inteiro porque aquele tecido permite a água escoar mais do que a própria pele humana.
Em 1936 a senhora foi para Berlim, período em que Hitler já preparava o país para a guerra e incitava o nacionalismo e o anti-semitismo. A senhora sentia algum clima em relação ao nazismo?
Na época, Hitler inaugurou os jogos e era a figura principal. Nós chegamos a ter um contato muito próximo com ele. Ele perfilou perante as delegações assim como depois nós perfilamos perante ele na arquibancada de honra. Nós chegamos a conhecer o geral daquela atitude nazista já preparando-se para a guerra. Entretanto, nós atletas não tínhamos a menor noção disso. Eu, como descendente de alemães, falava correntemente o alemão formal, mas mesmo assim não era possível sentir o clima do nazismo. Os desportistas não tinham noção nenhuma de política. Pelo menos não no ambiente em que eu tinha relações. Eu estava completamente alheia à política.
E foi nesses jogos que a senhora inventou o nado borboleta?
Exatamente. A FINA (Federação Internacional de Natação Amadora) mudava os regulamentos sempre ajustando ao que se apresentava de novo. Com isso, ela prescreveu um regulamento para o nado de peito que exigia que se levasse os braços simultaneamente para trás e de lá para frente, mas não dizia se seria dentro ou fora d'água. Pela lógica, seria dentro d'água. Um nadador alemão, chamado Higgens, inventou de levar os braços para fora d'água na própria prova do nado de peito e a FINA não teve como impedir. Eu soube dessa "invenção" por meio de revistas especializadas que recebia da Alemanha. E eu resolvi experimentar também. Ao chegarmos em Berlim, a única mulher que nadava borboleta era Maria Lenk.
O que é a categoria de masters?
Essa faixa começa a partir dos 25 anos. Queremos dar ao jovem que deixa de nadar entre os atletas de ponta uma abertura para um ingresso na natação até o final da vida. Nessa natação de masters, que começa aos 25, muda-se de faixa etária de cinco em cinco. A natação presta-se como treino para aptidão física, para a preocupação com a saúde, só que para o resto da vida. As pessoas, ao alcançar uma certa idade, têm de se conscientizar disso: de que para se manterem bem, bem dispostas e independentes, não basta descansar numa cadeira de balanço e ver televisão.
Hoje quanto tempo a senhora treina por dia?
Cerca de uma hora por dia. Depende da finalidade do treino. Se eu quero treinar resistência demora um pouco mais, se eu quero velocidade é um pouco menos.
Como é o cotidiano nas competições de masters?
É bem diferente da dos jovens, porque não existem restrições muito grandes e muita gente se inscreve. No ano passado, houve o campeonato mundial de master em Munique, na Alemanha, e havia participantes a partir dos 25 anos. Foram quase 7 mil inscritos. A natação de master tem características diferentes. Ela procura aptidão, amizade, alegria...
Nessas competições a vitória não é fundamental.
Absolutamente. Mas, naturalmente, a gente gosta de ganhar uma medalhinha. Eu voltei de lá com sete medalhas de ouro - cinco individuais e duas de revezamento. Basta dizer que na equipe de revezamento do Brasil havia dois homens e duas mulheres cuja idade total somada resultava em mais de 320 anos.
Como a senhora ingressou na educação física?
Em 1937, fui convidada para um curso de educação física que foi o primeiro realizado para civis. O curso foi ministrado pela então Divisão de Educação Física de São Paulo, de onde saiu o primeiro grupo de professores de educação física feminina do Brasil e, com isso, eu ingressei na profissão de professora. Depois, fui convidada a participar da implementação da Escola Nacional de Educação Física do Rio de Janeiro, pertencente à Universidade do Brasil. Na época, isso foi uma inovação porque educação física não era profissão de prestígio e de intelectualidade. Na época ela e o esporte recebiam uma rotulação pouco apreciável, digamos. Levar a educação física para dentro da universidade foi uma grande conquista na época.
Atualmente, como a senhora vê as políticas públicas em educação física no Brasil?
Eu vivi toda a história da educação física no Brasil até os dias de hoje. Nós promovemos uma modificação nas leis, tornando obrigatória a educação física nas escolas para todas as faixas etárias, desde o primário até a universidade. Eu acredito que de lá para cá houve um recuo. De maneira geral, entretanto, a educação física deveria ser dada nas escolas já com fundamentos científicos para a pessoa saber o que está fazendo. A educação física escolar tomava uma forma e um aspecto diferente para dar um ensino para o resto da vida.
Qual é o limite da senhora?
Na natação de master não há limites porque nós não temos esse objetivo de supervitórias. Nós nos encontramos mais de forma amistosa e, naturalmente, a decadência é visível em cada um de nós. E ela aumenta conforme se avança na idade. Com 45 ou 50 há uma ligeira decadência. Depois dos 60 começa a piorar e depois dos 80 já não se agüenta mais.
Como a senhora lida com isso?
Eu tento enfrentar nadando todo dia dentro das minha limitações, que são grandes. Enquanto Deus me der saúde eu vou nadar. Eu incentivo meus contemporâneos. Quando eu encontro pessoas da terceira idade eu digo tudo o que estou dizendo a você.