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Reneé Gumiel - bailarina e coreógrafa

Foto: Nilton Silva
Foto: Nilton Silva

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Nascida na cidade francesa de Saint Claude, Reneé Gumiel participou de riquíssima vida cultural da Paris, antes e após a II Guerra. Trabalhou e conviveu com personalidades como Jean Cocteau e Igor Stravinsky , além de ter sido aluna de Rudolf Laban. Cursou psicologia e filosofia na Sorbonne. Gumiel recebeu a equipe da revista “A Terceira Idade” em sua casa, possibilitando-nos compartilhar suas lembranças e ganhar uma parcela de sua contagiante vitalidade.

REVISTA: Sabendo um pouco a sua história, começando pela infância, você poderia nos contar um pouquinho da sua trajetória?

RENÉE: Olha, isso já foi muito escrito na mídia: jornais, revistas, televisão. Eu acho mais importante o hoje. Mais importante porque, mesmo na minha idade, meu trabalho continua e deve haver um sentido para que continue. Minha infância foi uma infância como de todo mundo. Comecei minhas aulas de dança, em Paris e depois fui para a Inglaterra. Fui aluna de Kurt Joss, trabalhei com Laban, com Pat Schaun, com Rudy Sahankar. Isso foi realmente muito importante para toda a minha formação e desenvolvimento. Pouca gente tem essa oportunidade aqui no Brasil. Uma formação boa e total. Há muita falta de cultura e de leitura.

REVISTA: Quem conhece sua história sabe da ligação que você faz da dança com as outras áreas da arte: música, pintura, literatura e teatro principalmente. A Renée bailarina transformou-se assim em uma artista completa?

RENÉE: Não sou bailarina, sou dançarina. Nunca fui clássica. Vivo no ano de 2004, não vivo no século XIX. Atriz, sim. Professora, sim. Agora, para mim, a arte é a única coisa que pode nos salvar contra a mecanização e contra a violência no mundo. A arte pode nos ajudar a ter uma vida intensa e emocional. Dança é movimento e no movimento você tem que sentir sua alma e suas emoções. Hoje se pratica muito o movimento pelo movimento, com pressa, sem pensar, sem consciência. Para mim o mais importante é a respiração e com ela você pode obter a concentração e consciência. Isso são duas coisas que considero muito importantes. Respiração é movimento e movimento é vida. Você sabe minha idade? Eu tenho 90 anos. A respiração deixou claro meu cérebro, minha alma, minha imaginação e meu silêncio, que é criação. O silêncio dentro de nós deve ser ouvido, para que as memórias possam fluir no espaço e no tempo.

REVISTA: Qual é sua visão do corpo? Qual a importância do trabalho corporal para você?

RENÉE: Hoje em dia se fala muito do corpo. Falam do corpo físico, falam do espírito. Falam que do corpo sai nosso coração, nossa alma, bem estar, doenças. Do corpo sai tudo. Quer dizer: o corpo é uma coisa inteira. Você sem o corpo nada faz. Você deve saber andar. Muita gente nem andar sabe. Muita gente não sabe sentir o baixo, o meio, o alto; a coluna não é somente a coluna física que é muito importante, mas a coluna, isto é, uma boa coluna é a sua personalidade.

REVISTA: Além do corpo, de onde mais você busca energia?

RENÉE: Bem, muita gente me pergunta isso. Eu não posso dar uma fórmula certa como resposta. Eu tive três cânceres, duas fraturas de fêmur e cada vez eu sarei e dancei, e até hoje danço. Essa energia me pôs “uma boa fada no berço”. E essa energia, em minhas aulas eu passo para os alunos e para o público. O público é muito importante, o público também deve mudar. Não deve sair do espetáculo como entrou.

REVISTA: Seria o espetáculo como uma possibilidade de transformação?

RENÉE: De transformação para o artista e para o público. É o caminho para uma fusão entre palco e platéia. Tem muita gente que nunca foi ao teatro e fica assustada porque não somos uma pessoa só. Nós temos muitas pessoas dentro de nosso subconsciente e temos que trazer “essas pessoas” para o consciente. Quando fiz “Huis Clo” de Sartre, em 1964, foi justamente no princípio da ditadura que tornou, então, o mundo pequeno, quadrado. Fiz o “Muro”, também de Sartre, justamente por causa da guerra civil espanhola. Realmente nesses momentos históricos a vida perdeu seu valor e hoje em dia estamos de novo em um clima parecido. O ser humano não tem valor, as pessoas se matam com a maior facilidade e nós temos que lutar contra isso.

REVISTA: O corpo e a arte podem ser instrumentos na guerra contra essa desvalorização da vida?

RENÉE: Não exatamente um instrumento. A palavra instrumento é um pouco derrotista, eu diria, em vez de instrumento: movimento. Mas o movimento tem que ser com consciência. Quem faz dança, ou teatro, ou pinta só por pintar, sem motivação, sem vibração, sem respiração, não faz nada. Faz apenas para si mesmo, porque não tem outra coisa para fazer. Mas nada na sua intimidade, nada faz com poesia. Uma arte que não tem poesia não é arte. A vida das pessoas foi sempre de muita luta. Houve a II guerra mundial, a guerra na Indochina... onde não tem guerra? Tem guerra no mundo todo. Estamos buscando de novo o amor e a paz. Sem amor e sem paz a vida não é boa. Não é vida, é morte. Hoje eu olho as pessoas de modo bem diferente de como eu olhava há 15 anos atrás. Nosso olhar muda com a época.

REVISTA: Que fatos mais marcaram a sua vida durante a II Guerra?

RENÉE: Durante a Segunda Guerra Mundial, engajei-me na Resistência Francesa. Fui perseguida pelos nazistas, atravessei os Pirineus a pé e enfrentei duas prisões na Espanha. Numa delas, em Gerona, fiz uma performance ao som da Ave-Maria de Gounod, recebendo em troca cama, passe livre na prisão e comida na enfermaria. Quando fui presa, roubaram todos os meus diplomas e recortes de jornais. Apesar dos esforços do embaixador americano durante a guerra e do embaixador francês depois dela, esses documentos nunca foram encontrados.

REVISTA: A dança lhe trouxe a liberdade?

RENÉE: A liberdade eu trago em mim. Estamos a três dias do “14 de julho”, essa data não é importante apenas para a França. A revolução francesa transformou o mundo inteiro. Então eu sempre falo: “fraternité”, igualité”, e aí faço uma pausa para respirar e dizer o mais importante para todos nós: “liberté”.

REVISTA: Como você vê as novas práticas de trabalho corporal?

RENÉE: Todo mundo se chama “terapeuta corporal”. Lá na escola de teatro Célia Helena fiz um teste com esses que se chamam “terapeutas corporais” e constatei que não sabem nada. A palavra “terapia” tem a ver com a cura e esta terapia que fazem não cura; eles mesmos deveriam antes aprender o que é terapia corporal.

REVISTA: O tempo pode impor limites ao corpo. Como você lida com esses limites. Você tem limites? Você sente esses limites?

RENÉE: Tenho. Eu não tenho mais a técnica que tinha há 20,30 anos atrás, especialmente por causa das fraturas que tive, mas quem na realidade não tem limites? Eu sei exatamente a imagem com a qual quero dançar. Tudo depende de meu interior. Tudo deve ser feito do interior para o exterior e nunca do exterior para o interior, nunca.

REVISTA: Qual era o foco do trabalho “Uma lágrima nasce de mim para todos” que você fez em 86?

RENÉE: Bem, na realidade suas lágrimas, suas tristezas, sua melancolia, seu amor também vai de uma boca para outra, vai para alguém. Já o espetáculo “A memória gruda na pele”, não foi autodidático, mas foi muito eu mesma, tinha muito a minha personalidade ali. Não tinha uma imagem literária, de pintura. Bem, na realidade uma boa coreografia é matemática. O espaço é super importante, é nosso parceiro. Sem espaço não tem existência. O espaço é muito importante. Como meus filhos estão fora do Brasil tenho nesses dois anos e meio este pequeno apartamento, mas que tem um terraço que tem vista para tudo. Tenho espaço. Eu não quero ter um prédio aí em frente.

REVISTA: E a idade, o que significa para você?
RENÉE: Tem gente de 25, 30 anos que não tem vida interior, não tem imaginação, não tem silêncio. Isto para mim é a terceira idade. Terceira idade que na realidade a palavra é muito mal usada. Não é a idade que está no seu passaporte que faz você ser da terceira idade. É o seu interior, sua emoção e sua cabeça que faz a sua idade.

REVISTA: Porque você foi mal recebida quando chegou a São Paulo em 1957?

RENÉE: Fui pichadíssima! Os clássicos me picharam. Porque foi tudo muito novo para eles. Por isso em seguida voltei para a Europa e quando ia assinar contrato com a diretora do “Ópera” de Paris ela me perguntou: “Renée, você que é sempre badalada, desta vez está sendo pichada”?! Retornei logo depois ao Brasil e com Márika Gidali e Marilena Ansaldi trabalhei os grandes clássicos.

REVISTA: O que você acha da fama do artista?

RENÉE: Quando me falam que sou famosa, digo: “mentira”! Ainda tenho muito o que aprender e continuo aprendendo. A vida muda a cada momento. Muita gente me conhece mas a palavra “famosa” é muito chata e inútil.

REVISTA: E seus filhos, onde estão?

RENÉE: Um filho e um neto estão na França. Minha filha está no Canadá. Ela me liga quase todos os dias, principalmente agora que estou doente. Ela tem dois filhos que já são adultos, moram em Toronto e estão na faculdade. Eles não vem muito para cá porque a viagem é muito cara. Minha filha esteve aqui há três anos.

REVISTA: Você sente solidão?

RENÉE: Não, nunca! Solidão é para gente que não tem nada dentro de si. Muitas vezes eu faço uma auto crítica: o que fiz bem, o que fiz mal. Sou bastante dura comigo mesma. Todos os grandes gênios com os quais tive muita convivência na Europa, antes de vir para o Brasil, morreram. Hoje em dia quando alguém chega a uma certa idade como eu, perde muitos amigos. É preciso lidar com essas perdas.

REVISTA: O que você pensa sobre a morte?

RENÉE: Para mim, é natural. Para mim morte é vida e vida é morte. Eu que já estive tantas vezes perto dela! Tanto durante a guerra, como durante as doenças. Eu acredito em reencarnação total. Para mim não existe morte que vai ao céu e acabou. Sou de certa forma anti-católica, anti-judia, anti-evangélica... que religião temos mais?... anti-protestante, anti-islâmica. Estou muito próxima da filosofia budista que é maravilhosa e todos precisaríamos seguir.

REVISTA: Você freqüenta algum templo Budista? Você tem alguma proximidade com algum grupo dessa religião?

RENÉE: Não, eu leio muito mas não vou a templos. Muitos dos meus amigos são budistas, mas não tenho tempo para freqüentar reuniões, nem quando estou bem. Tenho tido muito trabalho. Estou trabalhando nos “Sertões” com o Zé Celso, que é um homem muito especial, muito diferente e de quem gosto muito. Depois, tenho os espetáculos aos sábados e domingos. Não posso fazer nada e nem vejo os outros espetáculos e nem posso ler porque não dá tempo. Dou minhas aulas no teatro, no Teatro - Escola Célia Helena.

REVISTA: Você é muito vaidosa?

RENÉE: Para mim não existe vaidade. Eu acho que toda mulher é obrigada a fazer-se o mais bonita que puder, mas isto não é vaidade. Alguém que não se cuida, nem do cabelo, nem da pele, tem algo errado. Eu nunca vou a cabeleireiro, mas me cuido. Gosto realmente de jóias, não de bijuterias, mas não sou vaidosa. Quando me falam: “você é muito bonita”, então eu dou risada.

REVISTA: Porquê?

RENÉE: Porque não me acho bonita. Acho engraçado. Gostaria de fazer uma foto sem óculos. Aí tenho uma vaidade. Para o palco maquio muito os olhos e uso lentes de contato. Detesto como algumas pessoas se vestem. Gosto que os vestidos tenham uma relação de uma coisa e outra. O que eu acho importante é aprender cada vez mais e continuar a dar aulas aos meus alunos.

REVISTA: Você tem alguma orientação alimentar muito rígida?

RENÉE: Sempre fui magra. Não sei porque motivo deixei de ter vontade de comer carne vermelha. Como muita verdura: saladas, frutas, frango, mas não todos os dias. Como verduras, batatas, arroz integral e como tudo “à la francesa”: separado. Quando como batata não como arroz. Não janto, só quando recebo algum convite. Como pão com queijo e normalmente tomo um copo de vinho e não importa a que horas chegue, sempre tomo um copo de vinho à noite. Tenho, na minha idade, a pressão de 11 por 9, “como uma menina”, falam. O corpo, o trabalho físico é muito importante para várias coisas, mas com intensidade, com consciência. Evito tudo que é sem consciência, sem finalidade, sem sentimento, sem fogo, sem ar, sem natureza. Esta sala é pequena, mas tem coisas do mundo inteiro. Sou um pouco de tudo com raízes francesas muito fortes.

REVISTA: Você tem medo da violência? Sente-se ameaçada por ela?

RENÉE: Há, de fato, uma ameaça a todos. Sim, acho terrível. Pela televisão, a gente só constata que mataram esse, que mataram aquele. À noite não tomo táxi sozinha. Não gostaria de ser assaltada, mas não faço disso um empecilho para sair.

REVISTA: Para encerrar, que retrospecto você faz de sua vida?

RENÉE: Tive oportunidade de adquirir uma boa cultura. Vivi com os maiores gênios da nossa época, meus pais eram muito cultos. Não sou muito inteligente, especialmente para coisas práticas. Não consigo abrir uma garrafa de vinho! Ah, mas meu instinto é bem desenvolvido, com ele eu posso contar. Não sou freudiana, mas apesar de tudo acho que dormindo e sonhando nós mudamos as coisas.