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Entrevista: Gianni Ratto

Foto: Nilton Silva
Foto: Nilton Silva

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Gianni Ratto é um dos maiores expoentes do teatro brasileiro e mundial. Italiano, fundou com Paolo Grassi e Giorgio Strehler o Piccolo Teatro de Milão. Mas, a maior parte de sua vida foi dedicada à dramaturgia brasileira. Dirigiu para Maria Della Costa e o TBC e participou do Opinião. Em 1955, um ano após sua chegada ao Brasil, lançou “A Moratória”, de Jorge de Andrade. Dirigiu e cenografou “O Mambembe”, de Artur Azevedo. Sua participação foi decisiva para o sucesso de muitos espetáculos, como - “Cristo Proclamado”, de Francisco Pereira da Silva, “Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come”, de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar, “Gota d’Água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes, “Porca Miséria”, de Marcos Caruso e Jandira Martini. Escreveu “A Mochila do Mascate”, “Antitratado de Cenografia” e “Crônicas Improváveis

REVISTA: Iniciando nossa conversa, conte-nos um pouco de sua história de vida, quando e onde nasceu, sua infância...
GIANNI
: No dia 27 de agosto de 1916 eu nasci. Esqueci a hora de meu nascimento, mas por uma confusa lembrança um tanto mágica, meu relógio biológico marcava três horas da madrugada. Logo em seguida, a minha mãe me levou para Milão. Daí fui para Gênova, onde vivi por mais de 20 anos, estudando e trabalhando.

REVISTA - Quais foram suas ocupações na juventude, o que você estudou?
GIANNI
- Estudei durante quatro anos num colégio de padres. Aos quatorze, comecei trabalhar com um arquiteto que acompanhou meus estudos influenciando minha cultura artística. Fui ajudado nisto também pela presença de minha mãe, compositora musical e professora de canto. Nesse período estive em contato com personalidades artísticas que espontaneamente foram me levar à descoberta do teatro. Até os dezoito anos fui trabalhando e enriquecendo minha cultura profissional transitando por várias atividades: cenografia, artes plásticas, cinema. Depois de uma interrupção de quase oito anos devido ao estouro da Segunda Guerra, em 1946, tentei novamente reatar minha relação com o mundo e com o meu trabalho. No decorrer da Segunda Guerra fiz uma aprendizagem de vida muito rica: meu convívio com o povo grego, modestos camponeses agredidos pelas milícias fascistas. e hitleristas, foi marcante por estruturar um processo de sensibilização que me aproximou de uma compreensão humana até então para mim somente intuída. Nesta primeira fase da minha vida, já estava com vinte e nove anos, sempre fui acompanhado por uma sorte extraordinária que facilitou muito rapidamente um processo profissional que me levou a um êxito inesperado. Muitos colaboraram para comigo: Paolo Grassi, o futuro diretor do Piccolo Teatro de Milano, Giorgio Strehler, seu diretor artístico, Ghiringhelli, o magnata milanês que reergueu dos escombros o Teatro Scala, bombardeado pelos alemães, e uma sequência de grandes artistas, cantores, regentes e artistas plásticos de renome internacional com os quais eu me vi recebido e apreciado.

REVISTA - Que lições você tirou dessas experiências com a guerra?
GIANNI
- Como disse, a grande experiência foi adquirir uma estrutura interior que me levou a compartilhar a vida em todos os seus sentidos. Até hoje usufruo dela em minhas relações humanas; me sinto irmão de todos os que, desde o mais humilde trabalhador até aos que pertencem aos mais altos escalões da cultura, compartilham do meu convívio diário sem diferenças de categorias, valores ou idades.

REVISTA - O que você diz identifica uma postura crítica em relação à vida, uma visão básica e inevitável.
GIANNI
- Uma visão básica é a soma de fatores definitivos: amor, companheirismo, decência, honestidade, etc, entre outras presenças, o significado da palavra “fome” tem de ser identificado no sinônimo subnutrição. Subnutrição é a ausência dos elementos indispensáveis à vida inteligente.

REVISTA - Voltando ao teatro....
GIANNI
- Meu primeiro contato com a cenografia teatral foi a consequência de uma encontro casual com um dos maiores mestres teatrais do mundo, Gordon Craig, que na década de trinta morava num bairro genovês. Sua filha, estudante de canto lírico, frequentava as aulas de minha mãe. Esta relação de trabalho e amizade despertou em mim uma série de descobertas que mais tarde se concretizariam numa definição profissional. E foi exatamente depois da Segunda Guerra, em 1946, que, quando em contato com Paolo Grassi e Giorgio Strehler, participei na estruturação e fundação do Piccolo Teatro de Milano. Hoje, depois de cinquenta anos de atividades, nosso teatro permanece vivo e atuante, independendo do desaparecimento das duas primeiras grandes figuras que o realizaram.

REVISTA – Como foi o caminho da carreira teatral?
GIANNI
– Difícil como todas as experiência da vida. O percurso foi marcado por altos e baixos, e o que se evidenciou de forma mais rica foi o contato diário com autores, dramaturgos, atores, regentes, coreógrafos, diretores, cenógrafos, técnicos e operários, cujas atividades nortearam uma série de descobertas e constatações.

REVISTA: Em meio a todos esses encontros e atividades, como foi a sobrevivência no período pós-guerra?
GIANNI
- Difícil, mas cara e coragem não nos faltava e a experiência que ainda não tínhamos foi definindo cada vez mais nossos caminhos norteados pelos contatos cada vez mais marcantes com personalidades de alto nível cultural.

REVISTA: Além de desenhar cenários você tinha outras atividades complementares?
GIANNI
- Eu escrevia e também participava de seminários, palestras etc. Hoje, meu campo de trabalho é muito amplo abrangendo setores de interesses que vão desde o teatro dramático até a pesquisa teórica.

REVISTA: Quais autores teatrais influenciaram sua visão cultural?
GIANNI
- A dramaturgia brasileira foi para mim uma descoberta, uma iluminação. Autores como Jorge Andrade, Plínio Marcos, Nelson Rodrigues, marcaram presença definitiva que, aliadas as de Shakespeare, Camus, Goldoni, Molière, Brecht e ao total da dramaturgia internacional, me acompanham até hoje numa generosa convivência de intuições e de trabalho.

REVISTA: E os nossos contemporâneos?
GIANNI
- Nossa dramaturgia está se reerguendo de uma sonolência determinada pela presença de uma ditadura cuja influência negativa ainda não foi apagada. Com a entrada do segundo milênio a produção teatral parece estar despertando, dando sinais de recuperação e criatividade. A presença de autores como Bosco Brasil, Aimar Labaki é fortemente marcante, mais do que promissora, e isto abre caminhos novos.

REVISTA: Como é que você classifica o trabalho de Antunes Filho?
GIANNI
- Acho que se observarmos objetivamente o panorama do processo evolutivo do espetáculo, identificamos duas figuras que eu considero fundamentais e antitéticas: Antunes Filho e Zé Celso Martinez. O primeiro marcado pela severidade teórica e a lucidez racional e cartesiana de sua criatividade temática; o segundo, com uma visão orgiástica da vida, iconoclasta, agressiva, provocadora, genial e alucinada.

REVISTA: E Gerald Thomas, Gabriel Vilela e Romero?
GIANNI
- São presenças discutíveis e apreciáveis.

REVISTA: E quanto aos cenógrafos brasileiros?
GIANNI
- Até hoje o que me encanta são propostas desencontradas, não privadas, de uma certa genialidade, mas, ao meu ver, só preocupadas com afirmações individualistas, em geral divorciadas de uma visão dramatúrgica rica, crítica e essencial. As grandes presenças são as de Flávio Império e a de Tomás Santa Rosa.

REVISTA: No panorama do teatro internacional com quem você se identifica?
GIANNI
- O teatro internacional é marcado por presenças inevitáveis: Ranconi, Strehler, Svoboda e uma sequência de grandes nomes. Mas para mim o que eu mais prezo e admiro, como uma afirmação indiscutível e definitiva, é Peter Brook, cuja visão abrangente é universal.

REVISTA - Existe uma divergência de postura ou de enfoque entre o teatro paulista e o carioca?
GIANNI
- O Brasil é um país orientado por eixos definitivos, que até hoje afirmam sua presença. Rio-São Paulo é um deles: tanto uma capital como outra afirmam uma presença cívica e cultural independente. Afinal somente 400 Km separam as duas cidades, mas cada uma mantém suas características específicas: Rio com as saudades de uma ex-capital imperial, dentro de um contexto carnavalesco que, bem ou mal, informa e altera seus parâmetros cotidianos; São Paulo, caótica e pseudo cartesiana, na posição de um equilíbrio permanentemente oscilante. Ambas apoiadas no lastro de uma cultura técnica, criativa e insegura. Ambas rigorosas, famintas de êxitos, prontas a enfrentar polêmicas, debates, experiências e fracassos. Ambas, generosas, olhando para o horizonte de um futuro que cada vez mais identifica-se no conceito de um marketing definitivo e melancólico.

REVISTA - Neste momento, quais têm sido suas atividades?
GIANNI
- Estou acompanhando os projetos da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, que tem em Celso Frateschi seu coordenador geral. Estou colaborando com o projeto “Solos do Brasil”, planejado e dirigido por Denise Stoklos, na visão de seu “teatro essencial”. Esse projeto é muito interessante: foi patrocinado pela Petrobrás, visando seleções nacionais, no intuito de identificar novos talentos de criadores independentes.

REVISTA - Teatro Essencial?
GIANNI
- O sentido que a palavra essencial abrange é o de uma visão que busca e identifica um conceito de síntese, na tentativa de eliminar tudo o que não é necessário a uma presença dramatúrgica: cenários, figurinos, objetos, iluminação; descobrir a riqueza dos valores contidos na palavra, no gesto, no grito. O que não significa necessariamente eliminar os acessórios, mas limitar sua presença ao estritamente indispensável. No teatro essencial cada um é responsável pela sua própria criatividade e o espetáculo é caracterizado pela ausência de uma direção técnica, pois o trabalho dos integrantes é um prefácio às suas atividades profissionais.

REVISTA - Qual é a sua função neste processo?
GIANNI
- A de orientador de criatividade, influenciador de ideias na busca dos percursos que podem levar à descoberta da sensibilidade individual.

REVISTA - Como você avalia o atual contexto político e econômico mundial, a globalização, o governo Bush, o terrorismo internacional, etc?
GIANNI
- Sem paráfrases, “Isto é uma vergonha!”

REVISTA - Você está pessimista em relação ao cenário (sem trocadilho) em que vivemos?
GIANNI
- Em relação ao homem está claro que sou otimista, mas frente à realidade na qual vivemos... Confio na criatividade do homem e ainda acredito que se possa conseguir ultrapassar a barreira da mediocridade e da politicagem imperante. Ainda acredito que a poesia possa nos redimir da mesmice destruidora. Acho possível ainda superar a miséria intelectual que norteia o mundo dos interesses escusos e medíocres. Ainda acredito na fulguração criadora da palavra e do pensamento. Mas não posso deixar de constatar que o medo do obscurantismo e seus perigos permanece ameaçador.

REVISTA - Como você avalia o atual momento político e econômico do Brasil?
GIANNI
- Se eu comparar a data de 1954 (ano no qual eu cheguei ao Brasil) com 2002 de Lula, percebo que o momento atual é de uma esperança abrangente e inovadora. Mas eu sou incompetente no jogo político, o que não significa nada dentro do jogo internacional das intemperanças. Meus interesses específicos estão muito mais ligados à pesquisa dos valores que poderiam modificar um processo de melhoria da vida cotidiana brasileira. Não entendo de política e de economia, mas acho importante avaliar o custo da desnutrição física e cultural que está constantemente entravando o caminho de uma liberdade ansiosa, mas incompetente. Cristão como eu sou, e anticatólico por adoção definitiva, quero me situar num território no qual eu possa me reconhecer em meus amigos, no meu trabalho, na busca permanente de uma decência que considero fundamental para sobreviver.

REVISTA - Como você vê a atual política municipal para a cultura?
GIANNI
- Existem vários projetos para complementar e enriquecer as intenções culturais, tanto da Prefeitura quanto do Estado. Mas tudo isto (a não ser o projeto da Prefeitura dirigido pelo sr. Celso Frateschi) somente leva a resultados parciais por causa de todos os entraves que a burocracia coloca na frente de quem estiver pesquisando.

REVISTA - Como você vê as ações de instituições privadas?
GIANNI
- Já tive o prazer de trabalhar com o Sesc, o Sesi e o Senac. Se o governo federal conseguisse uma parcela mínima do que acontece com essas entidades, o processo educacional, em todos os sentidos, levaria o país aos píncaros de uma consciência nacional; a educação é um reflexo da cultura que, por sua vez, tem de ser prestigiada em seu contexto geral. A cultura é um processo hereditário cumulativo que pode levar o povo à conquista de uma clara cidadania.

REVISTA - Como esta revista está voltada para questões da Terceira Idade e do envelhecimento, qual é a sua opinião sobre a situação do aposentado e do idoso brasileiro?
GIANNI
- O Sesc com suas atividades e com esta revista, incontestavelmente de boa qualidade, está demonstrando luminosamente quantos interesses são mobilizados para a conquista de uma benesse que abranja tanto a vida física como a espiritual de nossos jovens anciãos.

REVISTA – Mas, e a situação dos idosos no Brasil?
GIANNI
- Se penso nas filas que se organizam nos hospitais, e que ocupam horas de espera, e em determinados casos provocando situações graves, penso que a própria Previdência deveria ser assistida por causa de sua incompetência. Eu acho que a situação geral dos idosos é grave e em muitos casos sem retorno. Os entraves de caráter burocrático e antisociais dificultam (embora muitas providências tenham sido adotadas) o processo de ajuda e de assistência dentro das estruturas sócio-políticas do país. A sobrevivência e a dignidade deveriam ser conquistas permanentes do ser humano. O valor em dólar de um único míssil, o custo de uma guerrilha qualquer permitiria a regiões pobres esquecer desnutrição e encarar o problema da saúde como algo a ser sistematicamente enfrentado.

REVISTA - Existe alguma fórmula para se viver bem a velhice?
GIANNI
- Do meu ponto de vista a velhice é uma utopia. A velhice não pode ser considerada como um inevitável processo de desagregação. A velhice faz parte de um processo de conquistas físicas e intelectuais. A maturidade do homem deveria ser sempre orientada para a conquista de um caminho consciente. Penso que o homem nunca deveria manifestar medo perante a presença evolutiva da velhice. Pessoalmente acredito que a idade não pode ser expressada em termos numéricos. Na semana passada vi um documentário sobre músicos cubanos octogenários num concerto realizado no Carnegie Hall. A platéia delirou na execução das músicas de sua ilha. Um dos músicos, vivíssimo e com uma evidente alegria interior, confidenciou que, independendo de seus noventa anos, esperava ter mais um filho.

REVISTA: Falando em Terceira Idade, em fé, em Deus e nos homens, você tem alguma religião?
GIANNI
- Não

REVISTA: Acredita em Deus?
GIANNI
- Eu acredito no homem e em tudo o que me faz acreditar na humanidade. Quando me reconheço na dimensão absoluta do Cristo, não preciso mais de toda a parafernália dos rituais que cada religião propõe. A imagem de Cristo homem ilumina para mim um universo de valores indestrutíveis. O conceito de Deus está ligado à busca de uma felicidade fictícia: as guerras, as epidemias, as destruições, as misérias e tudo o que engloba fatores negativos identifica uma realidade que nada tem a ver com a esperança límpida de um recém nascido; Deus não nasceu, ainda está sendo programado no projeto “homem pelo homem”.

REVISTA: Você acredita que Cristo existiu, mas que foi um homem comum?
GIANNI
- Ele existiu, foi um homem comum e hoje permanece como algo intocável, parâmetro permanente do homem comum.

 

REVISTA - Você quer fazer algum comentário final?
GIANNI
- Gostaria de expressar aos meus amigos da Terceira Idade o desejo de uma vida longa e gratificante pela presença da poesia e do amor.