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Dama do Samba

Crédito: Acervo HBC
Crédito: Acervo HBC


De personalidade forte e gosto apurado, Aracy de Almeida transitava com a mesma desenvoltura entre círculos intelectuais e a boemia carioca


“Por que eu não posso criticar?”, perguntou Aracy de Almeida ao apresentador Silvio Santos em um dos muitos programas Show de Calouros em que atuou como jurada. Sem meias palavras e com muitas gírias, expressava sem dó a sua opinião sobre a atração que estava no palco. Não escapava ninguém, nem os moços bonitos (que ela mesma elogiava): “Eu vou te pedir um favor, meu filho, troca essas calças. Um rapaz bonito, canta bem, usando essa calça”. Nem as meninas maquiadas e arrumadas que apresentavam um quadro de dança: “Vou mandar dez paus e só. Realmente, a música é maravilhosa, mas elas não estavam no embalo daquela música”.

No entanto, antes de fazer parte daquele júri durante os anos 1970 e 1980 – função exercida hoje por muitos cantores nos reality shows musicais –, Aracy foi intérprete de grandes canções e fez sucesso com marchinhas de carnaval e sambas românticos. “Como cantora teve duas fases, a frequentadora assídua da boemia carioca, entre os anos 1930 e 1950, e outra mais sofisticada a partir dos anos 1950”, afirma o jornalista e pesquisador musical Rodrigo Faour. Atuando como produtor, idealizou a série de CDs Super Divas (2012), com fonogramas raros e inéditos de cantoras brasileiras, entre elas Aracy. Ele também foi responsável pelo relançamento em CD de Ao Vivo e à Vontade (esgotado), registro da noite na qual ela se apresentou no lendário palco do Lira Paulistana, nos anos 1980 – a casa de artes e shows localizada na rua Teodoro Sampaio, em São Paulo, funcionou entre os anos de 1979 e 1986. A ideia da apresentação veio dos músicos Zé Rodrix e Tico Terpins. Para Rodrix, Araca (como era chamada pelos amigos) tinha grande talento e conhecimento inato de como sacudir a plateia.


Veia popular

Como intérprete, Aracy foi uma das primeiras a imprimir um jeito popular de cantar. No começo do século 20, o padrão era o dos cantores líricos, mas Aracy e Carmen Miranda mudaram esse perfil. “Tanto é que Isaurinha Garcia, a maior cantora da história de São Paulo, contava que a grande referência dela era a Aracy”, comenta o jornalista e pesquisador Alexandre Pavan, autor do livro Timoneiro – Perfil Biográfico de Hermínio Bello de Carvalho (Casa da Palavra, 2006).

A importância de Aracy vai além da vertente dos sambas. Ela também ajudou a divulgar as marchinhas de carnaval ao mesmo tempo em que transitava por melodias refinadas. Para Hermínio Bello de Carvalho, amigo de Aracy e autor do livro Araca – Arquiduquesa do Encantado (Editora Folha Seca, 2004, edição esgotada), menciona-se muito o fato de Aracy ser a cantora de Noel Rosa, o poeta da Vila. Porém, suas primeiras gravações foram marchas de carnaval, nas quais se percebia a referência a Carmen Miranda: “A influência de Carmen foi enorme em praticamente todas as cantoras da época. Só quem escapou foi Elizeth Cardoso, que, por sua vez, declarou ter começado sua carreira imitando não uma, mas três outras intérpretes: Aracy de Almeida, Odete Amaral e Marília Batista”, explica Carvalho. “Realmente, Araca gravou inúmeros sucessos de carnaval, sobretudo da dupla Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, como Tem Galinha no Bonde, Passo do Canguru, O Passarinho do Relógio, Miau Miau.”

Nesse pioneirismo, outra característica inusitada foi sua familiaridade com diversos gêneros musicais, fazendo prevalecer o seu gosto pessoal. “Ela apreciava a qualidade e a originalidade do que cantava, porque não foi apenas a intérprete de Noel Rosa, mas também de Custódio Mesquita, Ary Barroso e outros que precederam a bossa nova”, enfatiza Carvalho.

Aracy também dava voz ao sentimento da mulher. O que para Faour era uma coisa ambígua nas primeiras décadas do século 20. “Quando ela começou a carreira, só havia homem compondo. O machismo era muito forte. A Aracy sempre foi transgressora e nunca respeitou esse limite. Havia o Café Nice, Carmen Miranda não entrava, mas Aracy, sim”, compara Faour. Considerado um grande mercado da música popular brasileira, o local promovia encontros de compositores e cantores, na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Foi inaugurado em 1928 e fechou as portas no final dos anos 1950.


Os outros e Noel

Aracy dizia conhecer muitos compositores do morro, mas nunca gravou Cartola, por exemplo. Sua primeira gravação foi feita na Rádio Educadora do Brasil, onde, segundo ela própria relatou em 1972 – no programa Ensaio, da TV Cultura –, teve a sorte de encontrar Noel Rosa. Ficaram amigos e o compositor a levou à taberna da Glória, local de sambistas e boêmios, onde compôs uma música para ela naquela mesma noite nos anos 1930, chamada Sorriso de Criança.

No mesmo programa, a cantora afirmou que considerava Noel a única pessoa que lhe havia estendido a mão e que lhe entregara um repertório muito grande, “sem ficar no mocó”, ou seja, sem esconder o jogo.

Anos depois da morte do amigo da Vila Isabel, a artista gravou, em 1950, o disco Aracy Canta Noel, que pode ser considerado um dos primeiros álbuns conceituais da música brasileira. Na opinião de Carvalho, trata-se de uma obra-prima. “Foi gravado com arranjos de Radamés Gnattali e capa do Di Cavalcanti, com conceito superbem fechado, correto, definido”, diz.


Personalidade forte, som atemporal

Nascida no bairro do Encantado, subúrbio do Rio de Janeiro, em 1914, Araca conquistou seu espaço no rádio, mas como conta Carvalho, ainda numa época em que o jabá – prática na qual a gravadora pagava às rádios para que a música de determinado artista fosse tocada na programação – não havia sido instituído da forma como hoje o conhecemos. Portanto, a cantora ganhou destaque pelos próprios méritos: “E Araca gozava de tal prestígio artístico junto às rádios e gravadoras, que deixou de gravar Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, porque a gravadora se negou a lhe dar a orquestra de Radamés Gnatalli. Ela era tinhosa, sabia o que queria. Essa relação dela com as gravadoras se estendia, acredito eu, às rádios”, revela Carvalho.

Para Rodrigo Faour, deve-se reconhecer que suas gravações são atemporais. “Não tem letra datada, não tem ranço de música antiga. Embora quase nada esteja em catálogo, não ficou ultrapassado. Ela gravava coisas fortes e interessantes”, argumenta.

De personalidade forte e voz marcante, Aracy era respeitada entre os boêmios e personalidades importantes da cultura nacional. Dona de uma coleção de antiguidades invejável, fã de música clássica e do compositor francês Claude Debussy, foi amiga de Vinicius de Moraes, Mário de Andrade e do estilista Dener Pamplona de Abreu, que fazia roupas especialmente para ela. Embora no final da vida tenha se tornado, aos olhos do grande público, uma figura caricatural, Aracy, que morreu em 1988, de embolia pulmonar, está além de classificações e enquadramentos pragmáticos. “Uma sambista com esse tempo de pensamento nunca houve e não haverá”, resume Faour.


História de vida

Cantora é homenageada no centenário de seu nascimento


O espetáculo A Rainha dos Parangolés apresentou histórias saborosas de Aracy de Almeida entremeadas com músicas de seu repertório, no mês de agosto, no Sesc Belenzinho.

Em encontro que reuniu música e conversa, os comentários ficaram a cargo do poeta, produtor e compositor Hermínio Bello de Carvalho, em papo mediado pelo jornalista Alexandre Pavan. Já a trilha sonora correu sob a batuta do cantor Marcos Sacramento, que interpretou os sambas de Aracy na companhia do violonista e diretor musical Luiz Flávio Alcofra.

“A ideia foi bater um papo com o Hermínio, um sobrevivente dessa geração. Embora seja mais novo, teve uma convivência de quase 30 anos com Aracy. Conheceram-se no final dos anos 1950 e ficaram próximos até o fim da vida dela”, afirma Pavan.

O jornalista levou a própria curiosidade para o público, que pôde acompanhar vídeos com trechos de programas gravados na TVE do Rio em 1986, pouco tempo antes da morte da cantora. “Para a minha geração, que só teve a oportunidade de ver Aracy na fase de jurada, pode ter prevalecido a figura engraçada e mal-humorada”, esclarece Pavan. “Fala-se muito pouco da importância que ela teve nas décadas de 1930 e 1940.”


As vozes de Noel

Carmen Miranda, Marília Batista e Aracy de Almeida concorriam para cantar os sambas do poeta da Vila

Muitas canções de Noel Rosa caíram e caem nas graças de grandes cantoras brasileiras. Na década de 1930, havia três, em especial, que concorriam para cantar seus sambas: Carmen Miranda, Marília Batista e Aracy de Almeida. Embora tenha feito sucesso com algumas composições de Noel, Carmen Miranda não era a sua preferida. Seu modo de cantar samba não agradava a Noel, que percebia no repertório da cantora uma evidente predileção pelas marchas. Já Marília Batista disputou com Aracy a preferência de Noel. Ambas entraram em sua vida no mesmo ano, 1934, mas as coincidências param por aí. Em tudo elas eram diferentes, inclusive na forma como aprenderam música. Enquanto Marília estudava canto com professores de conservatório, Aracy se exercitava no coro de uma igreja Batista. Embora fosse também compositora, Marília Batista não chegou a ter uma parceria com o amigo Noel Rosa. No entanto, além de ter gravado inúmeros sambas do menino de Vila Isabel, participou com ele de incontáveis e memoráveis programas radiofônicos e de shows. Aracy, cantora muito mais intuitiva, era uma mulata pequena, de voz anasalada e forte que, segundo Noel, era a melhor cantora de “samba de batida” – mais marcado e ligeiro, em contraponto a um samba mais lento. Quando perguntado quem era a melhor intérprete de sua música, Noel não titubeou: “Aracy de Almeida é, na minha opinião, a pessoa que interpreta com exatidão o que produzo”.

Fonte: Mayra Pinto, pesquisadora, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo – IFSP – e autora do livro Noel Rosa: O Humor na Canção (Ateliê Editorial, 2012).