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Livro, este objeto

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


Por Jefferson Alves de Lima


Livros, como os conhecemos, são objetos que contam quase 600 anos. É mais que os 160 anos que marcam o registro do som, ou os 120 do cinema. É mais que os 90 anos do rádio, mais que os 70 da televisão ou os 40 anos dos microcomputadores. É muito mais que os 25 anos da internet e muitíssimo mais que os sete anos dos equipamentos comercializados para a leitura de edições digitais.

Livros são antigos, medievais, modernos, contemporâneos e, entre suas páginas, horizontes seguem sendo sugeridos. São um acúmulo de traços rupestres, alfabetos e escritas, tábuas de argila, papiros, couros, tecidos, celulose e papel retirados da polpa das árvores. Atravessaram o rolo de pergaminho e as placas de madeira do códice. Sedimentaram regras e leis, possibilitaram o surgimento de religiões e impulsionaram revoluções. Foram proibidos, perseguidos, apreendidos e, quando favoreceram o protestantismo no século 16, a Igreja Católica procurou atirá-los na fogueira de seu Index Librorum Prohibitorum.

O imperador chinês Shih Huang Ti, no entanto, já teria estreado este modelo de controle sobre a propagação de ideias, ligada à escrita, três séculos antes de Cristo. Responsável por ter ordenado a construção da muralha chinesa, Shih Huang Ti teria decidido também queimar todos os textos anteriores a ele, como escreve J.L. Borges no ensaio A Muralha e os Livros.  “Três mil anos de cronologia tinham os chineses (e nesses anos, o Imperador Amarelo e Chuang Tzu e Confúcio e Lao Tzu), quando Shih Huang Ti ordenou que a história começasse com ele”. E mais à frente: “Herbert Alles Giles conta que aqueles que ocultaram livros foram marcados com um ferro candente e condenados a construir, até a morte, a desmedida muralha”.

É do mesmo Borges uma das mais belas (e lembradas) sugestões do lugar deste objeto sedutor: “Dentre os diversos instrumentos do homem, o livro é, sem dúvida, o mais assombroso. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões da visão; o telefone é extensão da voz; também temos o arado e a espada, como extensões dos braços. Mas o livro é outra coisa: o livro é extensão da memória e da imaginação.” (Cinco Visões Pessoais, 2002).

Como objetos, os livros são sedutores em suas formas, em suas texturas, em suas cores, em sua organização e desenho. O formato que lembramos imediatamente quando pensamos em um livro, por exemplo, estaria ligado a uma figura considerada, na geometria, agradável aos olhos: o retângulo de ouro. Insinuando o êxtase do tato e do toque, Vilém Flusser considera que a sedução é assunto igualmente ligado às lombadas dos livros. Flusser acredita que o livro não se mostra de maneira “silenciosa e cheia de desdém” mas com gestos promissores: “A sedução está na lombada. Ele quer ser girado, aberto e folheado.” (A Escrita – Há Futuro para a Escrita?, 2010).

Para Flusser, é a natureza atribuída ao papel o elo a relacionar a presença física do livro à sua variação digital. “O papel é qualquer base que absorve todas as nossas experiências e todos os nossos conhecimentos, sejam os novos sinais excêntricos das memórias artificiais, sejam os borrões verdes das florestas.”.

Por qualquer modo, a questão do livro e das redes digitais não parece se limitar a uma variação de suportes para a palavra escrita. Não apenas o processo de produção, edição e distribuição de conhecimentos se mostra transformado com a possibilidade descentralizada das redes, como os livros e a escrita se inserem num ambiente em que o som e, sobremaneira, a imagem mobilizam e orientam a circulação de informações.

Num dia a dia em que cada vez mais “o que acontece lá fora” é conhecido de modo mediado, parece ser, assim, com os discos, o cinema, o rádio, a TV e a internet que estes objetos ilimitados (nos seus 600 anos de mediação) disputam espaço. A considerar  a leitura de Lorenzo Vilches, uma disputa ainda favorável ao papel do livro. “O certo é que toda nova cultura digital continua a ter como referente o autor e o livro de papel, ainda que para radicalizar possíveis alternativas.” (A Migração Digital, 2003). Vida radical e longa ao livro, pois.


Jefferson Alves de Lima, jornalista e mestre em Comunicação e Semiótica, é assistente técnico da Gerência de Difusão do Sesc