Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Tavistock Square

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


para a Elisa


Não há esquilos porque chove.
Mas havia mesmo esquilos nesta praça?

– Está vendo a praça, filho?

Ele não responde. Está ensacado num casaco sobre outro, sobre mais duas camisetas de manga comprida. Por cima ainda uma capa de plástico que cobre o carrinho e além da água bloqueia também o som. Ele detesta.

Será que as crianças brasileiras sofrem mais com o frio? Brasileiro ele não é, quer dizer, ele é meu filho, mas nasceu aqui. Tem dois passaportes. Deveria falar português e inglês. Ele é mais branco do que eu. Sua pele é bem fina e quase transparente. Eu tenho medo de machucá-lo. Tenho medo de que ele pegue um resfriado e que o resfriado vire outra coisa, mais séria.

Mas o que de verdade me dá medo é que ele não fale minha língua. Por isso estou pedindo pra ele repetir tudo o que eu digo. Sempre pensei que quanto mais a mãe fala, mais a criança fala. Como eu falo pouco, peço que ele repita tudo o que eu digo.

No começo, havia pássaros, cavalos e sapos que saíam da boca dele. A língua tremia e saía como se quisesse me pegar. Ele mexia a língua me olhando nos olhos. Depois abria a minha boca como se quisesse colocar os sons dele dentro dela. Segurava meus dentes, empurrava. Segurava minha língua, puxava.

As coisas não são tão certas: havia sim esquilos nesta praça. Por isso, hoje de manhã, antes de sair de casa, anunciei que a gente ia vê-los.

Da primeira vez que eu vim a esta praça havia esquilos. Lembro porque achei esquisito que eles me encarassem sem nenhum medo. Lembro que me pareceram pequenos, menores do que eu imaginava. Também me pareceram espertos. Como outros bichos, me fizeram pensar que estavam mais preparados do que nós pra vida.

Eu estava sozinha e falei com um deles. Ele me olhou nos olhos. Contei que a combinação foi a seguinte: vamos procurar a sorte por lá, se não der certo a gente volta. O tempo de voltar é que é de difícil cálculo. Até onde a gente vai? Até onde a gente é capaz de ir? O esquilo me ouvia. Eu disse que estava grávida e que eu queria que o menino fosse esperto que nem ele. Queria que ele corresse, que fosse livre, que não tivesse medo de nada. O esquilo continuou me olhando em silêncio até que chegou a tarde e nós dois fomos embora.

Ele trabalha todos os dias, de 10 às 3. Quase sempre saímos com ele e eu fico dando voltas com o menino até a hora da saída. Debaixo de chuva, também, porque senão a gente não sai nunca de casa. Com a capa de plástico e a capa de chuva, minha, tudo fica bastante resolvido. A chuva aqui é constante, mas tímida. A gente se acostuma.

Por que ter um menino nesta cidade? Por que não fazer um curso de inglês? Por que simplesmente não ficar onde a gente está? São perguntas que eu faço, enquanto o menino olha à sua volta à procura dos esquilos, que não aparecem. Se a gente for embora sem ter visto os bichos, é possível que ele passe a detestar esta praça.

Vejo-o sair do restaurante, com seu casaco pesado e suas botas pesadas, sempre úmidos. Ele se aproxima, me dá um beijo frio e um leve tapa nas costas. Olha o menino de longe, do lado de fora da capa de plástico. Vamos em silêncio até o ponto de ônibus. Lá dentro ele cochila. O menino cochila também.

Será que ele queria mais? Ele traduziu seu nome pra Roderick. Ele fala com o menino em inglês. Eu digo que não acho bom. Não pode ser bom perder assim as referências. Pra ele é importante. Uma oportunidade como esta não dá pra desperdiçar.

Coloco duas camisetas no menino, depois tiro uma delas. Tenho medo que ele fique com calor. Tenho medo que aperte. Vai ver que é por isso que ele não fala. Eu não dou certezas pra ele. Eu falo pouco e duvido. Ele é um menino lindo e calado. Parece um príncipe. Parece um esquilo, mas assustado.

Havia esquilos nesta praça? Sempre chove nesta praça? Sempre chove nesta cidade? Por que ter um menino nesta cidade? Por que não fazer um curso de inglês? Será que ele queria mais?

Da primeira vez que vim aqui, sentei num banco e fiquei observando o movimento dos prédios. O menino estava dentro de mim e se mexia sem parar. Eu entendia isso como um desejo de sair pra ver o mundo. Pensava que ele detestava estar dentro de mim. Pra me distrair, observava os prédios que contornam a praça. Tudo pra mim ali era estranho, mas eu tinha também a sensação de que essa paisagem ficaria marcada em mim. Como o coração com flecha no banco de madeira da praça: Rudy & Dave. Como a estátua do homem careca, de óculos redondos e pernas cruzadas, imóvel sobre um quadrado de pedra. Como cada um desses prédios. Há muitos hotéis por aqui. Tem um que se chama Tavistock Hotel. É antigo. Deve ter quartos grandes. Um quarto dali deve ser do tamanho da nossa casa. 

Nossa casa é um quarto. Às vezes acho incrível tudo o que cabe ali: uma pia e um vaso. Um fogão e um armário para a louça. Uma mesa dobrável num canto. A cama, o berço. Alguns brinquedos. Uma bicicleta que ele quase nunca usa.
O menino conhece cada centímetro dela. Ele se arrasta pra lá e pra cá, como uma minhoca. Ele também pula, como um sapinho. Ele foi precoce nisso. Começou a andar com nove meses. Parecia um adulto em miniatura. Tudo fazia crer que ia ser assim com o resto também.

Mas havia mesmo esquilos nesta praça? Havia esta praça sem chuva? Hoje a chuva está menos tímida. O menino está cansado de ficar dentro do carrinho. Às vezes ele se debate. Eu falo pra ele que ele não pode sair porque está chovendo e ele pode pegar um resfriado, que pode virar outra coisa, mais grave. Ele não entende. Também não chora. O menino não chora. Eu queria muito que ele chorasse, porque sempre achei que chorar é uma forma de falar.

Dou a ele sob a capa de chuva um pacote de biscoitos que trouxe de casa. Ele aceita. Comida ele sempre aceita. Ele come sozinho, mas se suja bastante. Por isso deixo apenas quando estamos sozinhos. Ele não acha bom. Diz que eu estou forçando as coisas. Depois se afasta e olha para nós, de longe.

Os farelos do biscoito começam a cair no chão. Vejo como vai se formando uma espécie de nuvem no chão ao redor do carrinho. Nela se pousam uns pássaros. Eles querem comer também. Muitos pássaros, marrons, pequenos. Mais e mais. Quando o menino se dá conta, ele ri. Às vezes, quando há bichos, ele ri.

– Está vendo, filho, não há esquilos, mas há pássaros.


Paloma Vidal é autora de Mar Azul (Rocco, 2012), Mais ao Sul (Contos, 2008), entre outros.
Além disso, participou da antologia 25 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (Record, 2004).