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Cidadania
Paz: pacifismo para quem?
No Ano Internacional da Cultura de Paz, os movimentos pacifistas no Brasil ganham contornos urbanos e pedem o fim da violência e da insegurança. Mas será que escapam da mera retórica?
No ano passado, a Organização das Nações Unidas (ONU) designou o ano 2000 como o Ano Internacional de Cultura de Paz. Reforçando a idéia, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) lançou o Manifesto 2000. Trata-se de uma proposta direcionada às pessoas de todo o mundo, que visa transformar a cultura de guerra e violência, hoje predominante, em uma cultura de paz e não-violência; exigir a participação para oferecer oportunidades de melhoria aos jovens e tornar possível o desenvolvimento sustentável, a preservação do meio ambiente e o bem-estar de cada um.
Segundo Guilherme Cunha, ex-representante do alto comissariado da ONU para os refugiados, a disposição da entidade "é um convite orientado no sentido de fazer com que as vontades políticas de governos nacionais dos Estados-membros da ONU assumam essas responsabilidades e atuem de maneira coordenada".
Na década de 1970, por conta da Guerra do Vietnã, as atrocidades e crimes voltaram a chocar a comunidade internacional, ainda estarrecida com as feridas da Segunda Guerra. O conflito asiático foi o que mais gerou movimentos de protesto, não apenas nos Estados Unidos, diretamente envolvidos com 500 mil soldados em luta, como em várias outras partes do mundo, até mesmo no Brasil. Geralmente formados por jovens e estudantes, esses movimentos exerceram forte pressão junto aos governos e às organizações internacionais no sentido de apressar soluções que pudessem levar paz às regiões em conflito. Desde então, vem crescendo o número de organizações não-governamentais (ONGs) dispostas a lutar por essas mudanças.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da União Soviética, a Guerra Fria desapareceu e os movimentos foram perdendo força. As guerras localizadas e os conflitos continuaram, mas os movimentos pacifistas, despojados de seu conteúdo ideológico, foram mudando de rumo. Parte simplesmente desapareceu, parte redirecionou sua energia para a ação ambientalista, para os movimentos e organizações ecológicos.
Guilherme Cunha escrutina os valores pelos quais, atualmente, um sem-número de entidades oficiais e ONGs desfraldam as bandeiras da irresignação: "As causas que estão na origem da miséria e da violação dos direitos humanos são basicamente políticas: luta pelo poder feita de maneira caótica, violenta, fora das regras jurídicas tradicionais que possam assegurar o respeito ao cidadão. Além disso, o problema do crescimento econômico desigual e a solução violenta de conflitos, a guerra, o movimento forçado de populações para fora de seu território e o conflito Norte-Sul implica a existência de 'regiões' do mundo, espaços geográficos onde os direitos do cidadão não são respeitados."
No Brasil, a indignação geral se ergue contra os crescentes índices de violência urbana e a sensação opressiva de insegurança. Cada vez mais, essa temática ganha terreno na retórica da política e canaliza energias. Tornou-se, como o Vietnã dos anos de 1970, nosso símbolo emblemático da luta pela paz. Porém, tendo como pano de fundo o Ano Internacional da Cultura de Paz, é preciso realizar uma análise concreta dos pilares que alicerçam tais movimentos, pois, entre o discurso e a atitude, a intenção real pode se perder.
Segundo Lúcia Nader, do departamento de comunicação do Sou da Paz, instituto que nasceu da união de estudantes universitários engajados inicialmente em uma campanha a favor do desarmamento, tais iniciativas têm grande força na sociedade. "Por meio das passeatas e manifestações queremos sensibilizar a sociedade e mostrar que não estamos mortos, que só com a mobilização podemos mudar a situação de violência. As pessoas tomam atitudes ao verem os outros engajados em um movimento."
Em contrapartida, de acordo com Marília Amorim, professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esse tipo de declaração generalista ("as pessoas", "nós temos") causa um sentimento de indiferença e unanimidade em relação a uma causa, que a partir desse momento qualquer um pode abraçar, até aqueles que têm responsabilidades. "Fico indignada quando vejo governantes vestindo uma camisa branca e dizendo 'basta'. Será que eles não têm nenhuma responsabilidade sobre esses problemas?", questiona, referirindo-se ao movimento Basta, Eu Quero Paz. Seguindo essa lógica, Marília afirma que se trata de um processo inverso à busca de soluções para o problema da violência: "A despolitização dos tempos pós-modernos é ao mesmo tempo efeito e estratégia do neoliberalismo. Efeito, entre outras coisas, da desarticulação das relações de trabalho e da monopolização crescente dos meios de comunicação de massa, assim geradores do pensamento único. Estratégia porque, despolitizada, a massa aceita qualquer dominação".
Para a professora, parte das passeatas são ilegítimas, pois não indicam responsáveis nem dão nome às causas: "Passeatas de verdade criam polêmicas e forçam uma reação por parte dos criticados". Criam-se, na verdade, simbologias de paz que tiram de foco os problemas que causam a violência, que são, em sua maioria, de ordem política. Temas como desigualdade social, pobreza, concentração de renda e irresponsabilidade política nunca são levantados pelas campanhas. A solução vislumbrada por Marília seria a discussão com a sociedade sobre políticas públicas, convocando representantes governamentais e de outras instituições.
Paulo Mesquita, secretário executivo do Instituto São Paulo Contra a Violência, entidade mantida pela Federação do Comércio de São Paulo, que identifica e apóia projetos que visam diminuir a violência, pondera: "Às vezes, as questões mais complexas são simplificadas e coloca-se à tona as justificativas mais imediatas e tradicionais para explicar a violência - a pobreza de um lado e a falta de polícia na rua, de outro. Alguns movimentos se valem de um slogan e se sustentam na primeira reação das pessoas quando o assunto é violência e segurança pública, sem problematizar a contento a questão." Ou seja, no Ano Internacional de Cultura de Paz, uma das saídas legítimas para o nosso Vietnã seria acarear críticos e criticados, sem maquiar os conflitos.