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Dança
O corpo é texto
Dança/teatro? Teatro coreografado? Os termos são muitos. Mas, de fato,a dança já não é mais a mesma
Dança/teatro, dança com teatro, dança que engloba elementos do teatro. Falar sobre essas coisas não é simplesmente, e nem de começo, chamar a atenção para uma "nova tendência". A necessidade de se entender a dramaturgia do corpo existe desde que o homem começou a dançar e a expressar sentimentos usando o corpo. O teatro e a dança sempre se relacionaram. Já a partir do início da dança cênica, essa "contaminação" era evidente. No século 19, por exemplo, os chamados balés de repertório contavam suas lendas e contos de fadas lançando mão de linhas de roteiro. Quando somente a dança não resolvia a situação dramática, recorria-se à pantomima e à mímica, técnicas tipicamente teatrais. Por outro lado, no século 20, é fato que algo realmente novo ocorreu dentro dessa relação. Tal "novidade" fica cristalina sob o prisma da modernidade projetado na arte em geral.
A exemplo do que fizeram os modernistas na pintura, que se voltaram para seus próprios processos de composição, ignorando figuras e paisagens e debruçando-se sobre pontos, linhas, planos, cores e texturas, a dança também procurou o seu moderno de maneira metalingüística, por assim dizer. Dançar para falar de dança. As técnicas e as composições evidenciavam o lugar do corpo no espaço, criavam passos, deixando de fora a teatralidade até então habitual. Porém, a partir da segunda metade deste século, a vanguarda mais uma vez devorou a si mesma e, como nos movimentos do pêndulo de um relógio, a dança voltou a tocar o teatro. "A partir dos anos 1950, tornou-se muito flagrante novas formas de contaminação", explica a professora e crítica de dança Helena Katz. "Surgiram pessoas que começaram a trabalhar nas intersecções entre dança e teatro de variadas maneiras: contando histórias e partindo de textos. Porém, trazendo para o corpo uma dramaticidade específica da dança, e não do teatro."
Um exemplo que ajuda a entender esse momento do casamento dança/teatro é o trabalho realizado pela coreógrafa alemã Pina Bausch. O processo de criação em seu trabalho ocorre de uma forma que facilmente seria chamada de laboratório teatral. Ela junta seus bailarinos e lança para eles perguntas dos mais variados tipos, desde "como foi o seu dia?", até "o que é morte para você?". Os bailarinos respondem, só que sem palavras. Dos gestos e movimentos provocados (inspirados?) pelas perguntas e respostas, surge o espetáculo. Em entrevista concedida ao professor Arthur Nestrovski, e publicada no suplemento Mais! do jornal Folha de S. Paulo, a coreógrafa conta que de início nunca sabe direito o que vai fazer. "O que os bailarinos me trazem é muito rico e é meu ponto de partida", confessa. "É um tipo de dramaturgia que não é mais emprestada do teatro, mas que está natural no corpo do bailarino."
De fato, a linha que separava claramente uma linguagem da outra, mesmo no palco, e que até deixava claro para a platéia em quais momentos elas se revezavam em cena, ficou fina ao ponto do imperceptível. "A dança também aparece no teatro", salienta Helena, "nas narrativas coreográficas e nas maneiras de trabalhar o espaço dos trabalhos dos encenadores Antunes Filho e Gerald Thomas, por exemplo."
No palco
Há muitas companhias de dança e solistas profundamente interessados na mistura dança/teatro e em suas diversas zonas de intersecção, inclusive no Brasil. Coreógrafos como a carioca Lia Rodrigues e o paulista Marcos Sobrinho fazem uso dessa possibilidade em suas diferentes técnicas, conferindo resultado cênico em seus trabalhos. Lia faz parte do time dos artistas interessados em construir uma dramaturgia do corpo. Contudo, seu trabalho também se volta para passos e referências mais reconhecíveis da dança. "É como se o início da modernidade, que reivindicava que as artes se voltassem para as suas próprias formas de existência, hoje estivesse misturada a uma arte que fala para fora", explica Helena.
Esses estilos fazem parte da chamada dança contemporânea. Assim como também faz parte dela todo tipo de trabalho corporal que se preocupe em discutir as formas de contaminação presentes no mundo. "Discute-se como ocorre o hibridismo entre dança e teatro. É um debate do nosso tempo, totalmente atual", conclui.
E, por ser tão vibrante e nova, os trabalhos que misturam as linguagens corporais estão afeitos a muita experimentação. Aliás, experimentar é umas das palavras-chaves da dança contemporânea.
O bailarino e coreógrafo Marcelo Bucoff faz parte do corpo de dança da conhecida e conceituada companhia de balé Cisne Negro, fundada pela não menos respeitada coreógrafa Hulda Bittencourt. Porém, seu suor nos últimos anos tem caído mesmo pela PULTS (Por Um Lugar Tão Sonhado) Teatro Coreográfico, uma companhia criada por Bucoff e pelo também bailarino e coreógrafo Jorge Garcia, que faz parte do corpo do Balé da Cidade de São Paulo. A PULTS conta com quatro integrantes. Além dos criadores, as bailarinas Isabel Ferreira e Larissa Nishimura. Como o nome já diz, o interesse da companhia está no hibridismo da dança e sua inter-relação com o teatro. "No nosso trabalho, os personagens e as coisas são mais abstratos", explica Marcelo. "Você não tem muito como saber de onde sai ou onde entra o teatro. Às vezes, ele entra em forma de som, às vezes em forma de cena, outras ele é mímico. Os bailarinos mudam de personagem em cena, mudando também de emoção." Jorge vai além e acredita que a dança contemporânea constitui, na verdade, em "unir tudo o que já foi feito". "É claro que há linguagens já consagradas, como o teatro/dança de Pina Bausch ou o trabalho de Martha Graham", pondera. "Mas acho que se trata de pegar tudo isso e misturar com a movimentação do dia-a-dia, as pessoas andando na rua e todo tipo de informação." O resultado dessa mistura é uma dança que ora é acelerada, ora aparece em câmera lenta, como num videoclipe, dando ainda aos bailarinos a possibilidade de recorrer às suas memórias emocionais para compor "personagens" que dançam em vez de falar.
Também afeita a essa alquimia artística, a coreógrafa e bailarina Georgia Lengos levou sua empatia por dança/teatro aos palcos pela primeira vez nas palavras, ou melhor, nas emoções de Clarice Lispector. Um espetáculo de dança que foi dirigido por um ator, Anderson do Lago Leite. "Escolhemos justamente um ator para contar com fortes elementos da dramaturgia", explica Georgia. "O espetáculo tinha algo de concepção total. Não pensávamos apenas na coreografia, pensávamos em tudo de maneira integrada."No espetáculo que está preparando agora, Descartável, Georgia pretende traçar um paralelo entre o que é descartável no dia-a-dia e o descarte de cartas de baralho. Para isso, a idéia inicial é que pessoas da platéia escolham cartas que lhe trarão imagens e sentimentos, a partir daí ela "construiria" a cena em seu próprio corpo.
Porém, a bailarina finaliza enfatizando que "não adianta pegar uma carta, por exemplo, e não ter claro no meu corpo o que aquilo significa para mim". Na verdade, é mais uma vez uma questão de sinceridade do artista com sua própria arte. Algo que está, e sempre esteve, acima de qualquer técnica ou tendência.
O Sesc e a dança - Festivais mostram a nova linguagem O Sesc de São Paulo tem se mostrado sintonizado com as vanguardas da arte, e a dança não ficou de fora dessa filosofia. A II Bienal Sesc de Dança, realizada pela unidade de Santos de 6 a 10 setembro, mais uma vez espalhou pela cidade litorânea espetáculos que levaram ao público as mais diversas experiências em dança. Foram onze trabalhos, alguns deles ainda em processo de criação - o que reforçou ainda o caráter experimental do projeto, com espetáculos em praças, museus, armazéns, no teatro da unidade e no cais do porto. O tema desta segunda mostra foi "Corpo Social: Somos Co-autores?". Apresentaram-se companhias e solistas de renome, entre eles Lia Rodrigues, Marcos Sobrinho, João Andreazzi, Vera Sala e a portuguesa Amélia Bentes, coreógrafa do espetáculo Fortunas...Talvez (foto). Também em setembro, de 6 a 9, a unidade Sesc São José do Rio Preto realizou o Festival Sesc Olhar a Dança, composto por espetáculos de dança nacionais e do exterior, uma mostra livre de coreografias, workshops, exposição e cursos técnicos de aperfeiçoamento. |