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A galáxia de Gutemberg ainda se move

Erivelto Busto Garcia

O filósofo Gaston Bachelard, em seu livro A Poética do Espaço, nos fala desses pequenos cantos, gavetas, armários, sótãos e porões que guardam, no aconchego do silêncio, da penumbra e do esquecimento, o pulsar de universos inteiros.

Apartados do mundo exterior por uma arquitetura sempre dissimulada, os "sebos" são da mesma natureza, buscando, para se abrigarem, os desvãos e reentrâncias da cidade, como se fosse de seu destino o ocultamento, envergonhados talvez da carga de tempo e poeira que acumulam nas prateleiras. Mesmo do lado de dentro, só se revelam devagar, obrigando os olhos a se acostumarem, aos poucos, à sua aparente falta de luz, e o espírito, à sua aparente desordem e despojamento. Ali, na verdade, a fabulosa Galáxia de Gutemberg ainda se move e brilha, em sua plenitude, como que desafiando a profecia de McLuhan que anunciava o fim da palavra escrita.

Todos sabemos que cada livro é povoado por histórias, tragédias, paixões, pela vida, enfim; cada um deles pacientemente montado letra a letra, tipo a tipo. E se um único livro traz em si essa carga poderosa de humanidade, pensar em centenas, milhares de livros juntos, reunidos numa livraria ou biblioteca, é pensar, talvez, na humanidade inteira.

Mas o que dizer, quando, além disso, esses livros já envelheceram, mudaram de dono muitas vezes e agora nos chegam marcados pelo tempo, cheios de enigmas e cicatrizes? Quem é que sabe quem foi, ou como era Oneida, no seu 15º aniversário, nesta dedicatória de sua madrinha, a assinatura elegantemente curva na tinta esmaecida? E Maria Rita, e o doutor Américo de Castro Lima, de caligrafia sinuosa e decidida - um médico, um advogado, talvez - sobre o papel amarelado? Quem são, quem foram e o que ia na alma daqueles que, antes de mim, antes de nós, folhearam estas páginas? Estão mortos ou arrastam-se ainda por aí, sobreviventes de si mesmos? Em que profundidade insondável do coração bateu o verso sublinhado de Fernando Pessoa, para que o antigo leitor tentasse perpetuar, pelo grifo, a emoção daquele instante?

Felizmente os livros ainda preservam uma certa aura de sagrado que faz com que não se ponha fogo neles com tanta freqüência, como gostariam alguns saudosos da Inquisição. Por isso, podem ir envelhecendo pelos cantos, nos fundos das gavetas, nos armários, e assim ir sobrepondo, à obra do autor e à sua história, outros autores e atores e outras histórias, até serem resgatados pelos sebos para recomeçarem um novo ciclo de vida. Certamente há quem procure essas livrarias em busca de bons preços, já que são todos livros de segunda mão. Outros vão atrás de raridades, pois, com alguma sorte, é possível encontrar preciosidades literárias ou científicas. Mas há também quem os procure apenas porque se sentem bem ali, em meio ao silêncio dos livros velhos, como se estes fossem amigos de infância, agora reencontrados, e com os quais buscassem recosturar a própria existência, num diálogo sempre surdo e comovido.

Afinal, o que é um livro "velho", não é mesmo? Será um livro velho a Divina Comédia, de Dante, com ilustrações em bico de pena de Gustave Doré? O Dom Quixote, de Cervantes? Madame Bovary, de Flaubert? Dom Casmurro, de Machado de Assis? A primeira edição primorosa e ilustrada com pranchas coloridas, quem sabe do Fausto, de Goethe, quem sabe de A Relíquia, do Eça? Ou, ainda, uma edição desconhecida das Folhas de Relva, com o retrato imponente de Walt Whitman, com seu ar camponês?
Nos sebos não há livros velhos, nem usados. Há livros vividos, já percorridos pelo olhar de muitos exploradores, mas sempre abertos a novas descobertas. Mesmo porque entrar num sebo é navegar pela Galáxia de Gutemberg em toda a sua singela beleza - apenas livros e mais livros, compondo constelações - à revelia do tempo. Num mundo em que tudo nos invade cheirando tinta e verniz, em que tudo cintila e transpira sua fugaz novidade, essas livrarias empoeiradas nos acenam com nada menos que um pouco de eternidade.

Erivelto Busto Garcia é coordenador geral da
Revista E do Sesc de São Paulo