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Qualidade de vida é possível?

A qualidade de vida depende das condições materiais e da relação que o indivíduo estabelece com seu meio social. Como conquistá-la é a questão que especialistas debatem neste Em Pauta - 500 anos

Edgar Morin
é sociólogo e filósofo
No último século, o mundo passou por várias e importantes transformações, representadas pelo formidável desenvolvimento não somente da informática, mas sobretudo das redes de comunicação. Ao mesmo tempo, vivemos a conjunção da ciência, da tecnologia, da economia, da biologia e da indústria, além de vermos nascer as possibilidades de manipulação genética, a possibilidade da modificação da condição humana, com o prolongamento da vida. Em contrapartida, a evolução desses aspectos correu paralela aos perigos que ameaçam o mundo, cada vez maiores. Hoje em dia, eles não estão mais restritos ao perigo nuclear ou à degradação da biosfera. Atualmente, o que nos ameaça é o descontrole da aliança entre biologia, técnica e ciência. O problema fundamental, no entanto, continua o mesmo de outros tempos: será que seremos capazes de civilizar a Terra?
Já temos as condições elementares de comunicação que permitiriam criar uma sociedade global. Da mesma maneira como há um país cujas províncias estão interligadas, podemos imaginar essa situação um pouco além: uma sociedade constituída pela união de diversas regiões do mundo. Mas o que falta para atingirmos esse ideal é o cimento. Em todas as sociedades, o cimento que as une é de ordem mitológica e psicológica. Nesse sentido, etimologicamente, a idéia de pátria vem das palavras mãe, "amor", e pai, "autoridade". Não temos nem o sentimento, nem a consciência de que a Terra é a nossa pátria. Assim, se de um lado existem todos os elementos para realizar uma sociedade humana, planetária; por outro lado, falta a consciência para formar tal comunidade. No entanto, pode ser que essa união global não tenha lugar porque as forças de destruição são mais fortes que as de união.
A fim de inverter essa relação, ou seja, para tornar as forças de união mais possantes, é preciso que defendamos nossas idéias. Não existe outro meio. É como se perguntássemos ao primeiro cristão como fazer para debelar o Império Romano. Durante três séculos, eles não sabiam a resposta.
Para mudar a situação, torna-se imperioso que a mudança de consciência se torne epidêmica. E a única coisa que podemos fazer é indicar a via a seguir. Para reformar o pensamento, para sermos capazes de resolver os problemas mundiais, é preciso dar todos os elementos para que ocorra essa mudança. Nosso dever é falar, escrever e disseminar essas idéias.
Atualmente, observo uma vanguarda de cidadania mundial formada por várias organizações não-governamentais. Passamos por um momento de cristalização desses movimentos de defesa de direitos. Um bom exemplo disso foi a Conferência de Seatle. O que houve naquela ocasião não foi uma ação antiglobalização, foi uma atitude que clamava por uma outra globalização, uma que respeite a qualidade de vida, a luta contra a hegemonia e as multinacionais que querem homogeneizar tudo, e contra a poluição industrial. Em termos gerais, talvez estejamos vivendo o começo de uma conscientização maior dos problemas que afligem o mundo, resta saber se ela irá progredir.

Raquel Rolnik
é urbanista, presidente do Instituto Polis
Como definir os conteúdos dessa expressão tão desgastada por políticos, agentes imobiliários, movimentos ambientalistas e meios de comunicação de massa? E o que é qualidade de vida em uma megacidade como São Paulo, que possui cidades dentro da cidade? De que cidade estamos falando? São dez milhões de habitantes vivendo em 1,5 mil quilômetros quadrados distribuídos entre os milhares e milhares de bairros, com diferentes condições de vida urbana, uns com os melhores atributos físicos da cidade e outros, os mais periféricos e distantes do centro, com falta de emprego e segurança pública, além de um patamar básico de urbanidade. Como definir a qualidade de vida urbana em uma São Paulo caracterizada por um quadro de profunda exclusão socioterritorial?
Em São Paulo, as desigualdades socioterritoriais e todos os problemas urbanos que desqualificam a vida na cidade foram construídos com políticas urbanas definidas a partir de um processo de tomada de decisões marcado pela exclusão da população trabalhadora e de menor renda da precária esfera pública existente. A este processo correspondeu a destinação de periferias distantes e desqualificadas para a população mais pobre, literalmente jogando-a para cima dos recursos ambientais mais importantes da cidade - as matas, os mananciais, as várzeas dos rios. Se hoje se padece de enchentes, erosões, falta de água e congestionamentos, não é à falta, mas à presença de planos e projetos que devemos creditar essas mazelas.
Nesse sentido, o processo de reconstrução da cidade e da qualidade de vida implica reconstruir os espaços políticos capazes de instaurar uma esfera pública includente, múltipla e diversificada, verdadeiramente democrática. As várias expressões concretas da qualidade de vida passam a ser delineadas nesses novos espaços políticos apontando sempre para o interesse público. Diante da crise urbanística verificada na cidade de São Paulo, devemos aproveitar a discussão sobre a qualidade de vida para consolidar a dimensão coletiva e plural da sociedade mobilizada em torno de uma política urbana que facilite e melhore efetivamente a vida cotidiana, as ruas e as casas de todos os grupos e indivíduos que habitam a cidade. Dessa maneira, o primeiro parâmetro para definir a qualidade de vida urbana na cidade de São Paulo é fundamentalmente político e passa por uma definição de urbanismo que alie beleza a justiça.
Em uma cidade com dimensões e quantidades comparáveis a países, não é concebível uma noção única da qualidade de vida. O mercado imobiliário residencial formal opera na cidade com uma noção limitada de qualidade de vida baseada na oferta comercial de alguns itens exclusivos incorporados aos empreendimentos como, por exemplo, sistemas de segurança, academias de ginástica, proximidade a shopping center etc. Os anúncios de lançamentos residenciais representam a qualidade de vida como lazer e consumo segregatório que contribui mais e mais para a erosão da esfera pública urbana. Porém, cabe aos profissionais da área de arquitetura e urbanismo não sucumbir a essa noção mesquinha de qualidade de vida, superando a noção privatista de espaço e cidade, retomando os ideais que informaram a própria constituição do exercício profissional no Brasil.

 

Lia Diskin
é co-fundadora da Associação Palas Athena
Da mesma forma que no mundo natural um ecossistema é tão mais rico quanto maior for a diversidade biológica que abriga, no mundo social a riqueza fica evidenciada pela pluralidade cultural que consegue legitimar-se na convivência.
A hegemonia de uma visão de mundo sobre outras percepções de realidade vem provocando a extinção de centenas de culturas, empobrecendo o repertório da criatividade humana como seu modo de ser e estar no mundo. Cada cultura aporta com sua arte, ciência, crenças e costumes um novo significado à trajetória magnífica - e às vezes assustadora - desta nossa espécie.
A homogeneidade de valores que caracteriza o isolamento cultural já não é possível nesta experiência planetária de comunicações que tece vínculos e conexões, encurtando distâncias e derrubando fronteiras cognitivas em busca de uma redemocratização das relações humanas que, até há pouco tempo, estavam normatizadas por padrões hierárquicos de dominação/submissão, perpetuados mediante o uso do poder e a apropriação arrogante da verdade.
Hoje, a qualidade de vida individual e coletiva está condicionada às oportunidades de conhecer e escolher um repertório de valores que nem sempre pertence à sociedade na qual está inserido. Diferentes modos de cozinhar um alimento, de abordar um problema e resolvê-lo, de exercer uma profissão e até de namorar despertam um potencial de criatividade que amplia o conhecimento de si próprio e das inúmeras formas de se relacionar com o mundo.
Durante os últimos vinte e oito anos, a Associação Palas Athena - por meio do seu Centro de Estudos Filosóficos e de suas publicações - vem contribuindo para alargar os horizontes do conhecimento, isto é, da diversidade de percepções da realidade construída pelas diferentes culturas e experiências espirituais e, igualmente, dos diferentes modos de se conhecer. O corpo, os sentimentos e a intuição são fontes de aprendizagem banidas da educação na cultura ocidental. Tidas como pouco confiáveis e imprevisíveis, mutilou-se a integridade do ser humano prestigiando determinadas qualidades - lógica, razão, ordem - em detrimento de outras menos passíveis de controle: imaginação, espontaneidade e emoção.
Comprometida com essa visão inclusiva de legitimar a multiculturalidade e o ser humano integral, a Associação Palas Athena vem desenvolvendo também um fecundo diálogo entre as diversas religiões, confirmando que os aportes de cada tradição enriquecem a percepção da grandiosidade da busca humana.
A qualidade de vida pessoal, institucional ou social depende em grande escala da capacidade de se relacionar com o outro (o diferente), o entorno e o planeta de maneira respeitosa e responsável, promovendo o legítimo direito de oportunidades para usufruir dos bens naturais e culturais que todas as comunidades humanas têm disponibilizado ao longo da nossa história.

 

Marcelo Coelho
é escritor e articulista da Folha de S. Paulo
Nas férias de julho, passei uma semana em Buenos Aires. Antes da viagem, uma amiga um pouco mal-humorada me perguntou: "Buenos Aires? O que você vai fazer em Buenos Aires?". De fato, o câmbio anda muito desfavorável para nós. Não dá para fazer compras. Exposições, museus? São Paulo anda melhor do que Buenos Aires em matéria de cultura. Não era difícil, entretanto, dar uma resposta à minha amiga mal-humorada. "Vou passear, só isso. Andar pelas ruas da cidade."
Não é uma atividade tão besta assim. No fundo, o que mais me encanta quando viajo não é esse ou aquele museu, essa ou aquela atividade turística. É, principalmente, curtir a vida urbana. Sentir-me capaz de me perder num bairro desconhecido, abrir-me ao acaso das descobertas arquitetônicas, observar os tipos que passam: viver como pedestre e como cidadão.
Acho que é isso o que mais faz falta para quem vive em São Paulo. Não há "vida urbana" no sentido a que acabo de me referir. Uso o carro o tempo todo. Isso não significa apenas agüentar o trânsito infernal e o desconforto ético dos pedintes e ambulantes, mas também dar uma orientação predeterminada, uma objetividade cega a todo deslocamento que eu tenha de fazer pela cidade. O acaso desaparece. Não vejo nada, exceto os sinais de tráfego e o carro à minha frente. Não me ocorre de passar diante de uma loja e descobrir alguma coisa para comprar. Saio para fazer alguma coisa específica, para cumprir uma tarefa, blindado a toda experiência nova, a qualquer pequena surpresa, a qualquer gratuidade que me ofereça o ambiente.
Não é só o problema da segurança que nos faz agir assim. A cidade é hostil ao pedestre de várias formas. Calçadas estreitas fazem com que carros e ônibus passem rente demais. Atravessar a rua não é coisa fácil. Há muitas ladeiras e poucas áreas verdes. Acima de tudo, a cidade é muito feia. Estou dizendo o óbvio. Mas há coisas feias que a gente nem percebe. Pelo que sei, em muitas cidades européias os fios de eletricidade são subterrâneos. Só os postes daqui, com todos os transformadores e renques de fios, já poluem o horizonte. De pichações, nem vou falar. Mas e as grades na frente de toda casa, de todo prédio? Imagine uma cidade, como São Paulo deve ter sido há trinta ou quarenta anos, de muros baixos, onde até um prédio modesto tivesse um jardinzinho na frente, acessível a cachorros e crianças.
Considerações desse tipo podem parecer exigência excessivamente delicada diante dos enormes problemas sociais da cidade. Esse mal-estar estético tem, contudo, conseqüências políticas. Relaciona-se à sensação generalizada de que o espaço público não está ao alcance dos cidadãos. Fortalece-se a idéia de que "nada vale a pena" porque isto aqui não tem conserto mesmo. O convívio democrático desaparece do cotidiano da classe média. Até as calçadas se privatizam com guardadores de carro e valet-services. O estado de abandono e de feiúra é reflexo de um modo de vida em que o interesse público e o bem comum não são prioridade de ninguém.
Outra amiga, entretanto, disse que faz questão de não usar carro em São Paulo. O que tem de fazer, faz a pé. Conta algumas experiências divertidas. Um mendigo se aproximou dela. Ela já ia dizer que não tinha trocado, quando viu que ele trazia uma faca na mão. O medo aumentou. Mas então ela reparou que na outra mão o mendigo tinha um abacaxi. E simplesmente ofereceu-lhe um pedaço, sem nada pedir.
Essa amiga diz que caminhar pela cidade tem dessas surpresas simpáticas. E garante que, afinal, é mais seguro do que andar de carro - quem tem carro é naturalmente visado por assaltantes e seqüestradores.
E talvez São Paulo seja um pouco como esse abacaxi, a ser descascado algum dia, para proveito de quem sobreviver até lá.

 

Mário Damineli
é sociólogo da assessoria técnica de planejamento do Sesc

Qualidade de vida é um desses temas que, de tão amplo, qualquer opinião emitida a respeito está correta: todas as concepções dão conta de parte da verdade, mas nenhuma é tão abrangente que dê conta do todo. Ficam à vontade aqueles que propõem um entendimento mais social do conceito, segundo o qual qualidade de vida é o acréscimo de vivências significativas depois que as necessidades básicas estiverem satisfeitas; e também aqueles que se atêm à prática das atividades físicas direcionadas para a saúde e o combate ao estresse; ou aqueles que privilegiam os índices de consumo de produtos e serviços; e ainda os que acentuam o grau de relação com o conhecimento e com o consumo de produtos e serviços culturais.
Fico também à vontade para tentar formular mais um enfoque desse conceito, também singular, subjetivo e incompleto, que, a partir de uma visão ambientalista de mundo, podemos construir um novo estilo de vida, em que vivências interiores significativas constituem-se fatores de satisfação e felicidade e, portanto, de qualidade de vida.
O paradigma ambientalista nos propõe um novo modelo de economia, mais sustentável, com menos agressão à natureza e menos desperdício; uma nova forma de ciência em que o conhecimento esteja comprometido com a melhoria de nosso destino sobre o mundo em todas as suas dimensões; uma nova forma de atuação política, que evite as guerras, combata a pobreza e nos garanta o direito de viver num meio ambiente saudável; uma nova ética e estética, em que o homem possa buscar seu próprio equilíbrio interior em harmonia com os outros seres vivos.
Comparações entre americanos da década de 1950 e de 1980 mostraram que os níveis de satisfação permanecem os mesmos, apesar do enorme crescimento da riqueza e de acesso a outros serviços; também comparações feitas entre países ricos e pobres mostraram que seus habitantes não diferem nos níveis de satisfação. Nenhum dos grandes sistemas simbólicos criados pelo homem - a arte, a filosofia, a religião e a ciência - privilegia o ter e o consumir como meios de se atingir a auto-realização.
Metas e objetivos gerados no sistema social e impostos de fora ao indivíduo pelo controle por meio de recompensas sociais se convertem em frustrações, quando não atingidos, e em novas necessidades, quando conquistados.
É possível o indivíduo melhorar a qualidade de sua vida e se tornar mais feliz, apesar de carências comparativas nas condições materiais de sua existência, buscando suas recompensas nos próprios conteúdos organizados de sua consciência. Para isso é preciso estar aberto a um acúmulo de experiências, desafios e aprendizagens que envolvem as relações do indivíduo consigo mesmo, o estabelecimento de compromissos com outras pessoas e com o sistema de objetos e de outros seres vivos que cercam seu espaço de vida cotidiano. Essas experiências, filtradas e administradas pela própria consciência, convertem-se em padrões significativos e significantes da vida cotidiana, seja ela constituída de prazeres ou desafios, de acontecimentos grandes ou diminutos. Nesse sentido, a qualidade de vida é a qualidade da vivência cotidiana porque constituída de relações simbolizadas.