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Documentário
Registro de liberdade
O jornalista Paulo Markun escreve sobre a experiência de dirigir o documentário Timor Leste: O Nascimento de uma Nação, produzido em parceria da STV - Rede Sesc/Senac de Televisão com a TV Cultura
Numa choupana de palha, um homem ensina as quatro operações matemáticas para 128 crianças. Não há livros, cadernos, carteiras ou mesmo paredes. Ernesto dos Santos, 34 anos, escreve um número na lousa e faz com que seus alunos - incluindo suas duas filhas - repitam várias vezes, numa língua que ele mal conhece, qual é o algarismo das centenas, das dezenas e da unidade.
Na pré-estréia do documentário produzido pela STV - Rede Sesc/Senac de Televisão e pela TV Cultura, vi o público se comover com essa e outras imagens registradas pela fotografia esperta do cinegrafista Edgar Luchetta. Mas constatei também que elas tem ainda mais força em minha memória, que normalmente apaga histórias, nomes, personagens e seus dramas, assim que termino um trabalho.
Nós encontramos Ernesto e seus alunos, inesperadamente, a cem quilômetros de Díli, a capital do país, durante uma viagem à linha imaginária que divide em dois essa ilha ao norte da Austrália. A reação foi automática: ao ver aquele bando de crianças brincando diante da choupana, estacionei o carro, já imaginando que aquilo funcionasse como uma escola improvisada. O que não podia prever era que estivessem ensinando as crianças em português.
O Timor Leste ainda era colônia de Portugal quando Ernesto nasceu. Em 1976, durante o processo de descolonização, depois de uma curta guerra civil, o país foi ocupado pelas tropas de Suharto, um general sanguinário e corrupto que se manteve no poder durante um quarto de século e cuja sombra continua a ameaçar a Indonésia como um todo. Por isso, embora a língua dominante entre os timorenses seja o tétum, Ernesto fala o bahasa indonésio e arranha o português que aprendeu no primário.
Em agosto do ano passado, ele trabalhava como funcionário público na capital quando o plebiscito organizado pela ONU selou o destino da ocupação indonésia: 78,5% dos timorenses, em sua maioria católicos, optaram pela independência, rejeitando a integração com o vizinho poderoso e muçulmano.
Para Ernesto e outros integrantes do Conselho Nacional da Resistência Timorense, o português funciona como cimento da reconstrução nacional, capaz de evitar que o Timor Leste adote o inglês dos australianos ou o bahasa dos indonésios.
O professor improvisado, que tropeça na gramática e sonha com um país independente, não foi o único personagem a passar por cima de meu bloqueio profissional. Cada vez que lembro de Brígida da Silva, outra mulher do povo que montou uma escola numa barraca e ergue o dedo como se fosse uma batuta, levando a garotada a cantar hinos patrióticos e ingênuos, me arrepio também, tenho de admitir.
Não fui o único a entregar os pontos. Toda a equipe se emocionou, diversas vezes, durante a semana que passamos no Timor Leste. Mais tarde, ao editar o material, a imagem de Khofi Anann, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), atordoado diante de crianças chorando, de um velho camponês que o abraçou como a um pai, nos garantiu consolo - diante daquela terra arrasada e de seu povo cheio de esperança, a maioria se comove. O drama do Timor não foi inventado pela mídia, não depende de close em olhos vermelhos ou das estúpidas perguntas de todos nós, jornalistas, perpetramos ao vivo e em cores, nos momentos de dor e sofrimento.
O fato de Xanana Gusmão, líder máximo dos timorenses, ser um poeta e ex-seminarista que fala baixinho e parece imune ao rancor, exacerba a sensação de espanto. Ele e outros dirigentes do Conselho Nacional da Resistência Timorense herdaram um país em frangalhos, onde ninguém morre de epidemias ou de fome, graças à solidariedade internacional, mas onde todos os prédios públicos, documentos oficiais e sinais de existência de um Estado moderno foram destruídas pelas milícias.
Os remanescentes desses grupos armados e insuflados pelos seguidores do general Suharto continuam dispostos a agir, no lado oeste da ilha, em território indonésio. Há pouco mataram três funcionários da ONU que tratavam dos refugiados com a mesma selvageria de setembro do ano passado, quando demoliram o país.
Talvez eu esteja mesmo ficando velho e frouxo. Mas como manter o cinismo e a firmeza diante das crianças esquálidas e sujas que abrem largos sorrisos diante dos estrangeiros e os saúdam, poliglotas, com um "Alô, mister" que fica em nossos ouvidos por muito tempo?