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Ficção Inédita
Boa noite, Senhorita
Marcos Santarrita
Eram umas nove horas da noite quando vi o automóvel, um Chevette branco não muito novo, parar junto ao meio-fio do ponto de ônibus e um sujeito moreno com um bigodão à Stalin, na janela do passageiro da frente, dizer para a única moça no grupo à espera:
- Boa noite, senhorita. Pra onde vai? Podemos lhe oferecer uma carona? - Ela não respondeu e ele insistiu, com um sorriso aliciante: - Que é que há, garota? Tem medo de mim? Garanto que não mordo.
Eu me sentava com dois caras no abrigo coberto no fundo da calçada, e dois outros ladeavam a moça, de pé no meio-fio, mas nenhum de nós pareceu tomar conhecimento do que se passava; com a desenfreada violência que campeava na região, cada um que cuidasse de si. Aquilo ali era Rudge Ramos, São Bernardo, no ABC paulista, e não seria eu, um pau-de-arara, quem iria me meter onde não fora chamado.
Não que eu fosse pau-de-arara mesmo; chegara há quase vinte anos, ainda no início da década de 1960, e já me assimilara, quase não tinha mais sequer o sotaque; mas nunca me recuperara das pichações que, nos primeiros dias, vira escritas nos muros da capital: "Mantenha a cidade limpa. Mate um nordestino por dia". Embora soubesse que era obra de vândalos, vagabundos, ignorantes a ponto de nem saberem que muitos deles próprios descendiam daqueles a quem consideravam inferiores e queriam matar, aquilo me causara um calafrio que se renovava a cada vez que as via. Só não voltara mesmo porque a vinda fora sem retorno; eu nada tinha, nem ninguém, para me receber de volta.
- Como é, garota? - o Stalin, que devia ter mais ou menos a minha idade, uns quarenta anos, continuou insistindo com a moça, que continuou fingindo não ouvi-lo. - Não precisa ter medo de mim, de nós. Eu e meu amigo aqui somos boa gente, não vamos lhe fazer nada que você não queira. Como é? Vamos lá.
Àquela hora ainda era grande o movimento de carros e pessoas pela avenida bastante iluminada - a luz que caía sobre nós, de mercúrio, vinha de um poste muito alto, o que dava a todos uma aparência meio escaveirada, com negras sombras embaixo das sobrancelhas e do nariz - e não havia senso de perigo iminente. Talvez por isso, um dos caras no banco a meu lado, um rapaz magro e meio mulato, de blusão de napa preta e pinta de operário, ergueu a cabeça e gritou para o bigodudo:
- Ó meu, tu não tá vendo que a dona não quer nada? Por que não se manda e deixa ela em paz?
A moça olhou-o, surpresa, e pareceu mais contrariada que agradecida, porque agora era certo que a coisa ia render; não era nada espetacular, apenas uma russinha magra e meio desenxabida para meu gosto, de calça e blusão jeans - empregada de escritório, ou talvez também operária. De sua janela, o bigodudo desviou deliberadamente o olhar para o rapaz, mediu-o bem, e disse num tom controlado:
- Quem chamou você na conversa? Conhece a moça? Isso é da sua conta?
O rapaz se levantou, como quem quer briga, e adiantou-se alguns passos, mas alguma coisa o fez parar antes de chegar à beira da calçada.
- Tu tá dando em cima da dona, ó meu - disse. - Não tá vendo que ela não quer? Isso aí é da conta de todo mundo, né não?
E voltou-se para os demais, em busca de aprovação, mas ninguém sequer o olhou; após uma leve e cautelosa mostra de interesse, haviam todos voltado à atitude inicial de que não era com eles. Eu, por mim, além de me sentir do mesmo jeito que os outros, não sabia para que lado pender. Em princípio, até então o cara do carro não fizera nada demais; estava apenas na paquera; e eu não me surpreenderia se acabasse ganhando a moça, que talvez só estivesse bancando a difícil. De qualquer forma, não era da minha conta.
A garota, coitada, olhava ansiosa na direção em que viria seu ônibus, parecendo doida para que chegasse logo, mas sabe como é, nessas horas, nada sai como a gente quer. Aliás, todos nós fazíamos a mesma coisa, mas não parava um único ônibus naquele ponto.
Após um breve silêncio, em que continuou a olhar firme o rapaz na calçada, o cara do carro voltou a falar, do mesmo jeito controlado:
- Escute aqui, rapaz. Você não tem nada a ver com isso, tem? Eu sou um homem, ela é uma mulher. Não há nada demais em que eu fale com ela. Como vou saber se ela topa, se não falar? Eu até reconheço que estou sendo um pouco insistente demais, mas repito que isso não é da sua conta. Não sou nenhum estuprador nem vou agarrar ninguém a força.
- Tu só tem é gogó, cara - disse o rapaz do blusão de napa, que se pusera a andar de um lado para outro, nervoso, na calçada. - Tu tá chateando a dona.
- E que é que você tem com isso? - perguntou o Stalin. - É namorado dela? Parente? Ao menos conhecido? Se é, diga, que eu prometo que vou me embora agora mesmo. Então, é?
- Tu só tem gogó, cara - repetiu o rapaz, falto de argumentos.
Agora eu decididamente achava que o bigodudo tinha razão; não estava procurando briga, só querendo um pouco de diversão. Mas não seria eu quem iria me meter. Já apanhara muito, literalmente, para não ter aprendido.
- Eu sei qual é a sua, cara - disse então o homem do carro. - Está querendo bancar o mocinho às nossas custas, não é? Nós somos os vilões, os bandidos, importunando uma jovem donzela, e você é o cavaleiro andante de armadura branca que vem correndo salvar a pobre vítima. Pra no fim abocanhar o prêmio e ficar com ela, não é? - Fez uma pausa, à espera. O rapaz parecia rodopiar, de tanto andar de um lado para outro na calçada. - Mas a história não é bem assim. Nós não somos bandidos, nem você é nenhum galã. E eu vou lhe dizer o que você vai fazer. Vai voltar e se sentar lá no seu banco, quietinho. O negócio é comigo e a moça. Vamos, volte para o seu banco.
Nós estávamos pasmos - pelo menos eu estava - primeiro com as palavras do cara, e depois com a prepotência da ordem; no mínimo, os dois eram cana. E mais pasmos ainda ficamos quando o rapaz, depois de outra rodopiada, veio recuando devagar e deixou-se cair no banco junto a mim, onde ficou quietinho como lhe fora ordenado. Então o bigodudo - parecia mesmo Stalin, e não só pelo bigode - falou mais uma vez à moça, com a mesma autoridade:
- Agora você - disse. - Não me respondeu. Se tivesse respondido, dito não, nós não estaríamos mais aqui. Vamos, responda: Quer ou não uma carona?
A garota olhava sempre na direção do seu ônibus, como se não fosse com ela, e não respondeu. O homem continuou a olhá-la fixo, por um tempo que a mim me pareceu longo e só fez aumentar a nossa apreensão, pois agora era visível que todos torcíamos para ela dizer alguma coisa. A única pessoa que não parecia nervosa era o rapaz a meu lado, que baixara a cabeça e se desligara, não humilhado, nem vencido, mas ausente; não sei por quê, tive a impressão que não girava bem da bola.
No expectante silêncio que se seguiu no ponto de ônibus, em que até o barulho do trânsito pareceu cessar, eu fixava os olhos na nuca da moça e fazia força para enviar-lhe mentalmente a mensagem: fale, fale logo, ande. E quando, não mais agüentando a tensão, já ia pedir a ela que respondesse, vi-a voltar a cabeça direto para o homem do carro e dizer-lhe, numa voz quase inaudível, mas à qual não faltava segurança, uma única palavra:
- Não.
Fiel à sua promessa, o Stalin fez um sinal para o motorista e partiram. A sensação que ficou na noite foi de um vazio fantasmagórico, como se nada daquilo houvesse acontecido. Logo, claro, chegaram todos os ônibus e o ponto se esvaziou. Eu, porém, não quis tomar o meu; deixei-o passar. Sentia-me aturdido, estranho, e saí andando para a praça ao lado da igreja, onde alguns botecos continuavam abertos. Precisava de uma cerveja, ou talvez de alguma coisa mais forte. Afinal, tinha a desculpa que me faltava, e aquela era mesmo a minha área.
A verdade é que eu próprio não passava de um fantasma. Chegara do Nordeste com veleidades de pintor, e durante muito tempo procurara estudar, me instruir, para ser um daqueles primitivos famosos e ricos que tanto invejava; lera muito, pintara muito, expusera regularmente na feira hippie de São Bernardo, chegara até a vender alguma coisa, mas nunca tivera a grande chance, e continuara sendo o que sempre fui: pintor de paredes. Meti-me na política sindical e virei comunista, mas não do Partido - este teria sido o meu maior erro, se não fosse consciente, pois eles promovem os camaradas, mas tratam os comunistas de fora pior que o inimigo. Enfim, peguei cadeia, apanhei, fui torturado, sem nenhuma cobertura. Com o tempo, acabei me desiludindo, e a desilusão, mais que o sucesso, custa muito caro.
Entrei no boteco de sempre, cuja espectral luz fluorescente era um refúgio contra os outros fantasmas da noite, encostei-me no balcão e pedi uma pinga, de costas para as mesas. O garçom amigo serviu uma dose caprichada, que virei de vez, e pedi outra. Quanto mais pensava na arrogância do cara do carro, mais sentia a humilhação do outro, um pobre coitado como eu; imaginava o que faria no lugar dele. Sentia renascer em mim a antiga revolta de classe, a solidariedade com os oprimidos, e já me imaginava heroicamente enfrentando o prepotente, agarrando-o pela gola da camisa e arrastando-o para fora da janela, quando ouvi a conversa às minhas costas.
- O mais estranho é que o cara foi se sentar mesmo e ficou lá quietinho, caladinho, como você mandou. Como foi que você fez isso?
Voltei-me devagar e, não havia dúvida, lá estava o Stalin do carro, mais parecido ainda com seu famoso sósia àquela branca luz de pesadelo, tomando uma cerveja com um rapaz bem jovem, que devia ser o chofer.
- Acho que foi a maneira de falar - ele disse. - É a voz da classe dominante, você sabe, a voz do dono. Eles captam logo.
- Mas logo você? Um comunista?
O bigodudo não respondeu, nem podia; olhava-me com um ar de espanto. Sem o perceber, eu me postara ostensivamente à sua frente, e minha aparência devia ser terrível, porque ele não teve nem ânimo de me perguntar o que eu queria. Meus ouvidos zumbiam, um assobio alucinante, e eu cerrava os punhos com força para não voar na garganta dele. O homem empalidecera e chegou a fazer menção de levantar-se, talvez para defender-se, mas eu, num último apelo ao juízo, simplesmente dei-lhe as costas e, sem pagar a cana, saí correndo às tontas pela porta do bar, de volta aos outros fantasmas da noite lá fora.
Marcos Santarrita é escritor, autor de
O que tinha que ser, entre outros