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A arte da gambiarra correndo nas veias

Isaac e Bruna participaram da construção do Random Gambièrre Machine<br>Foto: Danilo Cava/Sesc
Isaac e Bruna participaram da construção do Random Gambièrre Machine
Foto: Danilo Cava/Sesc

21 de dezembro de 2012. Mi$tici$mo$ ressuscitam culturas ancestrais para evocar a crença no fim do mundo. Contagem regressiva para o apocalipse da Terra agonizante. A dominação humana sobre a natureza e as máquinas chegarão enfim ao seu destino distópico? Quantos mundos cabem no mundo? Quantos inícios comportam um fim? (FACTA #1, p. 33)

O fim do mundo já acabou. Assim começa o primeiro número da revista de gambiologia Facta, que explica a ciência do Apocalipse através de arte, gambiarra, design sustentável e outras aplicações nada convencionais.

Em uma coleção de quatro edições, a revista Facta (nome Inspirado no ditado em latim “Facta non verba”, ou “ações, não palavras”) trata de temas relacionados à gambiologia. A ideia foi reunir parceiros de práticas criativas que não aparecem em galerias, e estes colaboraram com a revista cada um na sua área, mas todos no mesmo contexto: conteúdo nonsense.
Complementando a versão imprensa, o site também oferece outros conteúdos online exclusivos.

Mas o que afinal é gambiarra?

Fred Paulino, que forma o Coletivo Gambiologia com Lucas Mafra e Ganso, aponta que na formação da cultura brasileira nota-se a carência material e a dificuldade na aquisição de recursos. Aliado ao restrito acesso à educação o brasileiro acaba por criar seus improvisos, muitas vezes chamado de gambiarra. No entanto, o conceito extrapola o “bombril colocado na antena para melhorar o sinal da TV ou as alças das havaianas arrebentadas presas com clipes”, e passa pelos universos da tecnologia e artes plásticas. “Pensaremos de forma mais ampla a gambiologia que é substantivo comum e internacional: um inusitado e peculiar abecedário, ou framework...”, explica Fred Paulino.

Em entrevista para a EOnline Fred também define gambiologia como “a ciência da gambiarra, essa maravilhosa habilidade do brasileiro (e de qualquer ser humano) de adaptar-se conforme suas necessidades, e mais ainda, reinventar objetos ao seu redor, exercendo a criatividade espontaneamente". O grupo, de mesmo nome, é também formado a partir do encontro de três designers e artistas plásticos em 2008, em Belo Horizonte; com a proposta de levar a ideia de improvisação da gambiarra para a arte eletrônica, a cultura digital e o design de produtos, áreas em que o grupo trabalha. “Nesse sentido, a palavra Gambiologia também pode ser entendida como o neologismo que une gambiarra e tecnologia”.

Os gambiólogos

“Que atire o primeiro bit quem nunca dependeu da tecnologia e na ‘hora h’ ela falhou, ou não atendeu conforme a necessidade”, provoca Fernando Rabelo. Fred e Lucas conversaram com a Eonline sobre o trabalho e o mini-curso ministrado no Sesc São José dos Campos.

EOnline: Quem faz parte do Coletivo Gambiologia?
Fred e Lucas: Fred Paulino, sou formado em Ciência da Computação, pós graduado em Artes e atuo profissionalmente como designer gráfico. Lucas Mafra é designer de produto e hobbista “profissional" da eletrônica. Paulo Henrique Pessoa, o “Ganso”, é designer de produtos e ambientes e colecionador inveterado. Nós três somos grãos mestres gambiólogos.

EOnline: Como é a repercussão do trabalho de vocês no Brasil e no mundo?
Fred e Lucas: Tem sido muito positiva e surpreendentemente rápida, já que começamos o projeto somente após 2008, e de forma muito espontânea, sem nenhum planejamento. Desde então já ministramos mais de vinte oficinas e participamos de diversas exposições, em diversos lugares do Brasil e também no exterior. Em 2012 estivemos em San Jose, na Califórnia (EUA), para expor na Zero1 Biennial e em Albuquerque no Novo México, quando participamos do ISEA2012. Além disso, os projetos que envolvem outras pessoas, como a Gambiólogos e a Facta, são motivo de muita satisfação e amadurecimento do nosso trabalho.

EOnline: O que é a Facta? Como surgiu?
Fred e Lucas: Facta é o nome da nossa revista de Gambiologia. A ideia de desenvolver uma revista surgiu a partir do contato com outros artistas que possuem interesses parecidos com os nossos, principalmente após a experiência de encontro e compartilhamento proporcionada pela exposição “Gambiólogos”, que realizamos em BH em 2010. Enquanto na exposição convidamos artistas e designers que em geral trabalham em um mesmo circuito que o nosso, na revista a ideia é investigar como o conceito de gambiologia pode ampliar, dialogando com outras áreas do conhecimento e da criatividade. Para tanto, na Facta, temos também a participação de escritores, ilustradores, poetas, cientistas malucos, fotógrafos, etc., um número de colaboradores que somente nas duas primeiras edições já chega a uns 50. Teremos ao todo quatro edições no projeto, que podem ser acessadas também pelo site www.facta.art.br.

EOnline: Contem-nos um pouco sobre sobre o mini-curso no Sesc São José dos Campos e o painel construído ao final.
Fred e Lucas: Esta oficina foi uma das melhores que já realizamos. Foi a primeira vez que construímos um painel “Gambièrre Machine” no contexto de um workshop, já que os anteriores foram feitos por nós mesmos,  para serem expostos. O resultado nos deixou muito satisfeitos. Os alunos eram aplicados e incorporaram plenamente o espírito gambiólogico, que liberta a criatividade aprisionada pelos padrões impostos pela estética comercial tradicional ortodoxa (careta). E vocês, o que acharam? Estamos prontos para a próxima!

O mini-curso Técnicas e Processos em Gambiologia

De 10 a 14 de dezembro de 2013, Fred Paulino e Lucas Mafra realizaram um mini curso para, ao final, exibir as produções em um painel permanente no acervo do Sesc São José dos Campos, denominado “Random Gambièrre Machine”. Além de explicar sobre a ciência da Gambiologia, cada participante contribuiu para construir essa obra de arte que agora fica exposta no Espaço Internet Livre.

Um pouco de fita adesiva e cola quente

A EOnline acompanhou os encontros do mini-curso e registrou alguns momentos do pessoal.

Gente que faz (gambiarra)

Conversamos com Bruna Castro, 20 anos, e Isaac Ebner, 18, que fizeram parte deste projeto coletivo. As perguntas foram feitas dois após o término do curso. A conversa você pode conferir a seguir.

EOnline: O que era Gambiologia para você antes desse mini-curso?
Bruna: O termo na introdução ao curso estava descrito como "Ciência da Gambiarra", me interessei pela criatividade do nome e por envolver objetos pouco utilizados e eletrônica, porém não sabia com certeza o que era.
Isaac: Antes do curso, imaginei que Gambiologia teria algo com gambiarra, mas mesmo assim me parecia meio vago. Vi algumas imagens no caderninho mensal do Sesc e me pareceu interessante e decidi participar mesmo sem saber do que exatamente se tratava.

EOnline - E agora, ao final dele, como você define o termo?
Bruna: A Gambiologia não só retrata o modo como a maioria dos brasileiros estão acostumados a dar um "jeito" em algo que está aparentemente estragado, como dá a oportunidade de enxergar a beleza por trás de um objeto que para você, até então, não tinha valor algum. O mini-curso fez com que enxergássemos novas possibilidades. Nada está realmente estragado ou acabado, é só acrescentar uma nova função àquele objeto que está guardado no fundo do teu armário e nem você sabe o porquê dele ainda estar lá. Um porta-retrato pode virar uma luminária, um teclado de brinquedo pode ter variados tons como qualquer outro teclado e um espelho pode dar a impressão de um portal infinito e iluminado. Não é necessário ter um QI maior do que o de Einstein para conseguir tal feito, é só ser um bom brasileiro e ter a arte da gambiarra correndo nas veias.
Isaac: Depois do curso, entendi que gambiologia seria um estudo da gambiarra; a tecnologia low-tech e a total rejeição ao minimalismo de hoje em dia formam uma ideia bem interessante e chama atenção pela criatividade que só nos brasileiros temos. Percebi também que não se tratava somente da mistura de objetos sem critério nenhum, mas sim, criar objetos misturando ideias e tentando formar um projeto final mais interessante, e mesmo surpreendente, com objetos que antes já não ofereciam utilidade nenhuma.

EOline: Como foi a experiência dessa construção do painel, que fará parte do acervo do Sesc São José dos Campos, para vocês?
Bruna: Foi muito bom poder conhecer um pouco do que a nossa mente insana é capaz de fazer. Participar da construção do painel foi ainda melhor por ter nos dado a oportunidade de aprender a fazer o nosso próprio painel e de ter algo nosso exposto em um lugar onde a arte e a cultura têm espaço.
Isaac: Foi muito construtiva para mim, tive contato com um novo tipo de arte e uma nova forma de criar arte, junto com uma nova ideia do que é útil ou inútil. Aprendi também que tudo é possível de se criar com um pouco de fita adesiva e cola quente.