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Novas percepções com o Ateliê no Escuro
Comer pode revelar novas formas de perceber o mundo? Segundo Maria Lyra, do Ateliê no Escuro, que esteve no Sesc Belenzinho no dia 4/dez e no dia 6/dez, no Vila Mariana, com certeza!
A forma como nos alimentamos pressupõe o uso de diferentes sentidos. Entretanto, de vez em quando um deles se sobrepõe a todos os outros, levando o corpo a se esquecer do motivo de estarmos sentados diante de uma refeição.
Pode ser a visão que não está lá muito preocupada com o que levamos à boca, mas sim, com o horário, com os e-mails, com as redes sociais. Pode ser a audição, escutando todos os barulhos incômodos de um ambiente lotado.
Tudo isso é reflexo de como nos relacionamos com o nosso corpo, com os nossos sentidos. Parar e prestar atenção nisso é, além de interessante, o primeiro passo para novas percepções sobre o mundo - sensações e conhecimentos que estavam adormecidos em nós, mas que nunca deixaram de existir. Estar aberto ao novo, àquilo que não é dado de bate-pronto, tampouco confortável, pode ser recompensador.
Sobre tudo isso, a EOnline conversou com Maria Lyra, do Ateliê no Escuro e ela deu bons apontamentos sobre a importância da sensorialidade na nossa vida e na forma como nos relacionamos com o mundo. Confira os principais trechos!
EOnline : Comer é algo que, além de fisiologicamente indispensável, pode adquirir diferentes conotações. No Sesc Belenzinho, por exemplo, a chef Eleonora Soledade afirmou que comer é um ato político e que "a fome não é não pode ser só de substância" - de alguma forma, o trabalho do Ateliê no Escuro dialoga com essas premissas sobre comer? Vocês acreditam que "novas formas de perceber o mundo através da sensorialidade" pode revelar mais do que apenas uma experiência gastronômica diferente?
Maria Lyra: Sim, o trabalho está focado na sensorialidade em geral. O comer é uma forma de prazer, então, nesse sentido, é sim mais que subsistência: é uma das formas primordiais de prazer, através do tato, de comer com as mãos. Acho que se trata mais do como 'comer' do que somente do alimento. Pensamos em estímulos pra cada um dos sentidos, música, poesia, uma massinha para o tato. A ideia é provocar as pessoas para algo que esteja além do ato de comer: como a gente pode perceber as pessoas e o mundo a nossa volta de outra forma? A gente esquece de detalhes importantes no dia a dia, numa agitação hiperestimulada, mas os sentidos estão todos ali, podendo servir a uma experiência sensorial diferente se nos permitirmos.
EOnline: Quanto tempo tem o trabalho de vocês? Quais foram as mudanças que ocorreram até a ideia chegar no formato apresentado no Sesc Belenzinho? Vocês poderiam falar um pouco de como a formação e o repertório pessoal de cada uma contribuiu para o formato final da experiência?
M.L.: Trabalhamos com esta ideia há seis anos. O primeiro jantar foi feito em casa, para amigos, apenas por farra e acabamos ficando encantadas com a recepção das pessoas. Soma-se a isso a nossa formação: somos psicólogas e a percepção de quão pouco a gente explorava a sensorialidade e de como o tema poderia ir além de uma experiência gastrônomica apenas, para tratar de questões existenciais. A construção de novas percepções do mundo e de si, é algo que serve de premissa para o trabalho do ateliê. De outros lugares, podemos destacar o contato com o trabalho da Lygia Clark, e a forma como a sensorialidade e corpo vão assumindo um papel central na sua obra fez parte das nossas referências para o Ateliê.
EOnline: A experiência que o jantar do Ateliê no Escuro proporciona pressupõe diferentes abordagens para a degustação, na qual o paladar se alinha com o tato, o olfato e a audição em pé de igualdade. Como funciona o processo criativo de vocês para cada jantar? Parte-se de alguma premissa básica para a experiência? Existem diferenças entre um jantar e outro, além da quantidade de pessoas a serem servidas?
M.L.: Os jantares, mais ou menos, tem um roteiro pronto. O que vai mudando são algumas texturas e estímulos distintos que descobrimos à medida que desenvolvemos o trabalho. A premissa básica para os jantares está no acolhimento das pessoas: trata-se de um momento no qual tiramos as pessoas da zona de conforto, do automático que rege o cotidiano e, por isso é necessário que elas encontrem um ambiente propício para se entregar à experiência. Procuramos um equilíbrio entre o desconforto do desconhecido e o prazer que se tem na refeição.
EOnline: Dentro da proposta do Ateliê no Escuro existe uma preocupação em questionar a forma como as pessoas se alimentam hoje em dia? Cada vez com mais pressa, sem tanto tempo para aproveitar as texturas e as nuances das misturas das refeições? Ou a preocupação está noutra chave, na possibilidade de criar uma experiência diferente junto a um tema tão cotidiano como a alimentação?
M.L.: Eu queria frisar uma coisa que você perguntou ali em cima: estar mais perto da sua sensorialidade, do seus sentidos, da sua percepção, é um ato político, você assina o instrumento corporal. Tudo que leva a se abrir para o desconhecido, para um autoconhecimento, transforma. Questionamos, mas não de uma forma impositiva... Tem uma frase do Herman Hesse [escritor alemão], em Demian [romance publicado em 1917], que diz o seguinte: "nada posso lhe dar que já não exista em você mesmo"; o trabalho do Ateliê opera nesta chave. Existem diversas formas e jeitos de viver o cotidiano, estar atento a isto te coloca em contato com o novo e o desconhecido de uma forma mais plena, despida de preconceitos, aberto para algo que nem você sabia que era possível desfrutar.
EOnline: Existe alguma experiência nesse tempo do Ateliê que vocês gostariam de compartilhar? Algo que tenho feito vocês repensarem alguns caminhos ou, pela outra via, que validou as escolhas que fizeram até chegar nesta forma? Alguma dica pequena para as pessoas testarem e ampliarem suas experiências sensoriais com os alimentos?
M.L.: Ah, tem várias! Desde aquelas pessoas que não comem abobrinha, se esquecem de avisar, comem no escuro e adoram, até aquelas mais cômicas, como um casal que, ao ser questionado se podíamos retirar os pratos, responderam "Tirar o sapato?! Sim, a gente quer tirar o sapato, sim!". Mas tem coisas bacanas, de pessoas que se lembram de coisas perdidas dentro do dia a dia, um casal que se lembra quão gostoso é o toque, o tato, "nossa, nem lembrava que a pele dela era tão gostosa". Pessoas que se emocionam e choram, pois a experiência é nova, mas se trata de aguçar, rememorar algo que sempre esteve ali. E isso é bem recompensador.