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Profetas contemporâneos

 


O fazer artístico se popularizou com a democratização do acesso à tecnologia e à informação. O mesmo aconteceu com a atividade crítica, graças às novas formas de veiculação propiciadas pela internet. Porém, a crítica não se restringe ao papel de orientar o consumo cultural, como muitos guias de entretenimento postulam. O ficcionista e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) Luiz Bras e o crítico de cinema, professor e jornalista Sérgio Alpendre analisam o assunto.


Crítica cultural hoje
por Luiz Bras


Há uma cena no filme A Vida de Brian, de 1979, que representa maravilhosamente bem o momento atual. O longa-metragem do grupo britânico Monty Python satiriza a vida de Jesus e a origem das religiões. A cena em questão mostra uma rua tumultuada de Jerusalém, em que vários profetas tentam conquistar a atenção dos passantes. Nessa rua multicultural do Oriente Médio as doutrinas mais excêntricas são gritadas, e uma não parece mais verdadeira do que as outras. Dois mil anos mais tarde, nossos artistas, escritores, filósofos e críticos culturais são os profetas contemporâneos, na vasta avenida da globalização.
O tsunami informacional está cada vez mais violento. Não precisamos esmiuçar planilhas e tabelas para verificar que a produção de bens culturais se intensificou muitíssimo nos últimos 20 anos. O barateamento dos custos de produção e a acelerada propagação da web inauguraram um capítulo na turbulenta história da literatura, do teatro, da música, das artes plásticas, do cinema etc. Também inauguraram um capítulo na igualmente turbulenta história da crítica cultural.
Alicerçado na alta tecnologia, o momento atual é o mais intenso da longa jornada das civilizações, em todas as áreas do conhecimento. A aceleração dos últimos 500 anos não tem respeitado nenhum limite de velocidade. Nunca se produziu e consumiu tantos livros, jornais, exposições e festivais de mil tipos. Simultaneamente, nunca se refletiu tanto sobre toda essa produção avassaladora. Hoje é impossível até mesmo para o especialista mais disciplinado acompanhar a infinidade de análises e debates que se multiplicam exponencialmente. Apenas no oceano on-line espalham-se incontáveis cardumes de textos e vídeos.
Outro fenômeno interessante, muito contemporâneo, está sendo a ascensão de gêneros antes considerados banais. Já faz tempo que a literatura, o teatro e o cinema perderam a primazia para os games, os quadrinhos e as séries de tevê, muito mais potentes e criativos. Esse deslocamento do vigor narrativo está pedindo até mesmo outro tipo de crítico. Alguém mais preparado, capaz de cruzar as fronteiras imprecisas que separam os gêneros artísticos. Alguém que, ao resenhar um romance, uma peça ou um longa-metragem, seja capaz de reconhecer neles os traços explícitos ou implícitos de outras artes.
O tsunami informacional veio reorganizar a rotina de nossos cinco sentidos. Diariamente milhões de produtos culturais são lançados e descartados no mundo todo. Mas onde há excesso, hipertrofia, exagero, há também cacofonia: inúmeras vozes e pouquíssima harmonia. É o que está acontecendo hoje. O bombardeio ininterrupto de estímulos estéticos transformou a paisagem cultural num labirinto sensorial. Poucos de nós conseguem andar sem catar cavaco ou bater a cabeça. Raríssimos conseguem se orientar sem um GPS teórico. No campo da crítica cultural não é diferente. Porque a simples expressão crítica cultural, no singular, já é falaciosa. Do mesmo modo que há muitas poéticas e linguagens antagônicas na música ou na pintura, não existe somente uma crítica cultural, íntegra e indivisível.
Em nossa sociedade da abundância e do desperdício, até mesmo os bens culturais são mal distribuídos. Mas é certo que a democratização tecnológica da cultura, mesmo imperfeita, permite que uma massa absurda de cidadãos tome contato com um pouco de tudo: do item mais sofisticado ao mais vulgar. Do melhor Woody Allen ao pior José Mojica Marins, ou vice-versa. A circulação de arte e cultura é um vasto espetáculo pirotécnico. Se atualmente não está sendo tão fácil diferenciar a informação sofisticada da vulgar, se o erudito e o popular alimentam-se um do outro, renovando-se continuamente, esse tem sido há décadas um dos bem-vindos efeitos colaterais da democratização promovida pela tecnologia da comunicação.
Mas analisar e refletir criticamente sobre esse vasto espetáculo pirotécnico não está sendo tarefa simples. O excesso de diletantes e profissionais opinando nos jornais, na tevê, em blogs e portais, nas faculdades, em seminários e debates é análogo ao excesso de artistas, escritores, produtores e divulgadores em atividade frenética. No tsunami estão misturadas as muitas teorias e as muitas práticas: a cacofonia das teorias analíticas espelha-se, ruidosa, na cacofonia das práticas criativas.
Para uns, esse é o pior quadro possível. É a evidência inequívoca de que estamos mergulhados na mais pantanosa crise de valores. Para esses pessimistas, quando a esfera erudita e a popular igualam-se na escala de importância, quando as poéticas e as escolas artísticas antagônicas passam a conviver pacificamente, quando leitores e espectadores elegem-se críticos e passam a se expressar publicamente na web, isso é sinal de que a infecção já se espalhou no organismo. É sem dúvida septicemia.
Para os otimistas, a democratização dos vários níveis da cadeia produtiva dos bens culturais é a evidência inequívoca de que estamos mergulhados numa singularidade inédita na história das civilizações. Não se trata de uma crise, mas de um equilíbrio de forças. Tempos atrás, não mais do que duas dezenas de escritores, artistas e críticos dominavam, a cada geração, o mapa da cultura global. Hoje são centenas de milhares, talvez milhões. Antes, as poucas escolas críticas – formalismo, new criticism, sociológica, estruturalismo, multiculturalismo, pós-modernismo etc. – reuniam duas dúzias de pensadores cada uma. Hoje cada nova escola é um indivíduo, e cada indivíduo é sua escola particular de um homem só.
Confesso que pertenço ao bloco dos otimistas. Acredito que a dispersão e a multiplicação de possibilidades criativas e analíticas, apesar do calor e da cacofonia, trazem mais benefícios do que o autocontrole do sistema anterior, bastante austero e centralizador. Se não há mais condições para o surgimento de meia dúzia de indivíduos e poéticas geniais, isso não significa que estejamos atolados na mais absoluta mediocridade, como tem afirmado certa crítica apocalíptica. Significa apenas que a idolatria do sujeito extraordinário, esse fetichismo tão romântico, não é mais necessária nos dias atuais.
Para nós, otimistas incuráveis, a fragilidade da epistemologia positivista não representa obrigatoriamente uma crise medonha e insolúvel. É verdade que o conhecimento humano é condicionado pelos limites da linguagem. É também verdade que o discurso racionalista da crítica cultural não é tão objetivo e imparcial quanto pensávamos, um século e meio atrás. Esse discurso analítico, por mais científico que tente parecer, vem sempre incrustado de crenças e desejos. Porém a dissolução de um sofisma arraigado não deve ser considerada um presente maléfico: uma crise medonha e insolúvel, como estão dizendo. A demissão da velha crença no poder divino do discurso racionalista foi, sim, um importante serviço prestado à humanidade.
Precisamos valorizar a nova situação cultural que devagar vai se instaurando, em que os modelos hegemônicos, as balizas canônicas, as autoridades intocáveis e os mitos fundadores já não intimidam tanto. Uma nova situação cultural em que, na avenida-arena da comunicação, os sagrados profetas da criação artística e da crítica especializada precisam disputar espaço com outros videntes igualmente atrevidos: blogueiros, oficineiros, tietes, covers, iconoclastas, dublês, assistentes de palco etc. Se hoje não temos mais ficcionistas como Proust e Joyce; poetas como Pessoa e Drummond; artistas plásticos como Duchamp e Picasso; compositores como Stravinsky e Schoenberg; dramaturgos como Brecht e Beckett; cineastas como Eisenstein e Bergman, isso é sinal de que a sensibilidade contemporânea não está mais carecendo de gigantes onipotentes e centralizadores.
Às vésperas da bizarra civilização pós-humana, das próteses neurológicas e dos bebês geneticamente aperfeiçoados, a consciência crítica mais perspicaz começa a perceber que a noção de gênio artístico, preponderante nos últimos quinhentos anos, devagar vai sendo substituída pela pulverização democrática promovida principalmente pela rede mundial de computadores. Que uma nova crítica cultural está em gestação, por ora podemos apenas intuir.

Luiz Bras é ficcionista e doutor em Letras pela Universidade ¿de São Paulo (USP). Dos livros que publicou destacam-se ¿o romance Sozinho no Deserto Extremo (2012) e a coletânea de ¿contos Paraíso Líquido (2010). Coordena regularmente ¿oficinas de criação literária para autores em início de carreira

“Hoje é impossível até mesmo para o especialista ¿mais disciplinado acompanhar a infinidade de análises e ¿debates que se multiplicam exponencialmente”


Existe hoje uma crítica cultural?
por Sérgio Alpendre

Parafraseando Jonathan Franzen, autor do ensaio “A dor não nos matará”, devo anunciar aqui que, mesmo não sendo exatamente um escritor, farei o mesmo que os escritores fazem. Falarei do meu percurso como crítico, na esperança de que minha experiência tenha alguma ressonância no leitor. Pois minha experiência pode ser uma entre muitas, mas certamente carrega algo que é comum a todos que porventura trilham o caminho da crítica.
À pergunta do título, é necessário responder: sim, existe ainda uma crítica cultural, mas de uma maneira diferente. Pode parecer uma resposta óbvia, pelas mudanças que ocorreram com a popularização da internet, mudanças estas que implicam a duvidosa opção de alguns veículos impressos em considerar a internet uma rival, nunca uma aliada. Contudo, considerar tal diferença revela-se um tanto mais necessário se pensarmos na relação de cada veículo com seu leitor. Do mais popular ao mais especializado, do impresso ao eletrônico, estamos de certa forma escrevendo para o mesmo leitor ideal, que ora busca a informação mais corriqueira, ora deseja ler mais sobre um filme visto, um disco escutado, uma exposição acompanhada, e por aí vai.
O leitor ideal é aquele que entende a proposta de cada veículo, que aceita que a internet pode ser o espaço da urgência (e da contundência) e que o impresso pode ser o espaço para a densidade e o aprofundamento. Se existe tal leitor, é uma outra história. Na verdade, claro que existe, mas a meu ver é raro. Cada vez mais. Mas é a ele que devemos nos endereçar, caso tenhamos de nos endereçar a alguém (tem quem escreva para expurgar sentimentos, o que não é censurável). O leitor que gosta de ser paparicado não é bem um leitor, mas um consumidor. E o preguiçoso, obviamente, nem interessa. Por outro lado, o leitor elitista ignora opções que envolvem certo didatismo do crítico, um desejo de agregar uma gama bem variada de leitores, do mais erudito ao mais neófito. Esse leitor elitista geralmente se equivoca, pois compra falsa erudição travestida de exibicionismo e ignora explosões repletas de ideias originais.
É precisamente aí que desejo invocar minha experiência profissional para deixar alguns pontos mais elucidados, na medida em que se pode elucidá-los. Minha experiência está concentrada na crítica cinematográfica, talvez o braço mais ingrato e injustiçado da crítica cultural, uma vez que, como no futebol, quase todos os leitores se julgam entendedores do assunto e rejeitam a crítica se nela não encontram o eco de suas impressões. Bem, é dentro desse segmento ingrato que resolvi me estabelecer. Pensar cinema, seja para um público mais amplo, seja para um público já iniciado, é uma paixão da qual não posso abdicar. É como uma doença que contraí para a vida toda.
Quando comecei, na revista eletrônica Contracampo em 2000, falava-se, como ainda hoje, em crise da crítica na grande imprensa. Publicações de internet, por sua vez, ou repetiam os mesmos procedimentos dos veículos impressos, optando por uma desvalorização da leitura mais aprofundada em favor da informação, ou optavam pela densidade nas críticas e questionamentos e ficavam em guetos, quase que unicamente pregando para convertidos.
Em novembro de 2005, fundei a revista Paisà, publicação bimestral impressa que pretendia entregar o mesmo que a Contracampo, mas para um público maior, correndo o risco de se tornar menos densa pela limitação do espaço, mas contando com a possibilidade de atrair mais leitores para a crítica de cinema, mostrar para esse público que crítica era algo mais do que contar a história de um filme. Se era utópico eu não sei. O fato é que a Paisà nunca conseguiu sair do mesmo gueto em que se encontrava as revistas do estilo do Contracampo, apesar de ter o duvidoso requinte de suas páginas serem impressas, terem cheiro e diagramação característicos. Precisava de um incentivo financeiro, o que nunca aconteceu.
De certa forma, com a atual revista eletrônica Interlúdio, pretendo ainda escrever e editar críticas para um público mais amplo, o que implica comentar filmes que estreiam em circuito e cobrir festivais, terrenos perigosos desde sempre para a crítica de cinema, porque sujeitos ao imediatismo e ao texto rápido, com menos tempo para ser burilado. Por isso, concedo, minha aventura pode continuar sendo utópica, embora acredite que alguém deva segurar a bucha.
Escrever críticas é cada vez mais uma tarefa que poucos podem executar e que poucos levam a sério. O leitor médio, ou seja, a maior parte dos leitores de críticas de cinema, não quer na verdade ler críticas, mas resenhas informativas. Querem saber do que fala o filme, como é sua história, quais são os atores e se é um bom passatempo noturno ou um divertimento para um feriado. Esse leitor não busca a clareza, mas a condução, não quer confronto, quer sossego. Quer saber se vai ver um filme ou outro, se deve dedicar duas horas a uma exposição ou a um concerto, se deve comprar tal disco ou livro, enfim, quer saber o que fazer com seu dinheiro.
O leitor médio é, acima de tudo, mal-acostumado, pois tem o que quer dos veículos mais populares. Uma exposição, uma turnê e um filme são cobertos pela grande imprensa geralmente no dia em que estreiam. Essa lógica responde pelo fato inexorável de que o leitor deve ser informado das opções culturais que tem para o fim de semana. Quando o ideal seria o contrário. A crítica de um filme, concerto, exposição, e até mesmo de um livro, deveria ser lida somente após o leitor ter travado experiência com determinado produto cultural. Dessa forma, poderíamos nem falar em produto, mas em obra de arte. Poderíamos falar de um choque entre sensibilidades, a do leitor com a do crítico, assim como já existia outro choque, prévio, entre a sensibilidade do crítico e a do artista.
O leitor de hoje abre o jornal e vai ver um filme que levou cotação máxima de um crítico. Se, por acaso, não gostar do que viu, ele geralmente vai xingar o crítico, dizendo ainda que ele não entende nada de cinema. A crítica, nesse caso, passou a ser majoritariamente um espelho que deve refletir a opinião do leitor, nada muito diferente disso. É fácil perceber que isso é uma aberração, que vem se tornando cada vez mais frequente. Para constatar isso basta ler as cartas de leitores dos jornais ou, pior, os comentários em posts populares de blogs e sites. Se estou sendo alarmista ou exagerado (o que é proposital), é porque a percepção de que a coisa está indo para o brejo é clara, e o temor de que seja irreversível existe. Claro que existem exceções. São elas que se aproximam do leitor ideal.
Como contornar o problema? É difícil, e certamente trabalhoso, mas não impossível. Num primeiro momento, é necessário algum didatismo, para mostrar que uma crítica pode ser boa mesmo quando conflitante com a sensibilidade de quem a lê. Depois, é necessário um pouco menos de cautela da grande imprensa, sempre receosa de perder o leitor por não paparicá-lo. Por último, um maior rigor de análise dos críticos, para mostrar que não existe uma obra-prima sendo feita por semana, e que arte é uma maneira de criticar o mundo, de se postar diante de algo tendo um ponto de vista bem definido. Para mostrar que arte é coisa séria. A crítica é, em suma, uma atividade destinada a pessoas que não querem ser paparicadas.

Sérgio Alpendre é crítico de cinema, professor, pesquisador e jornalista. Colaborador da Folha de S.Paulo e editor da Revista Interlúdio. Coordenador do Núcleo de História e Crítica da Escola de Artes Inspiratorium. Ministra aulas de História do Cinema e Oficinas de Crítica por todo o Brasil.


“O leitor médio, ou seja, a maior parte dos leitores ¿de críticas de cinema, não quer na verdade ler críticas, ¿mas resenhas informativas”