Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Rota Solidária

Apoiado nos princípios da economia solidária, o turismo social firma-se como instrumento de desenvolvimento e valorização de culturas.

Viajar, conhecer novas culturas, observar, experimentar novos sabores.Por muito tempo, a promessa excluiu muitos trabalhadores, especialmente os de baixa renda, que não encontravam no turismo de massa uma oferta viável de lazer. Muito além de preços mais acessíveis, contudo, o turismo social envolve ações de integração social, com roteiros culturais que favorecem o aprendizado, valorizam o  o patrimônio local, resgatam a história e a compreensão da realidade atual. Ao mesmo tempo, a atividade reforça os vínculos com as sociedades locais, que encontram na atividade uma ferramenta para impulsionar a economia e o desenvolvimento humano.

De acordo com Marcelo Villela, professor do curso de Lazer e Turismo da escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, a aproximação entre turismo e a economia social solidária começou no Brasil em meados dos anos 90, como resposta à crise financeira da década anterior. Segundo o pesquisador, há diversos modelos, como o assistencialista, o autônomo e os mais complexos. “A economia solidária não deve ser confundida com o terceiro setor, uma vez que ela não substitui o Estado em suas obrigações, mas promove a emancipação do trabalhador enquanto sujeito.”

Um exemplo é a Cozinha Comunitária Hochelaga Maisonneuve, promovida por uma empresa sem fins lucrativos, sediada em Montreal, no Canadá. Um de seus projetos é oferecer formação profissional para pessoas em situação de risco, como refugiados e ex-dependentes químicos. “Eles chegam aqui depois de terem passado por muitas dificuldades. Nosso papel é ajudá-los a recuperar o amor próprio para que consigam voltar a trabalhar”, explica Nicole Bashonga, diretora da Cozinha Comunitária.

O treinamento na cozinha comunitária dura 26 semanas e inclui estágio no hotel mantido pela instituição. As turmas, de em média 40 pessoas, aprendem as atividades relacionadas à hotelaria e também à gastronomia. O programa acompanha os ex-alunos por dois anos após o término do curso e os ajuda na recolocação profissional.Enquanto estão em treinamento, recebem um salário mínimo e trabalham no Hotel Gîte CCHM, cuja diária custa entre R$ 90 e R$ 130. Os hóspedes, por sua vez, conhecem e valorizam o caráter social da empresa, que oferece o mesmo nível de serviço de outros Bed & Breakfasts, uma opção econômica de hospedagem que inclui acomodação para pernoite e café-da-manhã.

No Brasil, a Fundação do Museu do Homem Americano (Fumdham), instituição de pesquisa e desenvolvimento do Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, no Piauí, trabalha para integrar a população local à maior concentração de arte rupestre no mundo, de forma que a comunidade entenda a riqueza de seu patrimônio histórico. Nos últimos três anos, a fundação tem organizado visitas dos moradores ao museu.

Paralelamente, oferece cursos de profissionalização técnica em arqueologia, cursos de cerâmica artesanal  e, em parceria com a Petrobras, construiu cinco poços artesianos para os moradores, projeto que incluiu o mapeamento do lençol freático local.

“Nossos primeiros clientes são os nossos funcionários. Os primeiros turistas, dada a dificuldade de acesso da região, são os moradores locais. Ao trazermos as pessoas para o museu, estamos envolvendo a comunidade. É o primeiro passo rumo ao muito que falta ser feito, inclusive a formação de pessoas habilitadas a trabalhar com a operação turística”, afirma a conselheira da Fundham, Rosa Maria Trakalo Núñez.

O turismo social oferece oportunidades para que comunidades, muitas vezes isoladas, resgatem o orgulho de suas culturas e também consigam obter seu sustento, abrindo uma janela de oportunidades para as atuais e também para as próximas gerações. A atividade trouxe uma nova perspectiva para a comunidade quilombola de Ivaporunduva, localizada no município de Eldorado, a 267 km da cidade de São Paulo.

Desde 2001, os cerca de 400 habitantes do quilombo, que data do século XVI, situado às margens do Rio Iguape, no Vale do Ribeira, recebe turistas. A atividade turística e o artesanato complementam a produção orgânica de banana e a cultura de subsistência, composta da produção de arroz, mandioca, milho, feijão e verduras e legumes. “Nossos jovens vão estudar fora, mas voltam porque sabem que temos espaço para eles trabalharem”, atesta Benedito da Silva, líder comunitário do quilombo de Ivopurunduva.

Ali, além de conhecer a vida na roça, os visitantes se deparam com tradições ancestrais, como a construção de casas de pau-a-pique, atividade realizada juntamente com os turistas, e a produção da farinha de mandioca. Um estilo de vida que pouco mudou com o passar dos séculos.

Inclusão

Outro aspecto relevante para a atividade de turismo social é a inclusão dos públicos prioritários, como as famílias de baixa renda, os jovens, os idosos e pessoas com deficiências. Conforme lembra Sergio Rodriguez Abitia, que já presidiu a Organização Internacional do Turismo Social (OITS) Américas, todo mundo, em algum momento de sua vida já experimentou algum tipo de incapacidade, seja por ser criança, por estar gestante ou por ter sofrido algum acidente ou estar em recuperação de cirurgia. Para Rodriguez, é preciso encontrar soluções para que o turismo social também inclua opções para esses públicos.

Foi o que fez o jornalista Dadá Moreira, que fundou a ONG Aventura Especial, que oferece atividades de esportes de aventura para pessoas com deficiência em Socorro, na Serra da Mantiqueira, a cerca de 150 km da capital paulista. Portador de uma doença degenerativa, Moreira começou a apresentar os primeiros sintomas do mal há 15 anos. Apaixonado por esportes de aventura, como boia-cross (travessia de rios em botes infláveis), rapel, tirolesa, rafting e arvorismo, Moreira deparou-se com a falta de estrutura das empresas convencionais para atender ao público deficiente.

Segundo dados Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 24,6 milhões de pessoas, o que equivale a 14,5% da população brasileira, apresentam algum tipo de incapacidade ou deficiência. “O contato com a natureza auxilia na reabilitação física e psicológica dos deficientes”, afirma Dadá Moreira.

Graças à iniciativa da ONG, a cidade de Socorro foi reconhecida pelo Ministério do Turismo como referência no turismo para portadores de necessidades especiais. Antes de cada atividade é agendada uma reunião para a avaliação das necessidades de cada visitante. Para contemplar todos os tipos de restrição foram desenvolvidos equipamentos especiais, que permitem, por exemplo, que um tetraplégico possa descer o rio em um bote de borracha, graças a uma cadeirinha especial que oferece maior apoio para o tronco, mantendo-o na posição correta. No caso dos deficientes visuais, algumas atividades são feitas juntamente com monitores. Tudo para minimizar o risco sem impossibilitar a experiência do turismo de aventura.

Economia Solidária

Um dos pilares usados no desenvolvimento do turismo social é a economia solidária, que se caracteriza como um modo de produzir, comprar, vender e trocar sem que nenhum dos lados seja prejudicado. A tônica é portanto na sustentabilidade dos negócios, procurando garantir a longevidade da atividade, inclusive para as gerações futuras. Por definição, ela reverte a lógica capitalista ao se opor à exploração do trabalho e dos recursos naturais, considerando o ser humano na sua integralidade como sujeito e finalidade da atividade econômica.

Normalmente as atividades econômicas solidárias acontecem por meio de cooperativas ou associações, que de forma comunitária realizam a prestação de serviços ou produção de bens, num comércio justo. Para ser classificado como solidário, é necessário que o trabalho aconteça por meio dos esforços e objetivos coletivos; que os participantes dessa organização exercitem a autogestão;  que a viabilidade econômica envolva critérios de eficácia e efetividade, assim como aspectos culturais, ambientais e sociais; haja justa distribuição dos resultados, bem como a democratização das oportunidades que levam ao desenvolvimento de capacidades e da melhoria das condições de vida dos participantes.

Para Carlos Rodrigues Brandão, professor de Antropologia da Unicamp e da Universidade Federal de Uberlândia e fundador da casa de acolhida Rosa dos Ventos, são as experiências solidariamente interativas com os moradores locais que humanizam o visitante e proporcionam uma visão autêntica de um lugar e de seu povo. “O risco do turismo mercadológico é justamente o de transformar a experiência concreta numa distorção feita para agradar o turista”, critica.

Nesse sentido, a hospedagem que passa longe dos hotéis e busca nas casas de famílias locais uma experiência cultural mais  autêntica, permite que o visitante vivencie o modo de vida da população local, interagindo e promovendo transformações tanto no turista quanto em quem o recebe. Mais do que apenas gerar uma fonte alternativa de renda, a prática valoriza a cultura dessas comunidades.

Runa Tupari

O incremento da autoestima das mulheres da comunidade Runa Tupari, no Equador, confirma a definição, segundo Carlos Maldonado, fundador e diretor da Rede de Turismo Comunitário (RedTours)na América Latina. A entidade privilegia o trabalho com as mulheres indígenas e camponesas, que chefiam cerca de 20% das famílias pobres das áreas rurais latino americanas. Estima-se que 55% da população rural da região viva na pobreza.

O programa em Runa Tupari existe desde 2001, envolve 16 famílias e é chefiado por mulheres indígenas. Cada uma delas oferece ao menos um quarto, que acomoda em média três pessoas, em sua própria residência. Os visitantes se integram ao cotidiano das famílias locais. As refeições, com pratos tradicionais; o trabalho, na agricultura de subsistência; as lendas e costumes; e a visita aos locais sagrados fazem parte da vivência. Os pacotes, com diferentes formatos e durações, custam de US$ 60 a US$ 240.

De 2004 a 2007, o faturamento  anual de Runa Tupari saltou de US$ 3 mil para US$ 23 mil. Cerca de US$ 6 mil foram doados a projetos locais, como a conservação de lugares sagrados e sítios arqueológicos e também investidos no incremento de técnicas agrícolas. A comunidade gerencia e distribui os recursos e, recentemente, passou a atuar como operador turístico, avançando na cadeia de valor e capturando um percentual maior de recursos. “Essas comunidades indígenas e camponesas conseguiram implementar os objetivos de eficiência econômica aos de equidade social, identidade social e preservação de recursos naturais”, explica Maldonato.

 

Brasil

O Brasil também possui experiências bem-sucedidas de hospedagem social. Uma delas é a Fundação Casa Grande, que colocou Nova Olinda, um pequeno município no Vale do Cariri, no Ceará, com pouco mais de 12 mil habitantes, na rota turística solidária internacional. Tudo começou com a criação de um museu na casa que deu origem à cidade, onde ficam expostos artefatos pré-históricos da região. As crianças da cidade começaram a ocupar o espaço para brincar no quintal e, aos poucos, suas famílias foram se apoderando do local até que assumiram a gestão do museu.

Em pouco tempo, pessoas do país e também do exterior se interessaram em conhecer a iniciativa, que inclui uma série de projetos educacionais e culturais. Esse interesse, no entanto, esbarrava na falta de estrutura para acomodar os visitantes. A saída encontrada pelo fundador do museu, Francisco Alemberg, foi conversar com as mães das crianças ligadas ao museu, para que elas recebessem os visitantes. Foi então criada a Coopagran (Cooperativa Mista dos Pais e Amigos da Casa Grande), que hoje reúne 10 pousadas urbanas, com cerca de 40 leitos, e duas rurais, com dois quartos cada, todas administradas pelos moradores da cidade. Cada visitante paga em média R$ 60 pela hospedagem, que inclui pensão completa. As refeições são feitas com as famílias. São organizados ainda passeios e visitas guiadas. A cooperativa também gere a loja de artesanato, um restaurante e uma pequena loja de doces.

“O valor para o turista comunitário não é o dinheiro que ele deixa ali e sim a experiência que leva. Para os locais, a convivência com os turistas é também enriquecedora”, resume Alemberg. A inclusão do local entre os destinos de turismo de base comunitária do Ministério do Turismo fez ainda com que o município passasse a receber recursos para melhoria da sua infraestrutura.

Outro caso de sucesso é a Acolhida na Colônia, em que cerca de 180 agricultores de 30 municípios do Território das Encostas, a 120 km de Florianópolis, compartilham seu modo de vida com os turistas, que vivenciam a produção agrícola orgânica, seu beneficiamento, as gastronomias italiana e alemã típicas, assim como outras tradições culturais.

No final dos anos 90, os produtores da região, isolada pela geografia do terreno, pelas precárias condições de telefonia e comunicação, saúde e educação, passavam por uma crise que permeava não só a produção agrícola, mas também a própria comunidade. Foi quando os agricultores decidiram investir na produção orgânica, que logo despertou interesse de pessoas que queriam conhecer como esses alimentos eram produzidos.

Inspirados pela rede francesa de agroturismo Accueil Paysan, a experiência tornou-se um modelo de qualidade de vida e de alternativa de renda no meio rural. O projeto começou com os lavradores recebendo os turistas em suas próprias casas, com o uso das estruturas existentes, e foi evoluindo para a construção de chalés típicos conforme houve lucro. “A agricultura é a principal atividade. Por isso, na nossa visão, tudo gira em torno do estilo de vida do agricultor, e é o turista que se adapta a esse cotidiano, e não o contrário”, diz Daiana Bastezini, técnica da Associação Acolhida na Colônia.

Hoje, além dos produtos orgânicos e das pousadas, a associação oferece café da manhã colonial, circuitos de cicloturismo e um recente programa de turismo pedagógico com as escolas da Grande Florianópolis. Há, ainda, um projeto de energia renovável que pretende resgatar o uso de antigas técnicas, como a roda d’água. Ao olhar para o seu passado, a comunidade mantém-se em movimento, num ciclo virtuoso.

SESC SP atua na área desde 1948

As primeiras graduações em Turismo só surgiram no Brasil na década de 1970, mas desde 1948 o SESC-SP desenvolve seu pioneiro Programa de Turismo Social, sempre com a proposta de um olhar sensível e investigativo sobre a cidade, com viés educativo. Além disso, desde 1996 a instituição promove passeios que aliam o turismo a experiências culturais em São Paulo.

Na Internet

 

sescsp.org.br
quilombosdoribeira.org.br
fumdham.org.br
cuisinecollectivehm.com
hihostels.com
aventuraespecial.org.br
redturs.org
runatupari.com
fundacaocasagrande.org.br
acolhida.com.br