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Ciccillo, o grande mecenas paulistano

Francisco Matarazzo Sobrinho, o amigo da arte e dos artistas

CECÍLIA PRADA

Na primeira metade do século 20, dois momentos fundamentais foram registrados na história das artes plásticas de nosso país, na cidade de São Paulo: o da Semana de Arte Moderna de 1922 e, quase 30 anos depois, o da fundação do Museu de Arte Moderna, a que se seguiu a criação da Bienal de São Paulo. Em ambos, à efervescência dos muitos artistas e intelectuais sintonizados com os movimentos vanguardistas e preocupados em inserir o Brasil no quadro mundial da cultura somou-se a atitude de alguns mecenas que os financiaram, tornando seu sonho possível.

A Semana de Arte Moderna tornou-se um marco divisor na história artística e cultural do Brasil, pois representou mais do que um simples gesto de rebeldia de jovens artistas – ou mera "pândega de rapazes ricos e desocupados", como queriam alguns. Como diria 20 anos mais tarde um de seus organizadores, Mário de Andrade, o "espírito destrutivo" da Semana impusera a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa, a atualização da inteligência brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. E reconhecia Mário a importância do mecenato: "O que importava era poder realizar essa ideia, além de audaciosa, dispendiosíssima. E o fator verdadeiro da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado".

Nos anos 1920 e 30 escritores e pintores foram "adotados" pelas famílias tradicionais paulistanas – como os Prado, Freitas Valle e Penteado. Uma grande patronesse das artes foi dona Olívia Guedes Penteado – aristocrática dama que mantinha residências em Paris e em São Paulo. Foi ela a única, ou uma das únicas pessoas a abrir seus "salões" aos modernistas boicotados e perseguidos – até pela polícia, mais de uma vez. Mário de Andrade, que como "poeta maluco" perdera todas as alunas de piano do conservatório, foi socorrido por sua amiga, para poder sobreviver.

Esse tipo de mecenato de caráter pessoal e "beneficente" cederia lugar, no segundo grande momento de ruptura formal nas artes plásticas, a uma modalidade inteiramente diferente de patrocínio (ou antes, "investimento em artes") que representava a abertura da burguesia local à penetração e interação com o grande capitalismo internacional. Em vez de romanticamente socorrerem artistas necessitados, os empresários começaram a compreender que era preciso estimular a formação de uma consciência profissional e de um mercado de escoamento para a produção artística – como fizeram Assis Chateaubriand, criador do Museu de Arte de São Paulo (Masp), e principalmente Francisco Matarazzo Sobrinho (Ciccillo), responsável pelo surgimento do Museu de Arte Moderna (MAM) e da Bienal de São Paulo.

Aproveitando o momento do pós-guerra, quando o Brasil dispunha de divisas acumuladas para investimentos na economia e na cultura, e quando os países europeus em reconstrução vendiam sua produção artística a preços baixos, o empresário paraibano Assis Chateaubriand – dono da primeira grande rede de comunicações do país – criou o Masp em 1947, associando-se ao galerista italiano Pietro Maria Bardi, que dedicaria toda a sua vida à instituição. Mas, como diz Rosa Artigas no livro Bienal 50 Anos, "a formação do acervo do Masp não foi feita por meio de critérios críticos e técnicos de organização e sim pela oportunidade da hora, centralizada que foi na figura do ‘mecenas’ e de seu colaborador principal". Essa historiadora contrapõe o Masp ao MAM, criado em 1948 por Matarazzo, instituição que, ao contrário ,"contou desde o início com a participação de representantes de todas as áreas das artes e da cultura, que traçaram o perfil e a política de aquisição e de formação de seu acervo".

Berço de ouro

Francisco Antônio Paulo Matarazzo, filho de Angelo Andrea Matarazzo e de Maria Virginia Geraldi, nasceu em São Paulo em 20 de fevereiro de 1898 e faleceu na mesma cidade em 16 de abril de 1977. Para a família, para os amigos, e mais tarde para todos os seus conterrâneos, simples e afetuosamente, Ciccillo – homem afável, de saudosa memória para todos os que tiveram a ventura de conhecê-lo, e cuja passagem por este mundo foi marcada tanto pela agudeza de sua visão empresarial como pelos esforços de sintonia com as necessidades da comunidade. Uma vida assim sintetizada pelo jornalista Luiz Ernesto Machado Kawall por ocasião de sua morte, em matéria da "Folha de S. Paulo" (17/4/1977): "Ciccillo nasceu ligado e deitou raízes no tempo e no espaço. Não teve um filho, mas amou a criação, a natureza, o belo, o ideal do entendimento entre os povos pelo congraçamento da arte".

Era sobrinho do primeiro Francisco Matarazzo (1854-1937), italiano de Castellabate emigrado para o Brasil em 1881, aos 27 anos. E que cerca de 20 anos mais tarde já começaria a implantar um verdadeiro império industrial, representado por 365 fábricas espalhadas por todo o território brasileiro. Em 1934, o conglomerado de suas empresas (Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo – IRFM) tinha uma renda que só perdia, no Brasil, para o Produto Interno Bruto do estado de São Paulo, ultrapassando de longe Minas Gerais, o Distrito Federal e o Rio Grande do Sul. Em 1917, após vultosa contribuição à Itália durante a 1ª Guerra Mundial, o primeiro Francisco receberia do rei Vítor Emanuel o título de conde, logo mais estendido também a seus herdeiros. Ligando-se muito jovem ao trabalho da família e do tio, Ciccillo conseguiria em 1935 tornar-se independente com o desmembramento das várias empresas do grupo, cabendo-lhe a propriedade total da metalúrgica Matarazzo-Metalma. Em 1944, por averbação em cartório adotou em definitivo o nome comercial de Francisco Matarazzo Sobrinho.

Nascido em berço esplêndido, o menino Ciccillo recebeu educação esmerada, iniciada como a de outros garotos de seu tempo no prestigioso Instituto de Educação Caetano de Campos. Com 10 anos, porém, foi mandado pela família, com um preceptor, para estudar em Nápoles. Permaneceu na Europa até os 20 anos, tendo estudado engenharia na Universidade de Liège (Bélgica) – desse prolongado séjour europeu conservaria um sotaque típico, ítalo-francês, durante toda a vida, e um entranhado amor pela literatura e pelas artes. Na mocidade – como ele próprio confessava – preferia a arte acadêmica, e na verdade estava mais interessado "em uma reluzente Bugatti ou em uma Fiat modelo esportivo". Na maturidade realizou um esforço consciente de integração no meio intelectual, desde o início da década de 1940, e começou a arranjar meios de tornar realidade o desejo de muitos: fazer de São Paulo um centro de efervescência artística e cultural permanente.

Sonhos realizados

A cidade de São Paulo assistiu na década de 1940 ao surgimento de vários clubes e associações de caráter artístico em que os remanescentes de 1922, juntando-se aos novos artistas e intelectuais recrutados na recém-criada Faculdade de Filosofia de São Paulo, organizavam-se para a criação institucional de uma cultura que pudesse se situar perante o mundo. Com a 2ª Guerra Mundial em curso, os contatos tradicionais com a Europa tornavam-se difíceis. O Brasil assistia a um processo de substituição de referências culturais, orientando-se mais pelos moldes norte-americanos – aliás, para isso se empenhavam os governos do Brasil e dos Estados Unidos, através da chamada "Política da Boa Vizinhança", que teve como coordenador o milionário Nelson Rockefeller, dono da Standard Oil e presidente do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).

Grande articulador dessa aproximação foi um dos maiores intelectuais da época, o crítico de arte Sérgio Milliet, desde o tempo em que era professor da Escola de Sociologia e Política até tornar-se diretor da Biblioteca Municipal. E também o arquiteto Eduardo Kneese de Melo. Ligando-se a eles por laços de amizade e trabalhando em conjunto no projeto do Museu de Arte Moderna – e um pouco mais tarde no da Bienal –, Ciccillo tornou-se um conhecedor de arte e dedicou o resto de sua vida às atividades culturais. Em sua linguagem peculiar, diria o empresário, mais tarde, que fundara o museu porque necessitava fazer alguma coisa do gênero, era preciso "levantar o diabo nell’acqua morta".

Em 1947, Ciccillo casa-se em Roma com Yolanda Penteado, uma sobrinha de dona Olívia Guedes Penteado que herdara fortuna e tradição familiar de amparo às artes e se tornara uma "locomotiva" da alta sociedade brasileira – uma catalisadora da grande energia criadora de artistas e intelectuais. Quando o casal estava em Paris em lua-de-mel, Ciccillo adoeceu dos pulmões. Por recomendação médica, tiveram de passar uma temporada no sanatório de Schatzalp, em Davos (Suíça), que já passara à história da literatura como cenário do romance de Thomas Mann, A Montanha Mágica. Lá conheceram o museólogo alemão Karl Nierendorf, diretor do Museu Guggenheim, com quem mantiveram longas e instrutivas conversas. Ele acabou por lhes sugerir a montagem de uma exposição de arte abstrata para a abertura do MAM, que já estava sendo planejado pelo casal brasileiro.

Seu conselho frutificou no espírito de Ciccillo e Yolanda – a primeira mostra do museu, "Do Figurativismo ao Abstracionismo", aberta em março de 1949, marcaria época: apesar do nome, na realidade trazia somente trabalhos abstratos e condensava toda a polêmica em torno desse tipo de arte, que já corria há tempos.

Em 1948 Ciccillo fundou também, com seu amigo de infância Franco Zampari, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), e, em 1949, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. A partir dessa época, e até sua morte, a figura do empresário se faria presente também na criação da Cinemateca Brasileira, do Museu de Arte e Arqueologia da Universidade de São Paulo e do Balé do 4º Centenário.

Logo após a inauguração do MAM, Ciccillo propôs a realização de uma grande mostra periódica internacional, inspirada na Bienal de Veneza – ideia ousada, que enfrentou a resistência de alguns membros da diretoria. Percebendo que não poderia realizar esse sonho apenas convidando por correspondência os artistas estrangeiros, Ciccillo insistiu que Yolanda fosse pessoalmente à Europa para isso. Devemos a realização da 1ª Bienal, em 1951, a essa grande mulher, que tinha um notável poder de sedução e convicção. No dia da inauguração do evento, 20 de outubro, chovia torrencialmente, mas uma multidão de 5 mil convidados comprimia-se tanto na Avenida Paulista, diante do salão do Trianon, que o ministro das Relações Exteriores foi obrigado a fazer uma entrada sui generis no recinto da exposição: pela janela. O sucesso do evento foi tão grande que foram iniciados imediatamente os preparativos para a 2ª Bienal – a mais gloriosa de todas que já tivemos. Inaugurada no final de 1953, ela continuaria durante as comemorações do 4º Centenário da cidade, em 1954. Ciccillo presidia a comissão desses festejos e convocou Oscar Niemeyer e Burle Marx para construírem em tempo recorde edifícios e jardins em uma área de várzea, distante e sem nenhuma estrutura urbana até então – que se transformou no Parque do Ibirapuera. A 2ª Bienal trouxe para nosso público um presente régio: nada menos que o mais famoso quadro de Picasso, Guernica. Além do artista espanhol, contavam também com salas especiais Calder, Paul Klee e Mondrian. O escultor britânico Henry Moore compareceu pessoalmente e foi premiado.

Diz a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral: "A Bienal de São Paulo foi um evento que realmente marcou nossas vidas [...] dos críticos, artistas e historiadores da arte [...] Nós nos envolvemos nesse ambiente tão cheio de vibração que existia nos anos 1950. Mas isso não ficou apenas na 1ª Bienal. Esse clima perdurou nas bienais que vieram depois. Talvez isso exista até hoje".

Em 1962, as Bienais seriam desvinculadas do MAM e surgiria a Fundação Bienal de São Paulo. No ano seguinte, o acervo do MAM passaria totalmente, por decisão de Ciccillo Matarazzo, para um novo museu, o de Arte Contemporânea, cuja administração foi confiada à Universidade de São Paulo. Ele doou também a essa instituição 419 peças de sua coleção particular. Sua esposa, Yolanda, doou 19 obras. Uma grande parte dos sócios do MAM opuseram-se ao fechamento da instituição e decidiram mantê-la em funcionamento. Reestruturado a partir de 1968, o museu existe até hoje.

Ciccillo foi também político, tendo sido prefeito de Ubatuba de 1964 a 1969, eleito pelo Partido Social Progressista (PSP). Organizou importantes eventos no município, como a alfabetização em massa promovida segundo o Método Paulo Freire (em plena ditadura, e quando o educador pernambucano já estava banido e exilado) – tal como descrevemos na matéria "Ubatuba 65: Uma Revolução em Surdina" (PB 385, janeiro-fevereiro de 2008). Ele passou também por dois processos de cassação, ambos sem êxito.

Ciccillo vivo

Interpretado pelo ator Edson Celulari na minissérie da TV Globo "Um Só Coração", Ciccillo é personagem que está ainda a pedir uma biografia detalhada. O jornalista Luiz Ernesto Kawall seria a pessoa mais indicada para empreendê-la, pois realizou durante 30 anos extensa pesquisa para uma obra que Carlos Lacerda pretendia realizar e não conseguiu. Mas, dos numerosos artigos e entrevistas já publicados por Kawall, que desde a década de 1950 é figura de relevo no campo das artes e conviveu intimamente com Ciccillo, podemos extrair uma batelada de episódios interessantes e até anedóticos, relativos ao grande industrial paulistano.

O homem bom, afável e educado transparece em todos os depoimentos colhidos pelo jornalista. Como o de Heitor Garcia, diretor administrativo da Bienal desde sua fundação: "O seu Matarazzo é uma criatura única, não briga com ninguém, atende a todos indistintamente, do porteiro ao embaixador. Não humilha e não deixa ninguém à sua frente ser humilhado". Quando candidato a prefeito de Ubatuba, narra Kawall, apresentou-se a ele um certo Coutinho, seu rival na disputa eleitoral, dizendo que teria de retirar sua candidatura, por não ter mais dinheiro. Ciccillo não hesitou – assinou um generoso e polpudo cheque em favor do adversário. Resultado: nos dias seguintes, uma pichação se estendia pelos muros da cidade: "Fora o italiano! Fora Matarazzo!" Mas o "italiano" venceu fácil a eleição.

Depois de sua separação de Yolanda, o empresário viveu sozinho em um apartamento no 22º andar do Conjunto Nacional, cuidado por mais de 40 anos por uma fiel governanta. E com uma vida amorosa bastante movimentada, ao que parece – aliás, a separação de Yolanda foi motivada por essas infidelidades. Ciccillo mantinha desde os anos 1920 uma "companheira" secreta, uma bela espanhola ruiva que o acompanharia até a morte – em 1974 ele oficializaria o casamento em um cartório, deixando viúva ao morrer, três anos mais tarde, Balbina Martinez de Zayas Matarazzo. No seu universo cotidiano havia um círculo de sobrinhos diletos, de amigos dedicados. Sempre animado, brandia a inseparável bengala quando se zangava, mas era querido de todos. Refazia constantemente sua biblioteca e organizava imensos jantares com os amigos. Cultivava alguns hábitos característicos – vestido quase sempre de preto, com roupas largas, visitava pontualmente galerias e museus e aos domingos rezava na capelinha do Cemitério da Consolação. Levava sempre uma pesada mala de couro, onde ia jogando seus recortes de jornais – mania que levou até o último dia de vida.

Diz Kawall: "Pouco antes de morrer, falou-me de outros projetos não concretizados, a Superintendência do Litoral Norte, que projetara com Carlos Lacerda, o Instituto de Artes Latino-Americano, as bolsas de estudos para as áreas de artes e ciências humanas". A uma pergunta direta do amigo jornalista – "Acha que passará à história, Ciccillo?" –, respondeu: "Não, daqui a uns dez anos, depois que eu morrer [...] ninguém se lembrará de mim [...] No máximo sairão umas três linhas nalgum dicionário: ‘Ciccillo Matarazzo, criador das Bienais...’, três linhas, e só!"

Estas são algumas das "mais de três linhas" que a memória desse homem merece – e que certamente, dia mais dia menos, se estenderão por alguma alentada biografia de sua personalidade única, mostrando o papel fundamental que desempenhou na história da arte e da cultura, em âmbito nacional e internacional.

 

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