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A hora e a vez da revolução verde

Apesar das incertezas, o Brasil aposta no combustível alternativo

ANTONIO BIONDI, MARCEL GOMES, MAURICIO MONTEIRO FILHO e VERENA GLASS


Plantação de mamona: resultado nada bom
Foto: Verena Glass

O segmento do biodiesel, no Brasil, alterna momentos de euforia e pessimismo. Enquanto o país se prepara para ocupar posição de protagonismo na produção e no comércio mundial do combustível, lá fora os mercados ainda se mostram céticos quanto à possibilidade de essa ser uma alternativa viável ao petróleo.

Uma grande variedade de matérias-primas para essa finalidade está disponível no país. Experiências vêm sendo desenvolvidas com cultivos menores, como amendoim e girassol, e alguns deles, apesar do pequeno destaque, já atraem até investimentos estrangeiros, a exemplo do pinhão-manso e do dendê. Ao mesmo tempo, lavouras estabelecidas e de larga escala, como soja e algodão – de cujo caroço se extrai óleo para produzir biodiesel – também estão de olho nesse mercado.

Infraestrutura e potencial de crescimento o Brasil tem de sobra. A vanguarda brasileira só se confirmará, no entanto, se forem vencidas duas barreiras principais. A primeira será o convencimento dos mercados de que o biodiesel brasileiro é solução e não nova fonte de problemas, o que somente se dará com o combate a situações como devastação ambiental, concentração fundiária e desrespeito à legislação trabalhista, entre outras. A segunda é a integração efetiva dos pequenos produtores, por meio do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), lançado no fim de 2004.

Oportunidade pública e privada

O boom dos agrocombustíveis no Brasil pode ser explicado por uma ampla gama de projetos das áreas pública e privada. O governo elegeu o setor como uma de suas prioridades, inclusive para comércio exterior, e tem criado leis e usado as estatais para promovê-lo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pôs a pasta sob o braço, como ele mesmo diz, e tem viajado o mundo para "vender" o agrocombustível brasileiro. O setor privado, por sua vez, vem investindo em tecnologia nas várias pontas da cadeia de produção.

Um dos elementos da parceria entre interesses públicos e privados está na iniciativa do governo federal de estimular a participação de pequenos agricultores na cadeia de produção, uma característica nova se comparada ao predomínio de grandes grupos agroindustriais no segmento do etanol. A ideia contida no PNPB, através de seu Selo Combustível Social, é incentivar as usinas a comprar matéria-prima de agricultores familiares em troca da redução de alguns impostos.

O plano do governo era estimular o cultivo de oleaginosas como mamona, dendê, girassol, canola e outras, adequadas à agricultura familiar, mas o que se observa atualmente é um quadro de fracasso do projeto. A meta era vincular 200 mil famílias de pequenos agricultores ao PNPB, mas, passados quatro anos de seu lançamento, segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), apenas 36.746 famílias – dado referente a junho de 2008 – foram integradas.

O governo federal promete elevar esse número com a ajuda da Petrobras Biocombustível, que inaugurou em 2008 duas usinas de biodiesel, nos municípios de Candeias (BA) e Quixadá (CE). Uma terceira, localizada em Montes Claros (MG), está praticamente pronta. A capacidade total de produção das três unidades será de 170 milhões de litros por ano, e uma das prioridades será obter o fornecimento de 55 mil agricultores familiares que plantam nessas regiões.

Para garantir a regulação do mercado de biodiesel e evitar especulação de preços, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) criou um sistema de leilões em que a Petrobras ocupa a posição-chave de única compradora. A ANP anuncia um preço máximo para o biodiesel e vencem o leilão as usinas que apresentarem os menores valores para o metro cúbico. De posse do produto, a Petrobras em seguida vende o biodiesel para as 229 distribuidoras existentes nos país.

Quando o mercado do biodiesel se fortalecer no país, a expectativa da ANP é que a venda direta, da usina para a distribuidora, sem a intermediação da Petrobras, possa ser realizada. O governo já deu um passo nessa direção, em setembro do ano passado, ao permitir que as distribuidoras comprem biodiesel diretamente das usinas, desde que para formação de estoque – atualmente, a demanda anual de biodiesel no Brasil é estimada em 1,2 bilhão de litros. As distribuidoras continuam, porém, obrigadas a adquirir da Petrobras pelo menos a quantidade necessária para fazer a mistura compulsória de 3% ao diesel.

A lavoura dominante

Mais importante produto do campo brasileiro, a soja tem posição de destaque também no segmento de biodiesel. Enquanto a "democratização" na cadeia de produção não ocorre, esse grão mantém o predomínio. Estima-se que pelo menos 80% do biodiesel fabricado no país provenha da soja. A fatia restante do mercado é suprida basicamente por sebo bovino, e menos de 1% é produzido a partir de outros óleos vegetais.

A prevalência da soja tem uma série de explicações, entre elas a abundância – serão produzidos no país 60 milhões de toneladas na safra 2007/08 –, o que dá às usinas tranquilidade para cumprir suas entregas no prazo. Além disso, muitas empresas têm seus ganhos multiplicados ao atuar de maneira integrada, financiando os sojicultores, processando o grão e negociando farelo, óleo e biodiesel.

A expansão da área de soja no Brasil deve garantir, pelo menos no curto e médio prazos, o atendimento da demanda de óleo para a fabricação de biodiesel. Atualmente, há 61 usinas autorizadas pela ANP a produzir esse combustível, a maioria instalada em áreas de plantio ou onde haja infraestrutura de transporte para receber o grão. Além dessas empresas em funcionamento, a ANP está avaliando outros 50 projetos – 16 em Mato Grosso, sete em São Paulo, cinco no Paraná, quatro no Rio de Janeiro e no Mato Grosso do Sul, dois na Bahia, no Tocantins, no Ceará e no Rio Grande do Sul, e um em Rondônia, Rio Grande do Norte, Goiás, Sergipe, Maranhão e Santa Catarina. Se a maior parte sair do papel, a capacidade instalada de produção saltará dos atuais 2,5 bilhões de litros por ano para mais de 4 bilhões.

Projeto fracassado

Depois da soja, a mamona é, provavelmente, a cultura que atraiu mais investimentos por parte das usinas de biodiesel, muito em função dos incentivos fiscais prometidos às indústrias que comprassem a produção da agricultura familiar. No nordeste, onde o governo apostou na cultura como uma grande alternativa econômica para os pequenos produtores – devido a uma suposta super-resistência à seca e pouca exigência em relação à qualidade do solo –, a empresa Brasil Ecodiesel, a primeira e mais importante no ramo do biodiesel, celebrou inúmeros contratos com assentados e agricultores familiares para fornecimento de mamona. O resultado não foi nada bom: secas, infertilidade do solo, sementes de má qualidade e manejo inadequado, entre outros problemas, provocaram quebras de safra e de contratos, o que causou a desistência de muitos agricultores e a quase falência da empresa.

A mamona já foi uma cultura importante para o Brasil, e o país chegou a ser o maior produtor do mundo dessa oleaginosa e principal exportador de seu óleo. A partir de 1960, a indústria química garantiu um mercado ávido por esse óleo, mas, de acordo com dados da "Série Histórica do Plantio da Mamona" da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), após ter alcançado o topo do ranking entre os maiores produtores, o Brasil foi superado pela Índia e pela China na década de 1990, devido à falta de investimentos, que impediu a adoção de novas tecnologias. A situação melhorou, ainda que de maneira moderada, com o lançamento do PNPB, mas as colheitas ruins em 2008 prenunciam novas quedas.

O golpe mais duro contra a cultura, no entanto, foi desferido pela própria ANP em março de 2008, quando a agência declarou que o biodiesel puro de mamona não atende às suas especificações técnicas, em função da alta viscosidade do produto, que o torna inadequado para motores a diesel. Misturado a outros óleos, porém, o de mamona confere qualidade superior ao biodiesel. Isso deve preservar a cadeia produtiva da cultura, mas o governo reconhece que serão necessários pesados investimentos e mudanças no relacionamento entre empresas e agricultores para que a mamona tenha êxito como matéria-prima para biodiesel.

Produtivo mas insignificante

O dendê foi outra aposta do governo para suprir a demanda social do PNPB. Os compradores do produto oriundo da agricultura familiar no norte do país também foram agraciados com incentivos fiscais. Setores do governo e do Congresso Nacional têm afirmado que a cultura, bastante adaptada às características geoclimáticas da Amazônia, poderia ser utilizada na recuperação dos cerca de 70 milhões de hectares degradados no bioma, mas ambientalistas se opõem à ideia, devido ao temor dos impactos provocados pelo monocultivo.

O dendê é considerado uma das oleaginosas mais produtivas entre as culturas comerciais. Em âmbito mundial, seu óleo é o segundo mais consumido, ficando atrás apenas do proveniente de soja. De origem africana, o dendê foi introduzido no Brasil com a chegada dos escravos e hoje ocupa, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um total de pouco mais de 96 mil hectares.

Além da Amazônia – em especial o estado do Pará –, o litoral sul da Bahia também se destaca como grande produtor. Essa região, conhecida como Costa do Dendê, confere ao produto características bem diversas daquelas do cultivado na Amazônia, onde é plantado em escala agroindustrial. Os dendezais baianos se estendem por cerca de 45 mil hectares e acabaram se transformando em uma espécie quase "nativa" nas faixas de mata atlântica distantes até 20 quilômetros do litoral. Têm sido explorados há muito tempo pelos pequenos agricultores em sistema extrativista, e seu óleo, produzido de forma artesanal para consumo doméstico e venda no mercado local, se tornou um dos grandes símbolos da cultura e da culinária baianas.

Como matéria-prima para biodiesel, entretanto, o dendê ainda não tem importância comercial. Atualmente, duas indústrias – Agropalma, no Pará, e Biobrax, na Bahia – produzem combustível de dendê, mas, segundo a ANP, apenas a Agropalma teve participação nos últimos leilões de biodiesel. De acordo com a empresa, a produção se destina a suprir primeiramente a demanda da frota interna, e apenas o excedente é comercializado, uma vez que o preço do biodiesel não compensa investimentos maiores no produto. Atualmente, o valor pago pela tonelada do combustível está em torno de R$ 2,6 mil, enquanto a do óleo bruto tem sido vendida a R$ 3 mil em São Paulo, já incluídos 12% de ICMS.

Possibilidade no horizonte

Assim como a soja, o algodão é uma cultura dominada pelo grande agronegócio, e tem no óleo um produto secundário. Em vista da crescente demanda por agroenergia, porém, nos últimos anos as fábricas de biodiesel também vêm mostrando intenção de utilizá-lo. Atualmente, há pelo menos 24 usinas prontas ou em construção capazes de transformar o óleo de algodão em biodiesel.

A nova demanda já tem impulsionado os preços do caroço nos últimos anos. Segundo o economista Lucilio Alves, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo (Cepea/USP), a alta das cotações é explicada pela especulação, uma vez que, na prática, apenas uma ínfima quantidade do produto tem sido destinada à produção de biodiesel, o que se explica pelo pequeno volume de óleo contido no algodão.

O cenário de baixo uso do caroço de algodão pela indústria de biodiesel não é, entretanto, imutável. Decisões políticas sobre o aumento da mistura de biodiesel ao diesel podem ser tomadas a qualquer momento, alterando o cálculo sobre as vantagens de processamento de cada matéria-prima. Caso haja opção pelo caroço de algodão, provavelmente existirá volume para atender a novas demandas. O Ministério da Agricultura estima que o crescimento médio anual da cultura entre as safras 2007/08 e 2017/18 alcançará 4,41% ao ano, puxado, sobretudo, pelas exportações.

Uma roleta-russa

Alguns países, especialmente da Ásia e da África, apostam no pinhão-manso como matéria-prima para a produção de agrocombustíveis. No Brasil, essa ideia também conquistou adeptos, embora muitos especialistas recomendem cautela, ressaltando que o cultivo dessa planta exige mais pesquisas antes que se realizem investimentos de vulto.

O pinhão-manso, na verdade, tem sido nos últimos anos motivo de divergências entre a iniciativa privada e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Após intensa pressão sobre o governo federal e a criação da Associação Brasileira dos Produtores de Pinhão-Manso (ABPPM), em janeiro de 2008 o registro de espécie foi concedido à planta, liberando a comercialização de mudas e sementes.

Embora esse fato seja considerado uma vitória da ABPPM, trata-se na verdade de uma licença provisória, uma vez que, para o plantio e a comercialização em larga escala, é fundamental que se providencie também o registro do cultivar, além da normatização das variedades do pinhão-manso. Sem isso, a cultura sofre restrições ao crédito público, além de sua produção não poder usufruir do seguro destinado às lavouras já regularizadas.

Ainda assim, há produtores que investem no experimento de sementes e em novas técnicas agrícolas por sua conta e risco. Enquanto isso, ressaltando que sua função é garantir a segurança do produtor e do consumidor, os órgãos públicos trabalham aceleradamente, buscando apressar a concessão do registro de cultivar e providenciar a diferenciação. Segundo a Embrapa Agroenergia, esse processo pode levar até 7 anos, mas, como há outras instituições realizando pesquisas, além das atividades desenvolvidas pela iniciativa privada, o órgão estima que em aproximadamente 3 anos seja possível concluí-lo. Mesmo assim, a ABPPM teme que essa espera comprometa o protagonismo do país no setor.

Apesar das incertezas, grupos transnacionais têm buscado se inserir na cadeia produtiva da espécie, estabelecendo projetos em diversas regiões do país. É o caso da britânica D1-BP Fuel Crops, no interior paulista, da suíça Global Agricultural Resources (GAR), no Triângulo Mineiro, e da espanhola CIE Automotive, em Nova Mutum (MT) e Janaúba (MG), entre outras.

Em Janaúba, no norte de Minas Gerais, a CIE associou-se à NNE Minas Agro Florestal, formando a Biojan, para desenvolver um amplo projeto de estudo e melhoramento do pinhão-manso, sobretudo no campo genético. Ao mesmo tempo que realiza as pesquisas, que colocam o grupo – sobretudo o especialista Nagashi Tominaga – como referência nacional, a Biojan, assim como outros produtores, lucra com a venda de sementes e mudas.

Cerca de 30 usinas – em funcionamento, em construção ou em planejamento – ainda consideram a possibilidade de utilizar o pinhão-manso, de forma minoritária em relação a outras matérias-primas. Alguns desses empreendimentos já contam até mesmo com negociações de fornecimento e parceria firmadas com agricultores familiares e outros grupos de produtores. Com base no cenário atual, porém, a possibilidade de utilização do pinhão-manso em larga escala na indústria dos agrocombustíveis no Brasil continua distante.

Falta informação

As decepções verificadas em relação à mamona e as pendências técnicas e legais, no caso do pinhão-manso, reafirmam a importância de uma integração mais cuidadosa dos pequenos produtores, que leve em consideração o interesse de todas as partes envolvidas.

Do Rio Grande do Sul ao Pará, passando pelo vale do Ribeira (SP) e pelo norte de Minas Gerais, o pinhão-manso se apresenta realmente como uma cultura que pode gerar renda, empregos – e combustível. Os agricultores, contudo, têm optado pela prudência. A prática adotada tem sido a de testar o cultivo em pequenas parcelas das propriedades, ao mesmo tempo em que se aguardam informações mais consistentes sobre a planta – matéria, aliás, que anda escassa na relação entre os produtores e as empresas que os procuram para parcerias.

Em Miracatu, no vale do Ribeira, 30 produtores se dedicavam em julho de 2008 ao cultivo do pinhão-manso. O projeto, estimulado pela Casa de Agricultura do município, é voltado à venda de sementes – e não do óleo bruto – à Fertibom, para utilização ao longo de 2009 na usina da empresa, localizada em Catanduva (SP).

Albertino Marino da Silva destinou uma pequena porção de sua propriedade, cerca de meio hectare, ao plantio de 500 pés de pinhão-manso. A planta foi inserida na área de Silva no final de 2007, e, segundo o produtor, a princípio se adaptou bem à região. Porém, ao narrar, no inverno de 2008, a evolução da cultura na sua área, o agricultor demonstrava a falta de informação. "Antes, estava bonito, mas agora caíram todas as folhas. Fiquei desanimado", disse, ainda em dúvida se o fenômeno se relacionaria à estação do ano. A insegurança quanto a aspectos técnicos verificada em Miracatu, longe de ser exceção, é a tônica de boa parte das conversas com pequenos agricultores quando o assunto é pinhão-manso.

Apesar das dificuldades, os movimentos e entidades ligados ao pequeno agricultor acreditam que os agrocombustíveis podem colaborar para o produtor garantir sua autonomia, tanto no campo alimentar quanto no energético. Tal perspectiva é endossada, em formas e graus variados, pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), pela Via Campesina e pela Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil, ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), entre outros.

Para tais atores, é necessário que o governo federal – assim como o setor produtivo e a sociedade brasileira – aproveite o potencial do biodiesel associando-o ao manejo correto das lavouras, de forma integrada a culturas alimentares, de modo a evitar problemas ambientais ou de abastecimento. Oferecendo uma alternativa ao petróleo e colaborando para a geração de empregos e renda no campo, os agrocombustíveis poderiam, sim, ajudar a atenuar os efeitos das crises climática e financeira.

O lado obscuro

Embora haja cultivos com potencial para parcerias com os pequenos agricultores, a predominância da cultura extensiva da soja na produção de biodiesel tem desestimulado a participação deles no processo, colocando em dúvida a viabilidade das ousadas metas de inclusão da agricultura familiar no fornecimento de matéria-prima para agrocombustíveis.

No entanto, um grande problema relacionado à cultura da soja refere-se à sua expansão desenfreada, o que acaba se refletindo na imagem do biocombustível brasileiro. Se o país pretende fazer emplacar a propaganda de sua agroenergia no exterior, terá de buscar formas de mitigar os impactos negativos de sua produção – e uma das soluções passa, sem dúvida, pelo estímulo à agricultura familiar. Do contrário, o biodiesel entrará na lista de produtos brasileiros atacados de todas as formas pelo soerguimento das chamadas barreiras não-alfandegárias.

As acusações dizem respeito em especial a questões ambientais e trabalhistas. Segundo uma pesquisa do Greenpeace realizada em 2005, a soja tinha se tornado, naquele momento, a maior ameaça à Amazônia. O norte do estado de Mato Grosso e o sul do Pará ganham, a cada safra, novas áreas da cultura, que avançam no rastro de terras mais baratas ou griladas, infraestrutura de transporte e armazenagem em ampliação, além de forte atuação das transnacionais da soja, entre elas Cargill, Bunge e ADM, que financiam o agricultor e garantem a compra da produção.

Se, na Amazônia, se repetirem os exemplos do sudeste asiático, a monocultura do dendê será outro vetor de devastação. Os desmatamentos para esse plantio na Indonésia e na Malásia, por exemplo, têm atraído a atenção de várias organizações ambientalistas e da própria ONU. De acordo com um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), divulgado em 2007, desde 1990 foram derrubados 28 milhões de hectares de floresta na Indonésia em nome da conversão da terra em áreas de cultivo, e anualmente outros 300 mil hectares vão ao solo para a implantação do dendê. Na Malásia, segundo pesquisa da ONG Amigos da Terra Internacional, 86% de todo o desmatamento entre os anos de 1995 e 2000 é atribuído à expansão da cultura.

A perspectiva de que esse quadro se reproduza aqui não é nada distante: o governo do Amazonas estuda a cessão de 20 mil hectares de uma área em Tefé, região central do estado, à Agência de Desenvolvimento de Terras da Malásia, representada no Brasil pela empresa Braspalma Agroindustrial.

No campo do trabalho, muitas irregularidades estão associadas a culturas de uso potencial para biodiesel. Nas lavouras de algodão, por exemplo, a intensa mecanização muitas vezes contrasta com condições laborais precárias. Em agosto de 2008, cinco ocorrências na chamada "lista suja" – documento publicado pelo Ministério do Trabalho e Emprego que elenca proprietários de terra e empresas que utilizaram mão-de-obra escrava – referiam-se a propriedades em que havia algodão. A soja também figura constantemente nesse cadastro.

Outros impactos visíveis das lavouras que servem de matéria-prima para biocombustíveis são socioeconômicos. Novamente, os casos de soja e algodão são emblemáticos no que se refere a concentração fundiária, por exemplo.

Um recente trabalho da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) comparou o Censo Agropecuário de 1985 com o último disponível, de 1996, e constatou um processo de concentração de terras no Brasil, com destaque para a soja. Durante esse período, o número de propriedades rurais caiu de 5,8 milhões para 4,9 milhões, um recuo de 16,3%. No caso dos estabelecimentos que produziam soja, porém, o recuo foi maior, de 42%, com o total baixando de 420.204 para 242.998. Assim, o número de propriedades rurais envolvidas com o grão diminuiu de 7,2% para 5% do total. Paralelamente, caiu o número de pessoas que trabalham diretamente nesse cultivo, entre 1985 e 1996, de 1,6 milhão para 891 mil – movimento oposto à expansão da área plantada nesse período, de 1,1% ao ano.

O mesmo censo de 1996 mostra que o modelo de produção de algodão implantado no cerrado e que se tornou hegemônico no país é altamente concentrador. No caso de Mato Grosso, que então detinha apenas 5% da área brasileira de algodão e hoje é o maior produtor nacional, as propriedades entre 20 e 50 hectares com essa cultura ocupavam 11% da área do estado. A maioria (36%) estava concentrada em fazendas de 5 mil a 100 mil hectares. Ao longo dos anos seguintes, foi esse modelo de grandes propriedades que se expandiu pelo país nas regiões de cerrado, inclusive nas mais recentes áreas do sul do Maranhão e do Piauí.

O avanço de culturas voltadas à produção de biodiesel sobre terras indígenas, quilombolas e de populações tradicionais também é motivo de preocupação. Em pelo menos quatro estados – Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão e Paraná – há registros de cultura de soja em áreas reconhecidas como terras indígenas pelo governo brasileiro. Em Concórdia do Pará, lideranças negras acusam a empresa Biopalma de estar forçando a venda de lotes, inclusive em áreas que estão em processo de reconhecimento, para explorar dendê. 

 

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