Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Próxima parada: memória paulista

Iphan tenta preservar antigas instalações ferroviárias de valor cultural

ALBERTO MAWAKDIYE


Parada desativada em São José dos Campos
Foto: Divulgação

Estado em que se encontra o mais rico acervo de antigas estações ferroviárias do país, São Paulo poderá, finalmente, dar uma destinação um pouco mais nobre a centenas de paradas do interior que se encontram fechadas ou agonizam em degradante estado de ruína.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) já estendeu para São Paulo o programa de levantamento de bens ferroviários que está realizando desde o início do ano passado em outros estados brasileiros, com vistas a verificar o que tem importância cultural e merece ser preservado. Será um trabalho de fôlego, para dizer o mínimo. São Paulo, assim como vários outros estados brasileiros, não sabe dizer sequer de quantas estações e paradas de trem dispõe, quase todas desativadas depois do colapso do transporte ferroviário de passageiros entre os anos 1970 e 80.

Praticamente todos os 645 municípios paulistas são dotados de uma estação. Uma estância turística como Atibaia, por exemplo, com população de apenas 95 mil habitantes, tem três – duas delas na zona rural. Várias outras cidades, como Bauru e São José dos Campos, também têm "duplicatas".

"Por baixo, São Paulo deve ter umas 800 estações espalhadas pelo interior", calcula José Leme Galvão, gerente de Sítios Históricos do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan. "Pouquíssimas têm hoje uso operacional, já que elas não faziam parte do pacote da privatização das ferrovias da década de 1990 – só as vias férreas e o material rodante foram licitados. Algumas estão esquecidas a ponto de nem os moradores da própria cidade saberem direito onde ficam."

De acordo com Galvão, é certo que várias já tenham sido demolidas ou estejam em tão mau estado que podem desabar a qualquer momento. De fato, sabe-se que já desapareceram do mapa, por exemplo, estações como a de Pacaembu, no oeste do estado, de 1959, a de São Vicente, no litoral – que fora construída em 1937 num extravagante estilo art nouveau –, e a pequena estação de Luís Pinto, na região de Botucatu, erguida em 1913.

Já dentre as que estão sabidamente em petição de miséria encontram-se verdadeiras preciosidades da história ferroviária paulista, como a estação de Cordeirópolis, uma das mais antigas do estado (a edificação original é de 1876) e que apresenta a rara peculiaridade de ter sido erguida com dois andares. As belas estações de Cachoeira Paulista, São Manuel e Iperó também estão em estado terminal. A última, na região de Sorocaba, foi cruelmente depredada.

A antes importante estação de Araraquara – erguida em 1885, reconstruída em 1912 e que estava igualmente em situação calamitosa – deve escapar desse destino. Fazendo justiça ao fato de ter sido uma das maiores do estado nos tempos áureos da ferrovia, ela está sendo reformada pela prefeitura, que pretende ali instalar um museu ferroviário. "Estamos tocando o projeto em parceria com uma empresa privada", explica Teresa Telarolli, coordenadora de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural do município. As estações de Araras e Pederneiras também conseguiram evitar o desabamento iminente por meio de obras.

Caixas-d’água

A falta de conhecimento sobre o cenário não se limita às estações. O Iphan tampouco sabe qual a quantidade exata, no estado, de casas de chefes de estação, prédios administrativos e equipamentos operacionais e de apoio, como caixas-d’água, igualmente considerados patrimônio ferroviário. Eles também terão de ser arrolados em inventário antes de o Iphan começar o trabalho de avaliação cultural.

De acordo com os técnicos do órgão, essa ausência de dados precisos tem origem na história para lá de tumultuada das ferrovias brasileiras. De fato, desde que as estradas de ferro começaram a ser implantadas no país, na década de 1860, o que nunca faltou foram episódios de fusão, aquisição, divisão e encampação de empresas, uma tradição que não terminaria, diga-se de passagem, nem com a privatização e a transformação da modalidade em transporte praticamente exclusivo de cargas, já na nossa época.

Uma das ferrovias pioneiras do país, a São Paulo Railway (SPR), por exemplo, nasceu da ideia do barão de Mauá, o legendário empreendedor brasileiro, de implantar uma ligação ferroviária entre a cidade de São Paulo e o porto de Santos, através da íngreme serra do Mar, para facilitar a exportação do café produzido nas emergentes fazendas do interior.

A via – uma obra-prima da engenharia ferroviária – só seria concluída em 1867. Entretanto, falido, Mauá teve de passar o controle da ferrovia a seus parceiros financistas ingleses. Acusada de praticar monopólio, a SPR seria encampada pelo governo brasileiro em 1946 e dois anos depois transformada na Estrada de Ferro Santos-Jundiaí.

Essa empresa acabaria fundida com 17 outras ferrovias regionais em 1957, num conjunto batizado de Rede Ferroviária Federal (RFFSA), ao qual se juntaria, já na década de 1990, a Ferrovia Paulista (Fepasa), cuja existência já era fruto da estatização de velhas ferrovias privadas como Sorocabana, Companhia Paulista, Mogiana e Estrada de Ferro Araraquara.

O resultado de tudo isso foi uma incrível confusão no que diz respeito à documentação, havendo dezenas e dezenas de estações e edificações ferroviárias que nem escritura têm mais. Enfim, não há sequer provas materiais sobre a quem realmente pertencem.

"Um enorme galpão ferroviário em Bauru foi passado para os funcionários da Sorocabana nos anos 1990 para efeito de indenização", lembra Marly Rodrigues, historiógrafa do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) de São Paulo. "Mas os empregados não podem vender a edificação porque até hoje não se conseguiu achar a escritura, e o prédio continua lá, apodrecendo. Coisas assim são comuns nas ferrovias brasileiras."

Devolução

A ideia do Iphan é, depois de desfazer o caos documental e concluir o trabalho de varredura cultural, "devolver" as estações dotadas de algum valor arquitetônico ou culturalmente referencial para as próprias comunidades, seja via tombamento e preservação, seja via convênios com as prefeituras, que dariam a elas a destinação que melhor lhes aprouvesse (essa é a hipótese preferida do órgão). Em qualquer dos casos, será um alívio tanto para a União como para os municípios.

Para a União, porque o governo federal não sabe realmente o que fazer com essa herança – todos os bens ferroviários da RFFSA, liquidada em 1999, depois de encerrado o processo de privatização das linhas, foram transferidos como uma espécie de "presente de grego" para a Secretaria do Patrimônio da União ou para o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), quando se tratava de itens com finalidades operacionais.

Para os municípios, porque muitos, de fato, gostariam de fazer alguma coisa com as estações que, em centenas de casos, estão na origem da própria história da cidade e têm para elas valor social e afetivo inestimável. Além do mais, devolvidas à vida, elas deixariam de funcionar como um indutor de degradação do entorno, como comumente acontece. Com a documentação em ordem e com o mínimo apoio dos órgãos de preservação, esses objetivos (que, aliás, já foram atingidos por conta própria por várias prefeituras, a exemplo da de Araraquara) tornam-se mais factíveis.

A dificuldade, segundo admitem os técnicos do Iphan, será estabelecer – com critérios objetivos – que estações serão premiadas com convênios e tombamentos, e quais serão legadas ao esquecimento. Obviamente, jamais existirá verba suficiente para sustentar parcerias em número equivalente ao de estações e equipamentos afins.

O problema, que o Iphan já enfrenta em estados com menor tradição ferroviária, deve ser sentido de forma mais aguda em São Paulo, onde, por causa da opulência do negócio do café – que apoiado nos trilhos sustentou durante décadas a economia brasileira –, parte considerável das estações apresenta certo requinte e está gravada na memória afetiva das populações.

"Paulistas mais velhos ainda localizam a cidade natal como pertencente à região da Sorocabana, da Paulista ou da Mogiana", observa o pesquisador Ralph Mennucci Giesbrecht, membro da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF) e que mantém no site www.estacoesferroviarias.com.br um magnífico sumário histórico de centenas de estações brasileiras e das estradas de ferro às quais elas atendiam. "Em todas as linhas há estações sofisticadas e também aquelas apenas funcionais, assim como havia trens de primeira e de segunda classe. Mas, como todas elas têm um peso para quem cresceu ouvindo o apito do trem na plataforma, não vai ser fácil definir o que deve ou não ser mantido."

É provável que a pressão das prefeituras e das comunidades tenha um papel decisivo no programa do Iphan. De acordo com os técnicos do Condephaat, o órgão de preservação paulista, o número de pedidos oficiais de tombamento de estações por municípios do interior já ultrapassou os 80 – mas quase nenhum ainda pôde ser atendido justamente pela falta de um inventário abrangente como o que começou a ser feito pelo seu equivalente federal.

É possível também que estações já adaptadas para alguma outra utilização fiquem de fora do programa de socorro federal – abrindo espaço às que estão fechadas ou abandonadas – ou entrem no programa através de convênios mais ou menos light. Elas são em número até certo ponto surpreendente e ficam em geral nas regiões centrais das cidades. As instalações localizadas nas periferias ou nas zonas rurais (as chamadas estações "cata-café") compõem o grosso das que se encontram à beira do abismo.

Como regra, as estações reabertas foram transformadas em centros culturais ou comunitários, pequenos museus, estações turísticas ou repartições públicas das próprias cidades. A de Jaguariúna, por exemplo, virou estação para passeios turísticos de maria-fumaça. As de Rio Claro, Orlândia, Assis e Descalvado abrigam órgãos municipais, a de Elias Fausto é hoje câmara de vereadores e a de Novo Horizonte, um depósito da prefeitura. A belíssima estação de Guaratinguetá, construída pelos ingleses em 1877, foi inteiramente restaurada e agora é sede de um centro de capacitação de professores.

Já a estação de Campinas é, atualmente, concorrido centro cultural, assim como a "Estação da Cultura" de Batatais, enquanto a de Barra Bonita, importante centro turístico paulista, foi transformada no Museu Histórico Municipal Luiz Saffi. "Usamos o espaço, que foi construído em 1929 e reformado sem alterações no desenho original, para mostrar aos munícipes e aos turistas a história da cidade, que é realmente bastante rica", revela Janaína Nees Dias Cescato, diretora do museu.

Em São José dos Campos, a principal cidade do vale do Paraíba – que ainda conta com quatro estações do tempo da Central do Brasil –, os equipamentos, três dos quais estão fechados enquanto um outro virou estação operacional da concessionária MRS Logística, têm sido usados como ferramenta didática do Programa de Educação Patrimonial, voltado para as crianças do ensino fundamental.

"Nesse caso, falamos principalmente sobre a importância das estradas de ferro no processo de ocupação do vale do Paraíba", diz Vitor Chuster, diretor de Patrimônio Histórico da Fundação Cultural Cassiano Ricardo. Segundo ele, a prefeitura tem intenção de utilizar as estações também para outras finalidades, mas os projetos dependem de negociações com a União.

Há também usos mais extravagantes. A estação de Taquaritinga, que antigamente pertencia à Estrada de Ferro Araraquara, serve como revendedora de tratores, enquanto a de Desembargador Furtado, em Campinas, foi invadida e é hoje usada como local de culto evangélico.

Aliás, a utilização de antigas estações como moradia não é incomum em São Paulo – como, de resto, em todo o Brasil. Sabe-se de pelo menos uma dezena delas que viraram residências particulares por vias legais, dentre as quais as de Santa Veridiana (em Santa Cruz das Palmeiras), Pedro Taques (Praia Grande), Barão Geraldo (Campinas), Venerando (São José do Rio Pardo) e Analândia. Estas, certamente, não entrarão no programa do Iphan. 


Brasil tem quase 4,5 mil estações

O Brasil tem hoje meros 29,6 mil quilômetros de linhas férreas – em 1960, eram 35,2 mil. Trata-se de uma malha ponteada de estações e de paradas, além de imóveis de usos ferroviários diversos.

No tocante às estações, estima-se que existam no país – pelo menos nominalmente, já que várias foram derrubadas – quase 4,5 mil delas, construídas pelas mais diferentes companhias ferroviárias, das quais cerca de 2 mil concentradas nos estados de São Paulo e Minas Gerais.

Até agora, os técnicos do Iphan só conseguiram concluir o inventário jurídico-administrativo no estado de Goiás, que é atendido por apenas uma linha férrea, a Estrada de Ferro Goiás, de pouco mais de 300 quilômetros, que co-meça em Araguari, no sudoeste de Minas Gerais, e vai até Goiânia e Brasília, com um ramal para Anápolis. A ferrovia, em forma de "Y", passa por 68 localidades, entre estações e paradas.

"Vamos agora inventariar o que tem real valor cultural ou arquitetônico ao longo dessa ferrovia, levando em conta, o máximo possível, o significado das edificações para as comunidades", diz Paulo Henrique Sarsetti, chefe da Divisão Técnica da Superintendência Regional do Iphan em Goiás.

Durante esse levantamento estritamente cultural, R$ 300 milhões, já liberados pelo governo goiano, serão empregados na recuperação do patrimônio, que se encontra em estado de ruína. Outros recursos para intervenções deverão vir ao longo de 2009.

Além de São Paulo, o trabalho de "varredura jurídica" dos bens ferroviários já está encaminhado em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, que também cumpriram papel de protagonistas na história ferroviária brasileira. Os estados do sul – Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – e alguns do nordeste, como Ceará e Pernambuco, são outros que contam com acervos importantes.

Minas Gerais, que tem a mais extensa malha do país, com 5,5 mil quilômetros, e o maior número de estações – perto de 1,2 mil – é tido, não por acaso, como o estado ferroviário "por excelência" e onde o trabalho do Iphan talvez mais esteja sob os holofotes – como se sabe, mineiro adora trem.

O estado, no entanto, está longe de ter a malha mais "rica". Minas Gerais era atendido principalmente pela Central do Brasil, companhia estatal que sempre foi deficitária. No trajeto Minas-Rio de Janeiro, a Central levava como carga basicamente minério de ferro.

Certamente por isso, a empresa não sentiu tanta necessidade de requinte como suas congêneres paulistas. Embora estimadas pelas populações, as estações mineiras destacam-se, em sua maioria, antes pela singeleza.


Santa Veridiana virou casa de campo

Dentre as várias estações ferroviárias paulistas que foram transformadas em residências particulares, a de história mais curiosa é, sem dúvida, a de Santa Veridiana, que fica na zona rural de Santa Cruz das Palmeiras. Construída em 1886, é considerada pelo especialista Ralph Mennucci Giesbrecht a mais lendária das estações da Companhia Paulista. Ela se localizava dentro da fazenda de mesmo nome, pertencente ao poderoso conselheiro Antônio Prado, que foi ministro de estado e prefeito de São Paulo entre 1899 e 1911.

Maior produtora de café na segunda metade do século 19 e tida como fazenda-modelo, Santa Veridiana – homenagem à mãe de Antônio Prado, dona Veridiana, hoje também o nome de uma rua paulistana –, chegou a ser visitada por soberanos europeus e pelo escritor português Eça de Queirós. Em torno da estação – usada tanto para o transporte de café como de passageiros –, foi construída uma verdadeira vila ferroviária, com caixas-d’água, depósitos de locomotivas e vagões, casario e equipamentos diversos.

Desativada pela Companhia Paulista em 1968, ela seria, duas décadas mais tarde, comprada da Fepasa por uma ala da família do conselheiro Antônio Prado (a fazenda com o tempo foi sendo dividida entre os descendentes) e transformada em casa de campo. "Na verdade, a estação foi um presente pelos meus 20 anos de casamento", lembra a proprietária Maria Odenita Buso Corrêa, que a transformou em residência praticamente sem descaracterizá-la. O acesso ao interior da casa, por exemplo, é feito através da plataforma de embarque.

Vários prédios e equipamentos anexos também foram mantidos, como a caixa-d’água e a casa do encarregado da estação. Os trilhos já tinham sido removidos pela Companhia Paulista. Conhecer essa exótica casa-estação, porém, não é tarefa simples. A família de Maria Odenita não a mantém aberta à visitação pública, e muros altos impedem sua visão de fora.

 

Comente

Assine