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Ficção
Uma Batalha Naval

Rodrigo Lacerda

Estamos no século 17, tempo de reis, rainhas, nobres e piratas. Sou um destes. Meu navio é o Cão Turbulento. Eu, o Cão. Minha fama de sanguinário, a maior. Abarbarado pelos cachações da fortuna, desconto no resto da humanidade todo meu ódio e rancor.
Certo dia, num dos raros intervalos entre um e outro massacre, Félix, meu imediato, apareceu-me anunciando a existência de um pequeno navio a poucas horas de contato. Perguntei-lhe se a vítima era promissora.

- Está longe de ser presa de maior vulto, Capitão. Porém, seu comportamento é peculiar. Embora seja impossível que lhe tenhamos passado desapercebidos, não há qualquer sinal de que esteja acelerando ou fugindo, como seria esperado tendo em vista seu renome e sua conhecida bandeira com a cara de cão.

- Talvez porque não contenha nenhuma riqueza substantiva... - argumentei.

- Nem mesmo a vida de seus homens?

Olhei-o intrigado. Achei por bem verificar. Da proa de meu navio, constatei que a embarcação era de fato misteriosa. A princípio, parecia uma canhoneira, um reles navio de vigília, de pequena envergadura e um só mastro. Nem isto deveria ser, contudo, pois não apresentava qualquer canhão, nem no convés superior, nem nas aberturas da borda-livre. Além do mais, nenhuma bandeira o identificava e, por seu porte acanhado, nenhum corsário companheiro de trabalho o teria por condução ou vaso de guerra. No entanto, não fugia de nós.

Por curiosidade, decidi largar a meio pano, dando caça à embarcação, sem pretender, no entanto, real emparelhamento.

Aguardaria para ver qual seria sua réplica, quando nos tivesse colados em seu rastro.

Ao cabo de hora e meia, com meus homens já preparados para um eventual combate, ocupamos o mesmo quintal de água.

Quando esta proximidade não provocou qualquer reação da estranha nau, entendi tal tranqüilidade como um desafio. Meus comandados olharam-me ansiosos por um sinal de canhoneio, que os liberasse para saciar sua carência de sangue. Estávamos a poucas dezenas de braças atrás deles. O dia era belo, uma brisa fresca batia e o mar estava de jeito. Decidi-me a iniciar o ataque.

Os bota-fogos de três de nossos vinte canhões foram acesos. Logo ouviu-se o estrondo das negras bocas de ferro. O primeiro tiro errou o alvo, mas a segunda carga, perfazendo um arco no céu, atingiu de raspão um dos mastaréus inimigos, rebentando a sua pega. O terceiro disparo perfurou a vela de seu traquete.

Cumprimentei com um berro poderoso os atiradores. Mas, quando olhei novamente, surpreendeu-me o arrojo das evoluções marítimas a partir de então executadas pela nau desconhecida. Ela avançava rasgando as ondas em cortes ríspidos, de um lado a outro. Detendo meu olhar na popa adversária, reparei, no alto de seu segundo pavimento, que encastelavam-se junto ao contorno da amurada alguns homens voltados em nossa direção e um deles, mais à frente, provavelmente o Capitão, olhava-nos e acompanhava nossos menores gestos por meio de uma luneta de mão.

A bela manobra executada pelo navio e a calma astuciosa de seu Capitão aumentaram meu apetite para o jogo marcial. Com novo sinal de braço, ordenei segunda carga de mortíferos elementos. Porém, desta vez, todos os tiros morreram inutilmente à flor da água, desencontrados de seu alvo graças à rapidez da nau inimiga.

Disparei, então, o fogo máximo que havíamos postado naquela direção, e novamente a dança covarde da embarcação iludiu meus açores de chumbo. Evitando o emparelhamento e um combate frontal, ao mesmo tempo em que desguiava-se de meus projéteis, a temerária intentava fazer com que eu gastasse munição ou cansasse-me da pendenga.

Meus homens, no entanto, gritavam palavras de guerra do alto dos cordames em que se penduravam, ou brandiam seus punhos, encarapitados nos mastaréus do velacho, da gávea e da gata, ou ainda afiavam espadas no convés, deitavam pólvora aos arcabuzes e bacamartes, todos ansiosos por cavoucarem pescoços e dilacerarem estômagos.

Quando o meu quarto canhoneio redundou novamente em fiasco, mergulhando por inteiro na líquida superfície, decidi içar todas as velas, de forma a obter o máximo impulso e me emparelhar com a imprudente nau. Os nós do cordame registravam o aumento de nossa velocidade e víamos, acima de nossas cabeças, as lonas estufarem-se imponentes. O espírito homicida crescia em igual proporção. Os gritos vinham de todos os lados, o cheiro de morte baixava do céu, e nossa proa já alcançava a metade do bordo direito da nau desafiadora, quando, num rude golpe de timão, ela guinou drasticamente a bombordo.

Estupefatos com sua destreza, assistimos impotentes à manobra de nossos inimigos que, em seguida, removeram uma borda falsa da amurada e abriram pelo menos vinte escotilhas, antes camufladas. Atrás de cada tábua de madeira daquele casco traiçoeiro, surgiram enormes bocas redondas, largas como poços, das quais os urros do inferno se fizeram ouvir.
Imediatamente alvejado, nosso mastro da popa rompeu, rebentando na descida seus guardins, ovéns e enxárcias, além dos corpos humanos que com ele desabaram. Enquanto meus comandados protegiam-se atarantados no convés, eu chispava cego de ódio por entre eles, dirigindo-me à retaguarda de minha embarcação. Lá chegando, vi que éramos nós agora os perseguidos, pois a animosa contendora fizera meia-volta, numa letal coreografia, e repetia contra nós, melhor sucedida, a manobra com a qual tentáramos destruí-la.

Contra o plagiário, plagiário e meio, pensei eu, dando ordens para que bordejássemos, assim como a canhoneira havia operado, de forma a despistar seus tiros. No entanto, a destruição de um dos mastros havia comprometido a mobilidade do Cão Turbulento, e ele desguiava-se nem com a mesma rapidez, nem com a mesma precisão da agressora. Esta, cada vez mais perto chegava, e ouvíamos sua tripulação já cantando vitória. Novos disparos vieram em direção ao Cão Turbulento, atingindo-o no tombadilho e no bordo esquerdo.

Ordenei uma canhonada com força total e acionei as duas armas giratórias, que por sorte permaneciam intactas e inatingidas pela queda do mastro da popa. Mas nem isso retardou a aproximação da nau insolente. Fomos novamente alvejados. Desta vez, nosso mastro real estilhaçou-se em milhares de farpas, todo o grosso velame esgarçou-se, paralisando-nos sobre as águas.

Pela primeira vez, em todo o meu curso de pirataria, eu fora ludibriado, e por embarcação menor do que a minha. Sofreríamos abordagem desonrosa, porém, na situação em que nos encontrávamos, era até bom que ela não demorasse, pois só o combate corpo a corpo poderia reverter a sorte da batalha. Logo os dois cascos se chocaram e, entre urros, tiros e golpes de espada, duas ondas humanas se fundiram.

Felizmente, nada supera uma tripulação corsária no combate direto. É o pirata um animal que se alimenta de ódio e fogo que nem toda a água do oceano pode apagar. Por melhores que fossem os marinheiros que nos atacavam, minha marujada ia espantando a sorte cruel. De minha parte, incendiei-me com o entusiasmo de um novato.

Decapitamos, amputamos, mutilamos, degolamos, castramos, estropiamos, decepamos, achatamos e estraçalhamos. Ao final de poucas horas, mais de cem homens encontravam-se mortos, estirados sobre o assoalho dos conveses, pendurados nos cordames ou emborcados no parapeito das amuradas.

Quando as espadas e os tiros calaram, vi meus homens amarrando prisioneiros ao mastro central da canhoneira e aos gradis do convés inimigo. Estava encerrada a batalha.

Rodrigo Lacerda é escritor e autor de O Mistério do Leão Rampante, entre outros .