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Gênio Indomável

Gênio indomável

O dramaturgo norte-americano Tennessee Williams tirava ?da vida conturbada a matéria-prima para suas peças

Thomas Lanier Williams nasceu em 26 de março de 1911, segundo filho de Edwina, dona de casa, e de Cornelius Dakin Williams, vendedor de sapatos que passava a maior parte do tempo fora de casa. Sobre o pai, o dramaturgo escreveu na autobiografia Memórias – publicada no Brasil pela Nova Fronteira, em 1976 – que era um homem de “caráter rude e bruto”. A mãe, por sua vez, também parecia não facilitar. Nessas mesmas memórias, ele cita algumas passagens em que o autoritarismo dela feria profundamente os filhos. “Mamãe achava que todas as amigas de Rose [irmã dois anos mais velha] exerciam uma influência moral ruim e, assim, Rose viu-se sozinha”, escreveu. A proximidade com Rose, descrita como emocionalmente instável – o que, para desgosto do autor, fez com que ela passasse boa parte da existência em instituições psiquiátricas –, era justamente uma das melhores partes da vida em família de Tom, que mais tarde passaria a usar o nome Tennessee Williams.

Por esse breve relato, nota-se que qualquer semelhança entre a vida em família e uma de suas peças, O Zoológico de Vidro, escrita em 1944, não é mera coincidência. “Ele viveu intensamente a mãe, ardilosa, louca e inteligente, e a irmã, defeituosa, doce e delicada”, diz a atriz Cássia Kiss, que interpreta Amanda Wingfield na nova montagem do texto, em cartaz no Sesc Consolação (veja boxe Em São Paulo novamente). O diretor da montagem, Ulysses Cruz, complementa dizendo que Tennessee foi um grande tradutor da própria vida sobre o palco. “E isso faz com que tudo pareça muito real.” Essa capacidade de usar a vida pessoal como matéria-prima das tramas seria, segundo Cruz, a característica mais marcante da obra do autor. “A perfeita dramaturgia e certo pessimismo em relação à vida faz também com que tudo pareça absolutamente contemporâneo”, analisa o diretor.

Encontro libertador

Além da dura relação com os pais, uma grave difteria, ainda na infância, foi responsável pela transformação de Tom em Tennessee. “Foi quase fatal e mudou minha natureza tão drasticamente como mudara minha saúde física”, explica na autobiografia. “Antes eu tinha sido (...) quase brigão. Durante a doença, aprendi a jogar sozinho, jogos da minha própria invenção.” Foi nessa espécie de clausura psicológica que o jovem encontrou na dramaturgia a companheira para o resto da vida.

A Vingança de Nitocris (1927) foi o primeiro texto de Tennessee publicado em uma revista, a Weird Tales (numa tradução aproximada Contos Estranhos). Ele tinha 16 anos. Em 1934, o autor viu o primeiro texto montado. Cairo, Shangai, Bombaim, encenado pelo grupo The Rose Arbor Players. “[era] uma comediazinha burlesca, mas um tanto comovente, acerca de dois marinheiros num encontro com um par de damas fáceis”, descreve. “(...) Fui identificado no programa [da peça] como o colaborador (...). Ainda assim a risada, alta e espontânea, causada pela comédia que escrevi, encantou-me.” E por fim sentencia: “Naquela ocasião, e ali, o teatro e eu nos encontramos, para o melhor e para o pior. Sei que é a única coisa que salvou minha vida”, diz em sua biografia.

Trajetória

Apesar do encontro salvador, Tennessee sofreu um bocado com a extrema falta de dinheiro, chegando a ter de dividir seu tempo entre a dramaturgia e o emprego numa fábrica de sapatos. Essa foi a época, no entanto, em que passou a produzir textos com regularidade – entre eles alguns fracassos como Spring Storm (1938), alvo de críticas desfavoráveis dos próprios professores da Universidade de Iowa, onde estudava artes dramáticas. A década de 1930 foi especialmente tumultuada e triste pela situação da irmã, Rose, submetida a uma lobotomia.

Com a conclusão da universidade, em 1938, Tennessee mudou-se para Nova York, onde participou de um concurso para autores dramáticos realizado pelo Group Theatre. O grupo, reconhecido no teatro norte-americano, tinha em seu elenco o ator e diretor Elia Kazan – que futuramente viria a dirigir no teatro e no cinema um dos “hits” de Williams, Um Bonde Chamado Desejo (1947). Como prêmio por ter vencido o concurso, Tennessee recebeu 100 dólares do Group Theatre e depois mais 1.000 da Fundação Rockfeller. Esse reconhecimento foi peça-chave para o despontar no cenário cultural da época, chamando a atenção, sobretudo, da escritora Audrey Wood, que se tornaria amiga e pedra fundamental em seu sucesso como dramaturgo. Foi nessa época também que ele passou a assinar como Tennessee Williams.

Palcos e telas

The Glass Menagerie – que no Brasil foi traduzida com o título de À Margem da Vida e Zoológico de Vidro – entrou em cartaz na Broadway, em 1945, onde foi apresentada mais de 500 vezes, o que garantiu a seu autor um lugar no panteão dos grandes dramaturgos americanos. Dois anos depois, emplacou outro clássico: A Streetcar Named Desire (Um Bonde Chamado Desejo), com Marlon Brando – que atuaria também na versão cinematográfica de 1951. O sucesso nos palcos foi ainda maior que o do texto anterior, somando 855 apresentações. A peça rendeu a Brando o estrelato e a Tennessee um Prêmio Pulitzer – uma espécie de Oscar da palavra escrita.

A partir do êxito na Broadway e desse reconhecimento máximo da crítica, o sucesso sorriria para Williams várias vezes. Em 1955, veio ainda outro Pulitzer, dessa vez por Cat On a Hot Tin Roof (Gata em Teto de Zinco Quente), que mais tarde viraria filme, estrelado por Elizabeth Taylor. E um ano depois uma indicação ao Oscar na categoria melhor roteiro, por Baby Doll (Boneca de Carne). Em 1958, outra dobradinha de sucesso no palco e nas telas: Suddenly Last Summer, que, no cinema, foi estrelado por Montgomery Clift, Elizabeth Taylor e Katharine Hepburn, santíssima trindade na Hollywood da época e que chancelava a popularidade de qualquer roteirista ou diretor. Um ano depois, mais sucesso no teatro: Sweet Bird of Youth (Doce Pássaro da Juventude), que viraria filme com Paul Newman em 1962.

Tennessee Williams escreveu cerca de 90 peças ao longo da carreira e foi um dos dramaturgos mais adaptados para o cinema em toda a história de Hollywood. Apesar do reconhecimento, não escapou das vicissitudes a que muitos gênios estão sujeitos, e a certo ostracismo nos anos de 1970. Além disso, episódios envolvendo drogas, álcool e a vida amorosa pontuaram às suas muitas glórias. O dramaturgo e roteirista morreu em 1983 de forma tão banal que chega a ofender sua genialidade: engasgou-se com uma tampinha de garrafa, bêbado em um hotel e de Nova York.

A Broadway brasileira

Os textos de Tennessee Williams nos palcos do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)

As plateias brasileiras puderam conferir o talento de Williams, sobretudo, por meio das montagens realizadas pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), projeto do industrial Franco Zampari que profissionalizou o teatro paulistano nos anos de 1950. Na época, a cena teatral em São Paulo vivia exclusivamente dos clássicos estrangeiros, de autores que lotavam as salas. O que fazia com que, guardadas as devidas ressalvas, o TBC fosse para São Paulo o que a Broadway era para Nova York.

Uma das primeiras peças em cartaz no TBC foi The Glass Menagerie, cujo título ganhou a tradução de À Margem da Vida. A montagem, do Grupo de Teatro Experimental, foi dirigida por Alfredo Mesquita. “A homogeneidade do elenco, formado por Nydia Lícia, Abílio Pereira de Almeida, Caio Caiubi e Marina Freire Franco, é um dos motivos da eficácia da bela peça, que sensibilizara pelo seu moderno lirismo”, escrevem Maria Thereza Vargas e Sábato Magaldi no livro Cem Anos de Teatro em São Paulo (Editora Senac, 2000).

Outro sucesso de Williams no TBC foi O Anjo de Pedra, tradução brasileira para Summer and Smoke, de 1948. O espetáculo foi “considerado uma das realizações mais perfeitas de toda a história do TBC, assinalando-se o magistral desempenho de Cacilda Becker”, explicam Maria Thereza e Magaldi no livro. Uma segunda montagem da peça foi aos palcos do mesmo teatro no início dos anos de 1960 protagonizada por Nathalia Timberg.

Em São Paulo novamente

Sesc Consolação foi palco para Tennessee Williams

Ficou em cartaz, até 22 de fevereiro, no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, o espetáculo Zoológico de Vidro (foto), do dramaturgo norte-americano Tennessee Williams. A produção, dirigida por Ulysses Cruz e com a atriz Cássia Kiss no elenco, conta a história de uma mãe que manipula os filhos. “A felicidade a qualquer custo é tudo que uma mãe quer para seu filho”, diz Cássia Kiss, que interpretou a mãe manipuladora, Amanda Wingfield. “E nós erramos muito por conta disso”, conta ela, mãe de quatro filhos. A sinopse de Zoológico de Vidro não parece ter nada de engraçado. Mas o drama da família Wingfield arrancou boas risadas do público na temporada no Teatro Sesc Anchieta. “Muito mais do que a gente poderia supor”, diz a atriz, para quem, ao contrário do que se possa imaginar, não parece estranho que uma história tão angustiante desperte o riso. “O riso é uma boa defesa. Mas na verdade, a plateia vai de um extremo ao outro. É que a peça provoca. As pessoas querem teatro de verdade, querem os clássicos.”