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São Paulo na veia

Cineastas, escritores e artistas plásticos falam de como a metrópole alimenta seus trabalhos


“É sempre lindo andar na cidade de São Paulo.” Assim começa a letra de São Paulo, São Paulo, música de 1985 da banda paulistana Premeditando o Breque. A canção é uma declaração de amor à metrópole e a toda sua diversidade e contradição. “O clima engana/a vida é grana em São Paulo. A japonesa loura/a nordestina moura de São Paulo. Gatinhas punks, um jeito yankee de São Paulo.” Na verdade, muito antes do Premeditando o Breque, a cidade aparece nas obras dos mais diversos artistas de forma bastante vigorosa. Entre os ícones dessa relação, talvez um dos mais citados seja o livro Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade, lançado em 1922. De lá para cá, o crescimento frenético da cidade e a veia cosmopolita têm atraído cada vez mais os artistas. Ou seja, enquanto muitos reclamam – com certa razão – deste caótico aglomerado urbano, outros o transformam em obras de arte. “A cidade de São Paulo hoje se identifica com todas as definições e rótulos de cidades, genuinamente brasileiras ou importadas, presentes nos discursos de urbanistas, artistas, políticos, pesquisadores e comunicadores”, escreveu a urbanista Raquel Rolnik no volume Folha Explica São Paulo (Publifolha, 2001).

A reportagem da Revista E entrevistou alguns cineastas, escritores e grafiteiros para saber deles de que forma São Paulo alimenta seus trabalhos. Entre as repostas, descobre-se a cidade como cenário, tema, inspiração e até mesmo personagem de livros, filmes e desenhos espalhados por muros e prédios. “A vida em São Paulo é um personagem pronto”, comenta o escritor e roteirista Marçal Aquino – nascido em Amparo, interior do estado de São Paulo, mas já paulistano desde 1985. “Se você anda de olhos e ouvidos abertos, você vê as pessoas ganhando a vida de formas muito estranhas, inusitadas, fazendo virações das mais diversas. Ou seja, tem coisas que surgem aqui e que são próprias desse tipo de vida daqui. E eu digo as gentes e as vidas, isso é mais importante, mais literário que qualquer outra coisa.” Aquino, roteirista, entre outros filmes, de ?O Invasor (2002), de Beto Brant, diz ainda que se considera um andarilho da cidade e afirma que sua literatura vem da rua. “Ela é muito estimulada pelo que vejo, ouço, sinto andando pela rua”, continua. “Personagens, situações, eu acho que é isso que deflagra a ficção dentro de mim. Então São Paulo para mim é isso, um imenso cinema ao ar livre. As tragédias, os dramas e as poesias vão se sucedendo, é assim que funciona para mim.”

A escritora Heloísa Prieto também buscou em São Paulo a inspiração para produzir A Cidade dos Deitados, livro sobre uma garota que se vê com um pneu furado em frente ao Cemitério da Consolação, em plena sexta-feira 13. A obra faz parte da Coleção Ópera Urbana, editada em parceria pelas Edições Sesc e pela Cosac Naify (veja boxe Para ler e ver a cidade). “São Paulo é como uma máquina potencializadora de narrativas”, analisa. “Múltipla e complexa, ela gera novas histórias a cada minuto, ao mesmo tempo em que preserva fragmentos de mistério, lendas urbanas sem pé nem cabeça, ótimas para a gente não esquecer que a vida tem mais sentidos do que se pode imaginar.”

Amor e ódio

No cinema, quem afirma ter uma “relação muito próxima com São Paulo” é Lina Chamie, diretora, entre outros filmes, de A Via Láctea (2007), no qual a cidade é, segundo ela, uma das pontas do triângulo amoroso da trama. “Sou superpaulistana, nasci na Pro Matre [Pro Matre Paulista, maternidade localizada no bairro da Bela Vista, região central da cidade], moro lá do lado, enfim, sempre tive uma relação muito forte e muito plena com a cidade. E quando digo plena quero dizer também nos seus extremos.” A diretora diz que, ao fazer o filme, essa intimidade se intensificou. “O filme nasceu do desejo de contar uma história que falasse de coisas muito comuns a todos: apego, amor, ruptura amorosa, enfim, que falasse basicamente do alicerce humano”, afirma Lina. “Mas, muito rapidamente, a cidade ocupou um espaço grande da narrativa, ela se transformou num personagem muito eloquente dessa história. Quer dizer, a cidade acabou sendo parte da trama.” A história de A Via Láctea fala de um homem que corre para a casa da namorada depois de uma briga do casal por telefone. No entanto, o trajeto não se mostra tão rápido quanto seria necessário. O protagonista passa quase o tempo todo preso no trânsito. Quer algo mais paulistano do que isso? “Eu até fazia uma piada de que nós éramos os únicos que torcíamos para a cidade estar engarrafa”, lembra a diretora, pois, segundo ela, a ideia foi registrar o trânsito real em vez de “produzir” um. “E a gente filmou nas duas últimas semanas de novembro e duas primeiras de dezembro, que são terríveis. E isso está incorporado.” Lina garante que até a chuva que aparece no filme é, digamos, genuinamente paulistana. “São Paulo é uma cidade onde chove, daí uma hora sai o sol, depois chove de novo, e isso também ficou incorporado ao filme”, diz. “Num dado momento, percebi que não adiantava fazer aquela coisa tradicional de filmar planos de chuva, se chover pára [de filmar] etc. Não. A ideia era captar a cidade.”

O diretor Philippe Barcinski vê na cidade uma metáfora para o próprio ser humano. Em seu filme Não Por Acaso (2007), um dos personagens centrais é um engenheiro de tráfego em São Paulo – e, aqui, a cidade também aparece mais do que como mero cenário. “O Não Por Acaso opera a São Paulo mais dos fluxos e dos deslocamentos”, explica. “Essa era a questão central do filme, essa sensação de metrópole com um monte de gente, cada um indo para um lado e cada um com uma vida diferente, o que gera um fluxo intenso. Eu quis captar a sensação poética disso.” Segundo Barcinski, o grande valor trabalhado no filme foi a dificuldade de chegar de um ponto a outro na cidade, fazendo uma ponte com os lugares aos quais se tenta chegar na própria vida. “Deslocar-se [em São Paulo] não é mais um hiato entre dois lugares, é um momento por si só. Por isso, tem um personagem que, quando fala sobre como o trânsito se forma na cidade, isso tem um subtexto sobre ele e a filha, que se perderam no passado. Ele até diz que, quando uma coisa acontece aqui [no trânsito], não se sabe no que isso vai dar mais para a frente, e acontece a mesma coisa na vida da gente.”

O ator e diretor Carlos Alberto Riccelli também pertence ao time dos criadores que “usam” São Paulo em suas obras. No seu caso, o grande exemplo é o filme O Signo da Cidade (2007), que tem roteiro da atriz Bruna Lombardi. O filme mostra “tramas múltiplas que enredam personagens urbanos numa teia de encontros, desencontros e descobertas”, define. “Quando filmei, fiz questão de fazer em locações reais da cidade de São Paulo, como no Minhocão [Elevado Costa e Silva, região central de São Paulo] e na avenida Nove de Julho”, informa. “E essa personagem [a cidade] foi descrita com dureza porque acredito que São Paulo é dura, mas, ao mesmo tempo, com poesia. É evidente que o que mais nos interessava eram as pessoas que vivem aqui. É um painel de histórias da cidade.” Riccelli e a equipe também se relacionaram com o trânsito, mas o resultado disso não aparece em O Signo da Cidade. Ficou mesmo nos dias de filmagem dificultados pelo mar de carros. “É muito difícil filmar com esse trânsito. Tivemos de nos locomover muito de um cenário para outro, e isso exige muito tempo e muita logística. Muitas vezes se perde uma hora no trânsito. Isso foi um problema.”

Um pouco mais antiga, de 1994, uma das obras mais emblemáticas sobre a cidade é São Paulo, Sinfonia e Cacofonia, do cineasta, ator e ex-crítico de cinema – faz questão de lembrar que não exerce mais essa função – Jean-Claude Bernardet. Na verdade, trata-se de uma colagem de diversos outros filmes que mostraram a cidade ao longo da história do cinema brasileiro. “Eu fiz São Paulo, Sinfonia e Cacofonia um pouco para expressar sentimentos contraditórios”, conta Jean-Claude. “É claro que é uma cidade em que não dá para viver, mas ela é muito rica e diversificada. Sobre esse meu filme, ouvi que se tratava de uma ode de ódio e amor a São Paulo. Essa contradição, essa combinação antagônica é o que realmente sinto.”

O escritor Marçal Aquino corrobora esse antagonismo na relação do paulistano com sua cidade. Um relacionamento de extremos que a arte explora. “São Paulo é a cidade que as pessoas mais odeiam amar, porque o cara não consegue ir embora, ele fica ilhado aqui. Está cheio de gente que vem para cá ganhar a vida e fica prometendo ir embora e não vai. Isso é muito curioso”, diz.

Componente transgressor

No campo das artes plásticas, uma das manifestações mais urbanas – e que possivelmente tenha uma das relações mais explícitas com a cidade – é o grafite. Para o artista plástico e grafiteiro Rui Amaral, a arte tem “em sua essência” a característica de ser ilegal. Para ele, esse componente transgressor cria uma ligação que ultrapassa o artístico. “Essa relação que o grafite tem com São Paulo, de ser meio marginal, de contestação, acaba criando vários atritos”, afirma. “Eu, por exemplo, já fui preso várias vezes enquanto grafitava pela cidade. Já cheguei até a ser processado pela Prefeitura de São Paulo.” Amaral é o responsável pelos primeiros desenhos que ocuparam o viaduto que liga as avenidas Dr. Arnaldo e Paulista – conhecido como buraco da Paulista – e, a despeito dos problemas que já teve, não abre mão de, como ele diz, “deixar a cidade mais bonita”. “O meu negócio mesmo é a cidade como suporte [nas artes, o suporte refere-se ao material usado para produzir a obra, como o papel, tela etc.]. Gosto de fazer arte pública, arte na cidade”, conta. “Se for para fazer uma instalação, por exemplo, não me interessa colocar um inflável dentro de um museu de arte contemporânea. É legal, acho bacana, mas prefiro colocar 12 infláveis no Parque do Ibirapuera.”

O também grafiteiro José Augusto Capella, o Zezão, prefere sair pelas galerias subterrâneas da cidade para deixar sua marca nas paredes de túneis sobre os quais a cidade pulsa. Mas qual a utilidade de pintar um local que ninguém vai ver, um lugar escondido embaixo do concreto? Essa é a primeira pergunta que vem à cabeça de quem escuta Zezão falar de suas incursões ao mundo desconhecido de São Paulo. “Reconheço que é sinistro. É um lugar escuro, fedido, no qual geralmente não sei onde estou pisando”, esclarece. Parece uma atividade arriscada. E, segundo o artista, é mesmo. “Protejo-me como posso, uso roupas adequadas e presto atenção no clima. Se pego uma chuva lá embaixo, por exemplo, corro o risco de ser engolido por um tsunami. Mas faço isso para deixar a minha marca. Daqui a alguns anos, pretendo formar uma galeria subterrânea somente com meus desenhos”, explica.

Para ler e ver a cidade

Relação entre São Paulo e os artistas também dá o tom de iniciativas do Sesc São Paulo

Realizado no Sesc Ipiranga em janeiro, o projeto Crônicas da Cidade uniu o cinema à literatura para falar de São Paulo. O evento promoveu encontros com exibição de filmes que têm a cidade como tema ou cenário, seguida de um bate-papo com um escritor que também aborda a metrópole em seus textos. Os temas tratados foram desencontros, utopias, pauliceia poética, trânsito de ideias e o submundo paulistano. Dessa forma, o filme A Via Láctea (2007), de Lina Chamie, foi visto antes da fala da escritora Ivana de Arruda Leite, Os 12 Trabalhos (2006), de Ricardo Elias, precedeu um encontro com Ferrez e O Signo da Cidade (2007), de Carlos Aberto Riccelli, foi mostrado antes de um bate-papo com Luiz Ruffato.

Ainda no campo da literatura, a Coleção Ópera Urbana, voltada para o público infanto-juvenil, “folheia” São Paulo para mostrar suas múltiplas facetas. Os livros são uma publicação das Edições Sesc e da Editora Cosac Naify. “A coleção é composta por quatro ficções inspiradas em espaços urbanos e cada uma delas é acompanhada por um livreto com curiosidades e informações paradidáticas”, esclarece Clívia Ramiro, coordenadora das Edições Sesc, vinculada à Gerência de Desenvolvimento de Produtos. “A ideia é trazer o jovem não apenas para mais perto da literatura como também de sua cidade.” Fazem parte da coleção os livros Cidade dos Deitados, de Heloísa Prieto (texto) e Elizabeth Tognato (ilustração); Montanha-russa, de Fernando Bonassi (texto) e Jan Limpens (ilustração); Surfando na Marquise (ilustração abaixo), de Paulo Bloise (texto) e Daniel Kondo (ilustração); e Avenida Paulista, de Augusto Massi (texto) e Carla Caffé (ilustração).

Em outras épocas

São Paulo nos clássicos do cinema brasileiro

Colocar São Paulo em foco no cinema não é novidade. Ao contrário, clássicos da cinematografia brasileira, como São Paulo S/A (1965), de Luís Sérgio Person, e O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, tornaram-se ícones também nesse quesito. “São Paulo S/A é um filme de personagens, um filme que fala muito da solidão da cidade, do ser humano na cidade”, comenta a cineasta Lina Chamie, diretora de A Via Láctea (2007). “E ele tem uma coisa interessante que é mostrar o contexto da cidade na época, que é o começo da indústria automobilística. E há, vê-se isso no filme, um grande entusiasmo nessa grande metrópole que é São Paulo e que está num momento de ascensão industrial.” Já O Bandido da Luz Vermelha conta a história de João Acácio, um assaltante que realmente existiu, em meados dos anos de 1960, em São Paulo, e que assaltava casas luxuosas. No filme de Sganzerla, Acácio aparece como um personagem extravagante e até um pouco romântico. O filme tornou-se um marco do chamado cinema marginal.

Philippe Barcinski, diretor de Não Por Acaso (2007), lembra ainda outros clássicos do cinema em que São Paulo é a estrela – ou ao menos uma delas. “Nos anos de 1960 e 1970, a cidade foi muito bem retratada [no cinema]. Além do São Paulo S/A e de O Bandido da Luz Vermelha, poderia citar o Bang Bang (1971), do Andrea Tonacci, e o Noite Vazia (1964), do Walter Hugo Khouri. Enfim, são filmes que têm imagens muito emblemáticas da cidade.”

Veja mais

Algumas dicas de como ver São Paulo ?por meio da safra mais recente do cinema

O Invasor (2002), de Beto Brant
Os 12 Trabalhos (2006), de Ricardo Elias
A Via Láctea (2007), de Lina Chamie
O Signo da Cidade (2007), de Carlos Alberto Riccelli (foto abaixo)
Não Por Acaso (2007), de Philippe Barcinski