Postado em
Depoimento
De vento em popa
O velejador Lars Grael fala de sua atuação ?política e da capacidade do brasileiro ?de “se reinventar constantemente”
Nascido em São Paulo, em 1964, o velejador Lars Grael busca inspiração no esporte desde menino. Não era para menos. O pequeno vivia numa família de amantes da vela. Um de seus irmãos mais velhos, Torben, também é campeão olímpico e seu tio Erik Schmidt foi um dos primeiros brasileiros a vencer um mundial de iatismo. Além das duas medalhas de bronze – nos Jogos Olímpicos de Seoul, em 1988, e Atlanta, em 1996 –, o convidado da seção Depoimentos desta edição também é pentacampeão sul-americano, e por dez vezes conquistou o campeonato brasileiro. Após uma bruta interrupção na carreira, por conta de um grave acidente, em setembro de 1998, que resultou na amputação de uma das pernas, o atleta não cogitou baixar as velas. Voltou a competir e, entre outras vitórias, Lars tornou-se bicampeão sul-americano da classe Star. Ex-secretário nacional do Esporte, de 2001 a 2002, e ex-secretário da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo – de 2003 a 2006 –,?o velejador conversou com a Revista E sobre seus projetos sociais, contou sua experiência na vida pública do país e declarou que vê nos brasileiros a mesma capacidade que teve para “dar a volta por cima” após o acidente. “Aquilo que se falava do jeitinho brasileiro é, na verdade, muito mais do que uma simples crítica, é algo que mostra a nossa capacidade de sobrevivência.” A seguir trechos.
Projetos sociais
Sempre tive uma sensibilidade social muito grande – isso vem de minha formação. E nós [refere-se à família] somos inconformados com o conceito de que esse esporte [a vela], assim como outros, é tão intensamente rotulado como uma modalidade ?de elite. Sempre tive a intenção de deselitizar o nosso esporte, de ajudar a popularizá-lo, ou seja, gerar oportunidades para que outros jovens pudessem ter acesso ao esporte como tivemos. E como a vela para a gente é um legado de família, que veio do meu avô materno, passou pelos tios, minha mãe, até chegar na nossa geração, temos essa vontade de dar uma contribuição. Em 1996, como estávamos sendo homenageados pelas medalhas olímpicas dos jogos de Atlanta, concebemos a criação de um projeto de inclusão social por meio da vela. Surgiu, então, o Projeto Grael, com sua primeira turma em 1998. E estamos aí com mais de dez anos de estrada. Esse projeto mais tarde virou uma ONG, o Instituto Rumo Náutico, hoje autossustentável e reconhecido por várias entidades. A partir dele foi implantado, no âmbito do Ministério do Esporte, o Projeto Navegar, que era o mesmo conceito, mas com uma ação governamental – e não só com a vela, mas também em modalidades como o remo e a canoagem – e, posteriormente, quando eu fui secretário [da Juventude, Esporte e Lazer] do estado de São Paulo, implantamos o projeto Navega São Paulo, com o mesmo conceito, mas no âmbito estadual.
Atuação política
Foi uma experiência importante para a minha vida. Por meio da vela, tive a oportunidade de conhecer lugares especiais no mundo todo, em todos os continentes, todos oceanos etc., o que abre muito a mente. Mas não conhecia tão bem o Brasil. Ao aceitar um cargo no Ministério do Esporte e Turismo, de 1999 a 2002 – e logo depois me tornar secretário nacional do esporte –, tive contato com uma experiência muito válida de entender o mecanismo do poder, de constatar que a sua dedicação e o seu idealismo podem ter impacto na vida de milhões de brasileiros, constatar que este é um país com desigualdades e potencialidades e também constatar que no Brasil, hoje, campeia a inversão de valores éticos, cívicos e morais. Mas ainda assim as pessoas têm que ter motivação para estarem de alguma forma na vida pública, levando o seu conhecimento técnico e não apenas com interesses individuais ou político-eleitorais.
Jamais confundi as coisas e dei a minha contribuição naquilo que eu gosto de fazer, que é o esporte. Tinha absoluta noção de que se tratava de uma fase e retornei em seguida à iniciativa privada – e até mesmo à prática da vela. Já os obstáculos [de atuar na política] são aqueles que qualquer cidadão bem informado pode imaginar. Você tem um espaço para atuar, mas tem restrições de ordem orçamentária,?tem uma capacidade de investimento muito menor do que as demandas técnicas e sociais que se apresentam, e tem uma burocracia que nem sempre permite que o gestor coloque em prática ideias que ele pôde conceber ou pôde compartilhar com o setor. A burocracia muitas vezes tranca a gestão de uma máquina pública. Além disso, há a questão da intervenção político-partidária, que carrega uma agenda que nem sempre é a agenda técnica em que você gostaria de atuar, trazendo outros componentes de ordem política. Mas isso é comum, na vida pública é importante a pessoa saber atuar sem comprometer a questão da ética e do idealismo.
Superação
O acidente do qual fui vítima em setembro de 1998 – portanto, há mais de dez anos – foi realmente uma prova de fogo na vida, no sentido de buscar equilíbrio psicológico, espiritual e físico para poder superar tudo aquilo. Foi uma fase dura, na qual fiquei entre a vida e a morte. Tive que me adequar a novos objetivos, novas metas e inclusive a novos valores. Tive que buscar uma nova razão de viver, uma razão de me sentir útil à sociedade. Aquilo que me motivou também a atuar em cargos públicos foi levar essa contribuição, intensificar a minha contribuição social, gerando oportunidades para outras pessoas por meio do esporte. E até mesmo entender que, como eu passei, digamos, a ter uma notoriedade ainda maior da que eu tive como atleta olímpico, eu passei a ser um formador de opinião, o que gera uma responsabilidade. Então, voltar a praticar o esporte da vela e, apesar de conviver com uma deficiência física severa – pela ausência de uma perna –, voltar a competir e a ganhar. E isso é um fator de motivação muito importante para milhares de pessoas que me conhecem, que acompanham a minha trajetória, que torcem por mim. Mostra para eles que, se eu pude, eles podem também. No meu caso, o fundamental para que eu pudesse dar a volta por cima foi conhecer pessoas que já tinham feito isso, que já tinham sofrido acidentes semelhantes e que eram exemplos bárbaros de superação. E vejo isso no povo brasileiro, que é um povo que tem a capacidade de se reinventar constantemente. Aquilo que se falava do jeitinho brasileiro é, na verdade, muito mais do que uma simples crítica, é algo que mostra a nossa capacidade de sobrevivência, de ser original, de se adequar a uma circunstância que surja na vida. Então, nesse aspecto sou muito otimista, tenho crença no povo brasileiro – apesar de o Brasil viver hoje um momento difícil, sobretudo, em relação à absoluta falta de idealismo, de um projeto de Brasil que não seja um projeto de poder político.