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No mundo da arte clandestina

Pichação e grafite, caos colorido que já faz parte da paisagem urbana

JOÃO MAURO ARAUJO


Grafite no Jardim Irene, em São Paulo / Foto: João Mauro Araujo

Quem nunca participou de um grupo de pichadores provavelmente não entende nada dos "rabiscos" espalhados em muros, pontes, prédios, portas de lojas, viadutos, entre outras superfícies que acabam sendo "reivindicadas" como suporte para esse polêmico tipo de comunicação. As inscrições, em geral feitas com spray, rolo, giz e "canetão" (igual ao utilizado em cartazes de supermercado), interferem diretamente na paisagem das metrópoles. Se um filme ou novela procura ressaltar a urbanidade de um cenário, com certeza aparecem pichações ao fundo ou mesmo num primeiro plano. Isso significa que o "caos colorido" disseminado pelos pichadores já faz parte da cenografia das cidades.

Mesmo assim, não é difícil encontrar quem abomine essa prática, principalmente se a pessoa já teve algum bem material "vandalizado". Numa manhã de julho, no bairro paulistano de Perdizes, três pintores subiam e desciam com cordas pelas paredes de um prédio. Há dois anos, uma das laterais do edifício fora inteiramente pichada na vertical por "artistas" que usaram os buracos da ventilação para fazer a escalada. O zelador, Gilberto de Souza Sá, acordou na manhã seguinte e informou o fato à síndica. Ninguém havia visto nada. "O rapaz do estacionamento ao lado disse que ouviu um barulho no telhado, mas pensou que fosse um gato", lembra Sá. Dois meses depois, a história se repetiu, só que dessa vez o alvo foi a outra lateral do edifício, que podia ser vista da movimentada Avenida Sumaré. Os condôminos, então, reforçaram a segurança, colocando uma cerca elétrica na grade em torno do prédio e contratando os serviços de um vigia noturno.

Para os membros das gangues de "picho", o esforço para deixar sua marca bem visível faz parte de uma espécie de competição, cujo prêmio é o que chamam de "ibope" (alusão ao Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística), ou seja, um maior reconhecimento dentre os participantes da disputa. Os pichadores costumam se reunir semanalmente nos points, que são locais públicos onde se apresentam uns para os outros, conversam sobre a atividade clandestina, trocam "folhinhas" (papéis com assinaturas estilizadas) e narram seus "rolês" noturnos, numa espécie de happy hour. Há também os encontros nas festas organizadas para comemorar o aniversário de alguma gangue. Nessas ocasiões, as vantagens da popularidade são maiores, pois as garotas do movimento, as chamadas "maria-lata", valorizam os mais famosos e corajosos. Nos points e festas, novos desafios são lançados. Uma das regras mais caras é a proibição do "atropelo" (pichar sobre a letra de outro). Como todos se conhecem e essa rede de comunicação atravessa a cidade, não vale a pena transgredi-la.

Ultimamente, as letras de pichação têm sido objeto de grande interesse de designers, que andam pelo mundo atrás de novos tipos de fonte e, boquiabertos, as encontram nos muros. Um dos reality shows exibidos em horário nobre traz um "o" com formato de losango (inspirado em pichações) em seu logotipo. É o que observa Daniel Medeiros, o Boleta, organizador do livro Tsss... A Grande Arte da Pixação em São Paulo (com x, como a maioria grafa a palavra), lançado em janeiro deste ano. Boleta começou a pichar aos 13 anos por influência dos amigos de Sapopemba, bairro onde nasceu, na zona leste de São Paulo. "Isso já é uma cultura de escola, de moleque de periferia. É muito comum o cara se chamar Ricardo, por exemplo, e abreviar para RCD. Depois ele cria uma logotipia", explica Boleta. Em novembro de 1990, ele fundou com outro pichador o logotipo "Vicio" (sem acento no "i"), que já foi divulgado até fora do país, em seus quase 16 anos de existência. A "agenda de pichador" de Boleta, com material que ele reuniu entre 1988 e 1998, foi a base principal para o Tsss... Seu objetivo, ao fazer o livro, é assim explicado por ele: "Se você faz uma pichação, ela pode sumir no dia seguinte. O cara constrói um nome, uma carreira, e vai sendo tudo apagado com o passar do tempo. Um livro é uma forma de perpetuar isso na história".

Segundo ele, a prática da pichação tem uma dimensão artística, ressaltada no título do livro: "Um dos papéis da arte é incomodar, e a pichação tem essa característica". O argumento lembra um pouco a frase do pintor e escultor holandês Karel Appel, para quem "a arte precisava chocar". Boleta já chegou a receber até R$ 2 mil para pichar o nome "Vicio" nos móveis de um italiano admirador de pichação. Hoje sua ocupação maior é o grafite (pintura de rua com desenhos, figurativos ou não), mas ressalta: "Não sou daqueles que começam a grafitar e largam a pichação para dizer que ‘pichar é errado’. Continuo fazendo, claro que não com tanta veemência. Grafite é por diversão, e pichação é tipo uma sobremesa, de vez em quando..."

Origem

A prática da pichação pode ser encontrada bem longe, talvez nas origens da espécie humana, como sugerem alguns vestígios históricos. Nos 450 sítios arqueológicos do Parque Nacional da Serra da Capivara, localizado no Piauí, existem cerca de 25 mil pinturas rupestres. Isso significa que, há milhares de anos, o homem já sentia necessidade de se comunicar e o fazia nas formações rochosas onde provavelmente se abrigava. As paredes das cavernas ficavam repletas de signos, assim como as cidades hoje têm suas marcas de pichação. Alguns estudiosos consideram o desenvolvimento da escrita um dos passos decisivos para a evolução humana. Sua origem remonta aos sacerdotes sumérios, que administravam terras e, por isso, desenvolveram um sistema de registro gravado em tábuas de argila, por volta de 3000 a.C. Daí em diante, a escrita passou a ser usada pelo comércio, para a comunicação e também para a expressão da subjetividade.

A psicóloga Renata Plaza Teixeira pesquisa há 14 anos os grafitos – antigas inscrições, geralmente feitas em ambientes internos. O termo "grafito" deriva do vocábulo greco-latino "graphis", que significa escrever, desenhar. No italiano, a palavra deu origem a "graffito" (singular) e "graffiti" (plural); no Brasil, para designar o grafite-arte também se usa "graffiti", só que no singular. "Quando estive na Itália, visitei os sítios arqueológicos das cidades que foram soterradas pelo vulcão Vesúvio em 79 d.C. Vi que já havia inscrições, mesmo as de banheiro, desde aquela época", afirma Renata. Há indícios de que Pompéia possuía uma inscrição por habitante, ou seja, cerca de 10 mil inscrições.

Para sua tese de doutorado "Sob a Proteção da Vênus Cloacina: Diferenças Sexuais e Interculturais em Grafitos de Banheiro", apresentada na Universidade de São Paulo (USP) em 2004, Renata estudou inscrições copiadas por ela em banheiros do Brasil, Estados Unidos, Itália, Espanha e Alemanha. Fazendo uma comparação com Pompéia, ela diz que os conteúdos dos grafitos são parecidos: "Apesar de ocorrerem em locais diferentes e momentos históricos diversos, separados por 2 mil anos, percebem-se semelhanças. Tanto na Antiguidade como agora eles falam de amor, sexo, política, fazem piadinhas ou então têm um conteúdo escatológico". Renata constatou que os homens costumam escrever bem mais que as mulheres, tratando de sexo e política, ao passo que elas esboçam maior romantismo. Segundo a pesquisadora, talvez por estar mais ligada ao lar, ao ambiente privado, e saber quanto custa limpar uma parede, a mulher não rabisque tanto. Outra explicação se baseia na hipótese de que ela adere mais às regras sociais que os homens. Esse último dado também pode ser observado no conteúdo das pichações, que até servem de reforço da identidade masculina.

A história da pichação moderna pode ser datada a partir dos anos 1960, primeiramente como mensagem política e existencialista, depois como marcação de território, para então chegar ao estágio atual: a busca pelo "ibope". Nos muros de Paris, em maio de 1968, muitas pichações criticavam os costumes, ironizavam correntes políticas e exaltavam a rebeldia: "Não reclamaremos nada. Não pediremos nada. Ocuparemos". Em fins da década de 1960, nos Estados Unidos eram comuns pichações pacifistas contra a Guerra do Vietnã. Já no Brasil, dos tempos do regime militar ficaram as clássicas fotos de muros pichados: "Abaixo a ditadura!"

As pichações como demarcação de território ocorreriam ao longo da década de 1970, no bairro suburbano do Bronx, em Nova York. Os jovens organizavam-se em gangues como forma de proteção e resposta à sociedade norte-americana que os discriminava. Logo a periferia ganhou uma nova geografia, e as letras pichadas com spray identificavam os "donos da área". Ao mesmo tempo, houve o desenvolvimento do hip-hop, cultura originada no gueto. O grafite passou a ser o elemento comunicativo plástico do hip-hop e, por meio de filmes, foi exportado para outros países. Daí a distinção entre o grafite-arte, o grafite do hip-hop (ambos grafite de espaço, mas com diferentes intenções) e a pichação (grafite linear). Na cidade de São Paulo, a cultura do spray começou em 1978, com as imagens desenhadas por Alex Vallauri (falecido em 1987), um dos nomes da geração que intensificaria as pinturas urbanas nos anos 1980. Vallauri fazia desenhos utilizando a técnica de máscara (ou estêncil), em que se prepara um molde de cartolina – opcionalmente pode-se usar papel dúplex ou mesmo uma chapa de radiografia – para depois apoiá-lo no muro e pintar com spray por cima.

Rui Galvão de França Amaral, outro artista importante da Geração 80, ainda em atividade, foi um dos primeiros a desenhar na rua à mão livre (sem o molde da máscara). Amaral conta que chegou a ser encaminhado cinco vezes a delegacias por estar fazendo pintura na rua e, numa delas, foi parar numa cela. "O começo foi na época da ditadura. A atividade acontecia sábado de manhã: a gente tirava a propaganda política e pintava os postes", lembra. Ele, que mais recentemente fez um imenso painel no túnel entre as avenidas Doutor Arnaldo e Paulista, compara o processo de aceitação do grafite com o do skate: "Quando comecei a andar de skate, moleque, era proibido. A gente tinha de jogá-lo num terreno baldio quando aparecia um policial, senão ele pegava. Hoje em dia existem lojas, megaeventos, campeonatos mundiais. Daqui a pouco vai virar esporte nas olimpíadas", diz.

Em sua opinião, a definição de grafite só existe ligada à transgressão: "Considero o grafite um movimento de guerrilha, de protesto. É a ocupação de espaço não permitida, ilegal. Se passa a ser legal, deixa de ser grafite e torna-se arte de rua. Não que um seja pior que o outro, apenas são diferentes", explica Amaral. Desde as primeiras mostras e sua inclusão em bienais de arte, o grafite atingiu um patamar estável. Todavia, mesmo sendo às vezes irmãos na relativa ilegalidade, a pichação, ao contrário do grafite, ainda encontra dificuldade em ser apreciada esteticamente, embora também utilize cores e formas bem trabalhadas. "Grafite pode ser vandalismo tanto quanto a pichação. Muitas vezes um bom picho é mais legal do que um mau grafite. Propaganda, então, existem umas que eu abomino. Pode ser mais interessante ver um picho em cima de um prédio do que uma propaganda do governador do estado", comenta Rui Amaral.

Hoje os artistas de rua têm até galerias para mostrar suas obras. Há um ano e meio foi instalada a Grafiteria, no bairro da Vila Madalena, em São Paulo. Lá acontecem principalmente exposições com trabalhos de artistas de rua. Flávio Ferraz ("Jey"), artista plástico e gráfico e um dos responsáveis pela Grafiteria, reconhece no entanto que, no âmbito de uma galeria, "o grafite se transforma em outra coisa que não é ele".

Os Pigmeus

O ônibus vai se aproximando do bairro Jardim Irene, na zona sul de São Paulo. No topo dos conjuntos habitacionais é possível ler a marca de uma das gangues, formada há mais de 18 anos na região: os Pigmeus. A característica principal de seu traço é o "g" estilizado com um mascote de boné sorrindo. A rua fica mais estreita e o cenário característico das periferias vem aos olhos. Não é à toa que certa vez um rapper criou esta máxima: "Periferia é periferia em qualquer lugar". Córrego a céu aberto, casas amontoadas, cachorros por toda parte. No "campo do Cafu", que leva o apelido do capitão da seleção do penta nascido ali, aguardam Wagner Lucas e Ricardo Lopes ("Cacau"), ex-pichadores de uma das primeiras gerações do "movimento". Sentam-se no banco de madeira, ao lado do campo onde a molecada solta pipa, e começam a falar sobre os "rolês" do passado. Quando o assunto é Pigmeus, eles avaliam bem as palavras, como que respeitando a bandeira daquilo que defenderam por um longo período e cuja energia hoje é transferida para a formação de novos artistas na comunidade.

Wagner foi convidado pelo falecido líder "Cal" a integrar os Pigmeus em 1990. Conta com orgulho: "Para entrar numa gangue você tem de ser chamado. É como jogar num time grande". Na época os Pigmeus estavam na "quinta divisão" do picho, depois se tornaram especialistas em pichar fachadas de edifícios escalando-os. "A gente tinha de fazer algo mais difícil que os outros. Aprendi a subir em prédios porque havia muita competição entre o pessoal", afirma Wagner. Para divulgar a marca das gangues na cidade, os pichadores desenvolveram técnicas que variam de grupo a grupo. Há quem suba pelo pára-raios ou entre nos prédios pela porta da garagem, abaixado atrás de um carro; alguns levam escada, corda, pé-de-cabra, para estourar o cadeado que dá acesso à cobertura; outros fazem pirâmide humana no estilo circense. O perigo está sempre presente, e talvez resida aí uma das tentações da pichação, que é "sentir a adrenalina" do risco. "Você assiste à televisão e vê o MacGyver [personagem da série "Profissão Perigo"] entrar num prédio. O pichador faz a mesma coisa", relata Wagner. Quase tudo na pichação é premeditado, escolhido a dedo. Eles procuram alvos em áreas movimentadas, com maior visibilidade, e antes das ações avaliam o local, a rotina da segurança e as condições para entrar ou subir.

"Meu lance com a pichação era mais o alpinismo urbano. Escalar a selva de pedra não tem preço", comenta Wagner. A menção à publicidade é comum no discurso e na conduta dos pichadores. Eles também "vendem uma marca" (quem é mais visto é mais vendido). Até na organização das gangues essa lógica aparece. Quando há afinidades entre turmas, seus integrantes formam uma coligação chamada "grife", ou seja, sempre que um grupo colocar seu nome, precisará pôr também o símbolo da grife. Os Pigmeus, por exemplo, fazem parte da grife intitulada Os Mais que Todos, junto com outras 30 gangues de São Paulo.

Cacau entrou nos Pigmeus em 1993. Na época da escola, já lia as pichações e ficava orgulhoso quando via na Avenida Paulista o nome de turmas dos bairros próximos de onde morava. Para ambos, os pichadores famosos eram quase super-heróis. Espelhavam-se neles desde cedo. "Nem tinta a gente tinha. Furtava restos no quintal dos outros. Éramos maloqueirinhos. Pegávamos até cal", lembra Cacau. Se os dois fossem contar todas as suas histórias, a entrevista levaria dias. São aventuras que envolvem tinta, escaladas, polícia e inclusive fantasmas em um prédio que funcionou como necrotério. "Era mal-assombrado lá em cima." Wagner tem até vontade de escrever um livro.

Sobre as mortes no mundo da pichação, embora mencionem duas, eles dizem que normalmente morre mais quem pára de pichar, porque aí "começa a fazer coisa errada". "Alguém que esteja desempregado e não quer roubar vai pichar. É uma forma de aliviar o estresse", avalia Wagner. Atualmente a atenção de Wagner e Cacau está voltada para o projeto que ajudam a tocar na Escola de Artes Olho da Rua, fundada com recursos do programa Vai (Valorização de Iniciativas Culturais), da prefeitura de São Paulo. "É só criar um curso para pichadores que se descobre um monte de artistas. Nossa escolinha está aí para comprovar", complementa Wagner.

A oficina já tem 40 alunos inscritos e, segundo um dos professores, o artista plástico André Komatso, está obtendo bons resultados. "A gente ensina uma série de técnicas. Começa com desenho, passa pela xilogravura, grafite, sticker (adesivo), estêncil e lambe-lambe (cartaz). São programas rápidos, e os mais interessados podem fazer um curso intensivo de um mês para dar aulas para crianças e outros jovens da própria comunidade", explica Komatso. O aluno Carlos Alberto Rodrigues Mariano, o Preto, tem bastante intimidade com as tintas. Já fez vários trabalhos nos muros do bairro e conhece bem as diferenças entre os estilos de grafite do hip-hop: throw-up ou bomb, peace, 3d e wild’style. Preto concluiu o segundo grau e pretende fazer faculdade. Seu projeto atual é um painel com os ícones Che Guevara, Sabotagem e Bob Marley. Anoitece no Jardim Irene e as primeiras lâmpadas já estão acesas. A expectativa geral é que a arte ajude mesmo a mudar a periferia, para melhor, é claro. 

 

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