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Próxima atração: interatividade

Com o sistema digital de televisão, vem aí uma verdadeira revolução cultural

CARLOS JULIANO BARROS


Arte PB

No último dia 29 de junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou em solenidade no Palácio do Planalto a escolha do padrão japonês de televisão digital, chamado ISDB-T (Integrated Services Digital Broadcasting – Terrestrial, em português "serviços integrados de radiodifusão digital terrestre"), como referência para a implementação desse novo sistema no Brasil. A assinatura do decreto que sacramentou a opção pela tecnologia nipônica é um dos capítulos mais importantes de uma novela que termina com final feliz para as gigantes do setor de radiodifusão nacional. "Temos um compromisso com 180 milhões de brasileiros. Para poder mantê-lo, seria necessário adotar um padrão que apresentasse as qualidades, as vantagens e a operacionalidade que o sistema japonês oferece", argumenta José Inácio Pizani, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert).

Mesmo com o assédio de europeus e norte-americanos, que também estavam de olho em um dos maiores mercados de televisão aberta do mundo, prevaleceu a vontade das grandes empresas do ramo, e a potência asiática saiu vitoriosa. Não há cálculos precisos, mas o processo de transição do sistema analógico para o digital deverá movimentar dezenas de bilhões de dólares, nos próximos dez anos. Dinheiro que será gasto pelas emissoras na modernização de sua infra-estrutura e pela própria população na compra de aparelhos capazes de receber o novo sinal. No período de uma década, os dois sistemas vão conviver, até que o analógico seja substituído de vez. As primeiras transmissões digitais estão previstas para meados do ano que vem, na capital paulista.

Até lá, pesquisadores do Brasil e do Japão vão estudar a incorporação de tecnologias desenvolvidas por universidades nacionais ao ISDB-T (ver texto abaixo). Por essa razão, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, afirma que se trata de um sistema nipo-brasileiro. Em sua opinião, o governo optou pelo "padrão de modulação digital que melhor se ajusta às características e necessidades da televisão brasileira e que preserva sua condição de aberta e gratuita conjugada com mobilidade".

Apesar da satisfação dos radiodifusores, a medida não agradou a diversas entidades da sociedade civil, que lutam pela democratização dos meios de comunicação e defendem um debate mais amplo a respeito dessa mudança, que promete revolucionar o cotidiano dos brasileiros. "O decreto só atende aos pleitos das emissoras. E o governo o editou às vésperas do processo eleitoral, justamente quando se torna mais refém – além do que já é – da cobertura da mídia, e durante uma Copa do Mundo, quando as atenções estão voltadas para a seleção", critica Gustavo Gindre, coordenador do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs).

De acordo com dados oficiais, existem hoje cerca de 54 milhões de aparelhos de televisão espalhados pelos domicílios de todo o país – número que evidencia a importância desse veículo como principal fonte de informação e entretenimento da população. Com a digitalização, abre-se um mundo de possibilidades que vão muito além da simples melhoria na qualidade de som e imagem dessa mídia. E a palavra-chave para entender o potencial da nova tecnologia é "interatividade". Isso quer dizer que o telespectador vai poder interferir ativamente na programação, recebendo, mas também enviando informações. "O que é o conteúdo da TV analógica? Áudio e vídeo. O que é o conteúdo da TV digital? Não se sabe ainda. Existe um mundo de produção a ser descoberto, até do ponto de vista profissional", afirma Diogo Moyses, membro da organização não-governamental Intervozes.

Os recursos digitais permitem, por exemplo, que o usuário realize compras ou efetue pagamentos de impostos, além de trocar mensagens de correio eletrônico – conhecidas por "t-mails" – através do televisor. O próprio presidente Lula disse que sonha com o dia em que o cidadão de baixa renda poderá marcar uma consulta em um hospital do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio de seu aparelho. "O Brasil deveria usar esse momento para fazer a inclusão digital da população", avalia Valério Brittos, professor do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), do Rio Grande do Sul.

Caso sejam cumpridas as diretrizes que constam do decreto presidencial, a verdade é que pouca coisa deve mudar no atual cenário de radiodifusão. As redes de grande porte não sofrerão nenhum abalo significativo em seu poder de fogo. Mas, apesar de a escolha do ISDB-T representar uma conquista e tanto, elas ainda precisam superar obstáculos de natureza legal. O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), que regula o setor, data de 1962, época em que a televisão ainda era em preto-e-branco, e precisa de uma revisão urgente. E, na análise de Gindre, o decreto viola vários de seus artigos. "É um festival de irregularidades", afirma ele.

Problemas com a lei

Hoje, para realizar suas transmissões, cada emissora tem autorização do governo para utilizar uma determinada freqüência do espectro eletromagnético – meio físico por onde viajam as ondas que partem das antenas das empresas até a casa dos telespectadores, levando o conteúdo audiovisual que é visto nos televisores. No sistema analógico, cada canal requer uma faixa de 6 MHz. Entretanto, com os avanços proporcionados pela digitalização, essa mesma banda poderá abrigar até oito canais, em formato standard, com qualidade similar à de um DVD. Caso a transmissão seja feita em alta definição, cuja recepção requer aparelhos de plasma ou LCD (tela de cristal líquido), que custam em média R$ 6 mil, os mesmos 6 MHz comportam até dois canais.

Por essa razão, além da melhoria de som e imagem e da possibilidade de interagir com a programação, o advento dessa tecnologia também permitiria o surgimento de dezenas de novos canais abertos. Porém, a medida do governo federal restringiu essa possibilidade, ao garantir a cada emissora um "latifúndio" de 12 MHz: metade para a radiodifusão analógica, que será mantida até que se complete de vez a transição e depois devolvida, e a outra metade destinada à transmissão digital. Na avaliação de Gindre, esse é um dos principais problemas do decreto.

De acordo com o CBT, as emissoras têm autorização para usar a faixa do espectro eletromagnético estritamente necessária à prestação do serviço de radiodifusão. Portanto, com o novo sistema, as redes de televisão precisariam para suas transmissões digitais de apenas uma parcela dos 6 MHz adicionais que lhes foram concedidos. "Não há razão para colocar todo esse espectro nas mãos dos mesmos grupos econômicos. Deveria haver uma espécie de ‘reforma agrária’, para democratizar a radiodifusão minimamente que fosse", pondera Brittos.

Na verdade, o decreto contraria orientações da própria Constituição, uma vez que, segundo Moyses, todo gestor é obrigado a otimizar a administração de bens públicos, como o espectro eletromagnético. Dessa forma, ele explica, "a concessão de 6 MHz pode ser contestada na Justiça, já que para prover exatamente o mesmo serviço, ainda que se escolha a alta definição, não é necessário toda essa banda".

O governo federal até ameaçou punir as emissoras que não utilizarem em sua plenitude a freqüência a elas concedida. Contudo, a vontade do Palácio do Planalto novamente bate de frente com o que reza o CBT. A legislação determina que as radiodifusoras só veiculem uma grade de programas por localidade. Entretanto, com os 6 MHz em tecnologia digital, elas poderão disponibilizar diversas opções para o telespectador, o que significa que, ao sintonizar determinado canal, o usuário poderá escolher entre um telejornal, uma novela ou um filme. Isso até poderia ser considerado um benefício, se não fosse um problema simples. "Que emissoras no Brasil têm condição de fazer multiprogramação? A maioria não consegue ocupar sequer uma grade. Com exceção da Globo, nenhuma delas produz conteúdo suficiente. Um espaço gigantesco, que poderia ser fracionado, permitindo a entrada de novas emissoras, foi entregue para que as radiodifusoras brinquem com ele. Além disso, quantas são capazes de arcar com os custos dos equipamentos para transmissão em alta definição?", questiona Gindre.

Os problemas de caráter legal deverão render alguma dor de cabeça ao governo. Na Europa, antes de se conceber o sistema de televisão digital, foi feita uma ampla discussão que culminou com a reforma das normas que regulavam o setor. Aqui, ocorreu o inverso. Por essa razão, no dia 17 de agosto o Ministério Público Federal entrou com uma ação na Justiça solicitando a anulação do decreto referente às transmissões digitais. A medida leva em conta as principais críticas formuladas pelas organizações da sociedade civil e pode alterar o cronograma já estabelecido. A Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados também cogita a idéia de apelar para o poder da Justiça. Um de seus componentes, o parlamentar Orlando Fantazzini (Psol-SP), pediu à assessoria jurídica da Casa uma análise detalhada do documento assinado em junho para apurar suas principais fragilidades. Ele reclama ainda da falta de transparência do Executivo na condução do debate sobre a escolha do padrão de TV digital. "Fizemos algumas audiências públicas na Comissão de Ciência e Tecnologia, mas o governo não ouve a sociedade civil nem o Congresso, apenas as emissoras", diz ele.

Modelo de negócios

Afinal, por que as emissoras preferem o padrão nipônico? Para responder a essa pergunta, é preciso mais uma vez falar do espectro eletromagnético. A tecnologia desenvolvida no Japão permite que a freqüência reservada a cada radiodifusora possa ser sintonizada tanto por televisores convencionais como por aparelhos de alta definição e equipamentos móveis, como celulares. "A mobilidade é o grande gancho da televisão a médio e a longo prazo. Ela fará amanhã o que o rádio já executa há muitos anos", afirma Pizani. O padrão europeu, principal concorrente do ISDB-T, ainda não tem a mesma flexibilidade. No Velho Continente, o sistema permite que haja apenas um tipo de formato na banda estipulada para cada canal. Assim, as emissoras brasileiras jamais poderiam dividir seus 6 MHz em programações com diferentes resoluções de imagem, como permite o modelo japonês.

Mas essas diferenças têm mais a ver com questões de negócios do que com motivos propriamente técnicos. Ao contrário do Brasil, onde as radiodifusoras controlam toda a cadeia, da produção à transmissão, na Europa existe uma figura chamada "operador de rede", que cuida apenas do envio de conteúdos. Se esse padrão fosse transplantado para cá, em vez de terem suas próprias antenas, as emissoras deixariam essa função a cargo de outra empresa, mas teriam de pagar pelo serviço. Por essa razão, defensores do modelo japonês dizem que o operador de rede colocaria em xeque a gratuidade da televisão aberta, uma vez que os custos de transmissão poderiam ser repassados ao consumidor.

Por outro lado, essa estrutura abriu definitivamente as portas para a produção independente na Europa, já que lá existem canais que só veiculam programas desenvolvidos por produtoras autônomas. Aqui, acontece o contrário: os independentes são sufocados, porque a maioria das redes de televisão compõe a própria grade com conteúdos concebidos em seus estúdios. "O operador de rede é a chave para quebrar a cadeia de produção. Quando ela é fragmentada, geram-se empregos, arrecadam-se mais impostos, e não se dá ao produtor de conteúdo o poder de enviar sua programação diretamente à casa dos telespectadores, sem ter de passar por nenhuma etapa subseqüente. O operador também garante a mesma qualidade de sinal para todas as emissoras. Hoje, quem possui mais dinheiro consegue um sinal melhor, chega mais longe e, portanto, tem mais audiência e poder", analisa Moyses.

A escolha do padrão europeu de TV digital, chamado DVB (Digital Video Broadcast), também assustava as emissoras de televisão porque daria impulso à entrada das empresas de telecomunicação no mercado de radiodifusão. "Elas são muito mais poderosas do ponto de vista econômico. Isso porque a maior parte de seu capital pertence a grupos estrangeiros, ao contrário das empresas de radiodifusão, que só podem ter 30% nas mãos de grupos que não sejam brasileiros. O DVB forçaria as radiodifusoras a usar a infra-estrutura das teles para transmitir seu sinal", explica Leonardo Vidigal, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Já o padrão japonês preserva o atual modelo de negócios do setor. Por isso ele é, de longe, o preferido das emissoras.

Mas existe ainda outro motivo significativo para explicar o repúdio ao operador de rede: o fortalecimento do controle do Estado e da sociedade civil sobre a programação. Vidigal faz questão de ressaltar que não se trata de censura. "Isso, no entanto, poderia impedir a emissão de conteúdos ofensivos ou discriminatórios, como aconteceu recentemente com o apresentador João Kleber (do canal RedeTV!), que saiu do ar por determinação da Justiça. O operador de rede só poderia tomar uma atitude como essa sob ordem judicial, mas a executaria sem hesitação, ao contrário das emissoras", justifica.

Indefinições

O processo de transição do sistema analógico para o digital será feito aos poucos. Ninguém precisará jogar fora os televisores que já possui. Aparelhos chamados set-top boxes farão a conversão do sinal, e o Palácio do Planalto espera vê-los comercializados a uma média de R$ 100, a fim de popularizar o equipamento. "O governo está cogitando, na questão do terminal de acesso, toda desoneração possível", disse Dilma Roussef, ministra da Casa Civil, durante a cerimônia de assinatura do decreto.

Mas o poder público não deverá estender a mão apenas aos consumidores. Na opinião do professor Valério Brittos, um financiamento oficial também poderá ser criado para ajudar as emissoras a migrar da tecnologia analógica para a digital. "Deveriam ser auxiliadas sobretudo as pequenas. Empresas de cidades menores, canais comunitários e universitários vão ter muita dificuldade se não contarem com uma linha de crédito especial", comenta ele.

Mesmo com a escolha do padrão japonês de modulação, as discussões sobre o assunto ainda vão longe. Poucos parecem ter atinado, no entanto, para a revolução cultural que essa nova tecnologia pode acarretar. Para tentar atender a questão da pluralidade de conteúdo, por exemplo, o decreto estipula a criação de quatro novos canais oficiais para a veiculação de programas que tratem basicamente de educação, cultura e cidadania, além de um específico para tornar públicos os atos do Poder Executivo. Muito pouco, perto da variedade que poderia surgir. A implementação da TV digital exigirá também uma reforma na legislação específica do setor de radiodifusão. Essa é, sem dúvida, uma boa oportunidade para definir deveres e obrigações daqueles que lidam com o mais importante veículo de comunicação da sociedade brasileira.


Modulação nacional

Desde 2004, o governo brasileiro desembolsou cerca de R$ 50 milhões para que as universidades desenvolvessem tecnologia própria para a televisão digital. Na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), pesquisadores chegaram a conceber um padrão de modulação genuinamente nacional, batizado de Sorcer. "A modulação é o que efetivamente define o sistema. Em muitos aspectos, ele é superior aos que já existem e tem um desempenho fantástico", garante Maria Cristina de Castro, uma de suas idealizadoras.

Por que então não se adota o padrão nacional? "A escolha dessa tecnologia só faria sentido se fosse acompanhada de uma política industrial e de desenvolvimento para o Brasil", responde Gustavo Gindre, do Indecs. A opção pelo Sorcer certamente reverteria em dividendos consideráveis para um país que se acostumou a exportar commodities e a importar tecnologias de alto valor agregado. Por outro lado, de nada adiantaria a escolha do padrão brasileiro se nosso parque de produção não desse conta da gigantesca demanda que está por vir. Nesse sentido, o atraso pesou na balança a favor do ISDB-T.

A rigor, o decreto presidencial assinado em junho não garante que produtos das pesquisas desenvolvidas no Brasil sejam de fato incorporados ao modelo nipônico. E não será fácil convencer os japoneses a abrir mão de sua patente. "Tenho certeza, no entanto, de que o padrão internacional não será adotado na íntegra. Apresentamos os resultados técnicos aos ministros, e não é possível que o governo ignore essa tecnologia. Por outro lado, mesmo que isso não desse em nada, os laboratórios que foram montados e as equipes treinadas com esses recursos geraram uma rede invejável em comunicação digital no Brasil", afirma Cristina. 

 

 

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