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Reflexões sobre o direito de defesa

A Constituição não está sendo respeitada

HUGO NAPOLEÃO


Hugo Napoleão / Foto: Nicola Labate

O ex-governador Hugo Napoleão do Rego Neto, ministro da Educação de 1987 a 1989, da Cultura em 1988 e das Comunicações de 1992 a 1993, esteve presente no dia 11 de maio de 2006 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra sobre o tema "O direito de defesa e a democracia".
Reproduzimos abaixo sua exposição e o debate que se seguiu a ela.

A idéia de falar sobre direito de defesa e democracia nasceu em uma das reuniões deste Conselho, quando discorri a respeito do ex-presidente Juscelino Kubitschek num momento difícil da vida brasileira. Na Grécia antiga, os cidadãos livres participavam da discussão dos problemas da cidade. Platão, Aristóteles, Políbio, Hobbes, Marx, Montesquieu e Maquiavel, entre outros, aprofundaram o tema. Hoje tem-se uma noção mais moderna da democracia como o sistema de poder em que os representantes captam a vontade da maioria, respeitando os direitos da minoria e visando o bem comum. Paulo Bonavides dá uma segura noção de que tudo advém da soberania popular, que leva às decisões finais, desde que evidentemente baseadas no pluralismo partidário, na multiplicidade de escolhas e no voto, que, em última análise, leva a mandatos temporários, respeitando-se os direitos sociais. Ele cita o que se poderia chamar de condimentos da democracia, que seriam a adoção do júri popular, da consulta popular, do orçamento participativo, das emendas participativas, da ação popular, do referendo e do plebiscito. Já Dalmo Dallari entende a democracia como a expressão do respeito ao interesse público. E, para Norberto Bobbio, a democracia é o regime que se contrapõe a todos os que são de origem totalitária e autoritária.

A revista da Associação de Diplomatas Brasileiros traz uma magnífica entrevista com David Fletcher, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), que se aplica ao problema recente entre Bolívia e Brasil. Ele diz não acreditar em um novo rumo político na América Latina, com a ascensão de nomes ligados a movimentos populares, como Hugo Chávez, na Venezuela, e Evo Morales, na Bolívia. Essa "nova esquerda" nada mais é do que a velha esquerda dos anos 1960 que migrou para o centro. Os governos do Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia e talvez Peru e Equador não devem ser considerados de esquerda, no sentido estrito, somente por estarem ligados a movimentos populares. Essa entrevista também nos leva a refletir sobre o caso da Petrobras, na Bolívia. A meu ver, o que aconteceu foi uma preferência do Executivo brasileiro por questões ideológicas, colocando-as acima dos interesses nacionais. Visou-se mais um teatro de pseudo-esquerda, para o efeito de se dizer que os interesses nacionais seriam preservados. Não seriam. Houve uma ação malévola, um retrocesso, uma ruptura de contratos internacionais assinados. São fatos de alcance mundial que desrespeitaram o país, constituindo assunto para a Corte Internacional de Haia.

Voltando a Norberto Bobbio, para chegar ao direito de defesa, ele considerava importante que um número cada vez maior de cidadãos participasse do processo democrático e que houvesse regras e regulamentos, como a Constituição, e leis para estabelecer o ordenamento do Estado. Mais importante do que tudo isso, porém, era dar ao cidadão o direito de escolha. Sobre isso, diz ele, baseou-se o Estado liberal, o Estado de direito sinônimo da democracia, com o respeito às liberdades, aos direitos individuais de associação, de opinião e evidentemente de defesa. Direito de defesa que se iniciou na Revolução Francesa, em 1789, com uma declaração ratificada pela Assembléia do país, e foi seguido depois pelo movimento de independência dos Estados Unidos.

A respeito dessa situação, aliás, é preciso dizer que se passaram 160 anos, até que em 1948 a Assembléia Geral das Nações Unidas homologou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sobre a Revolução Francesa, o ex-presidente Valéry Giscard d’Estaing tem um livro interessante, O Poder da Democracia, em que diz que a França tem dois troncos, o da história das conquistas e o das reformas. Sem dúvida, a Revolução Francesa foi a grande reforma que teve origem nos sentimentos de liberdade, igualdade e fraternidade.

E, no Brasil, o direito de defesa, como vai? Nos tempos difíceis da revolução de 1964, fui advogado do ex-presidente Juscelino Kubitschek. No dia 13 de dezembro de 1968 tinha sido decretado o ato institucional nº 5 (AI-5). Juscelino começou a receber intimações da Comissão Geral de Investigações e constituiu então como seus procuradores os advogados Heráclito Fontoura Sobral Pinto, Noé Azevedo, Cândido de Oliveira Neto, Antonio Evaristo de Moraes Filho e Hugo Napoleão do Rego Neto. Na defesa prévia, a conselho de um amigo, coloquei este texto: "Um presidente do Conselho de Ministros viu-se já forçado a apresentar nesta tribuna o inventário de seus bens. Creio que não serei obrigado também a isso. Não se atiram infundadamente proposições dessa ordem contra um homem perfeitamente conhecido no país e que não tem o menor receio de que se proceda à mais rigorosa autópsia do seu passado. Luís Alves de Lima e Silva". Foram palavras proferidas pelo duque de Caxias no Senado do Império, na sessão de 19 de agosto de 1861, quando foi vítima de processos. No dia em que levei os documentos ao ministério, o último para sua apresentação, o prédio estava fechado, pois era uma espécie de ponto facultativo para reorganização interna. A muito custo consegui falar com o secretário-geral, Paulo Fernandes Vieira, que me passou um recibo, com estes termos: "Recebi do doutor Hugo Napoleão Neto um envelope fechado, o qual declara conter um requerimento de informação e 30 documentos endereçados ao excelentíssimo senhor ministro da Justiça pelo doutor Cândido de Oliveira Neto, como advogado do ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira".

O presidente tinha sido preso, inicialmente no Forte São Gonçalo, depois em prisão domiciliar, na Avenida Atlântica. Ao lado moravam Tancredo Neves e Magalhães Pinto. Ele recebia intimações e conversava com os advogados somente em presença de um coronel do exército. Para que ele pudesse falar a sós com os profissionais, fui chamado pela família, mas entrei como se fosse enfermeiro. Conversávamos e eu levava as informações a Evaristo de Moraes Filho, com quem me reunia na rua, disfarçadamente. Voltava ao apartamento, sempre como enfermeiro, a título de aplicar uma injeção em dona Sarah Kubitschek. Até hoje não sei aplicar injeção. Um dia alguém avisou que o Dops [Departamento de Ordem Política e Social] havia chegado. Fui empurrado para dentro de um armário onde me trancaram no meio das roupas. Mas não fui preso.

Depois de dificuldades como essas, que tantos presos políticos enfrentaram durante o período de exceção, eu pergunto: e hoje, como vai o direito de defesa no Brasil? A Constituição brasileira, em apenas quatro incisos do artigo 5º, estabelece: "Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (inciso LIV); "Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (inciso LV); "São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos" (inciso LVI); e "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (inciso LVII).

Gostaria de dizer que, não obstante essas afirmações, hoje as empresas são submetidas a um regime sui generis: a penhora on-line. De repente, ela imobiliza recursos das empresas, às vezes pequenas e médias, que têm de pagar seus funcionários, seus impostos, suas obrigações, suas dívidas, e ficam manietadas. O mesmo acontece com pessoas físicas, muitas vezes aposentados que também têm seus recursos no banco penhorados on-line, imobilizados, engessados, sem que deles possam fazer uso. Aliás, Ives Gandra da Silva Martins, num artigo publicado no "Jornal do Brasil", condena essa prática e diz que parece que voltamos àquele Estado totalitário previsto por George Orwell, o Big Brother do livro 1984. A fúria arrecadatória do governo tira direitos e dificilmente permite a defesa. As empresas com recursos penhorados on-line demoram às vezes de seis a oito meses para se libertar.

Conheço um caso em que se obtiveram provas por meios ilícitos. Para fazer a denúncia, o Ministério Público Federal, sabendo que as provas eram ilícitas, expôs os indiciados na imprensa. Lembro aqui aquela fábula em que o juiz aplica uma pena a um difamador dizendo-lhe: "Arranje um frango, vá até o riacho, depene-o e volte aqui". Ele retorna com o frango depenado. E o juiz: "Agora volte ao riacho, recolha as penas e coloque-as no lugar". "Ah, isso eu não posso." "Pois veja a extensão do mal que você causou."

Um livro recente, A Era do Escândalo, do jornalista Mário Rosa, revela como algumas pessoas sofreram com decisões que depois foram revistas e mostra como conseguir superar isso. Nem todos são casos de acusações. Há, por exemplo, o acidente da TAM, em Congonhas, o caso de Eduardo Jorge Caldas Pereira e do advogado Carlos de Almeida Castro, de Brasília. A página 102 desse livro diz: "Respeito muito o trabalho do Ministério Público, é uma pena que alguns de seus representantes estejam usando de forma precipitada o poder que lhes foi conferido pela Constituição de 1988. Existe um tipo de procurador que gosta tanto da mídia que deixa o caso de lado quando o tema não repercute mais. Segue o ritmo ditado pela voracidade da imprensa". Para os advogados é uma festa. Esses procuradores, para atrair os holofotes, apresentam denúncias que não deviam, têm pressa em fazer diligências, tudo ditado pelo furor dos jornalistas. Ao final fazem um trabalho péssimo. Quem trabalha bem é o procurador que não se manifesta; tenho vários processos que seriam escandalosos, mas os procuradores preferiram agir em surdina, apresentando um trabalho técnico bem feito. Em geral, os casos que estão na mídia exigem mais esforço por causa do desgaste e da exposição do cliente, mas tecnicamente são malfeitos. Aliás, quando preciso obter informações sobre o Ministério Público, busco a imprensa, que entra em contato com eles.

Existe uma outra situação muito grave, apontada pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, e pelo presidente da OAB, Secção de São Paulo, Flávio D’Urso. Eles se queixaram da invasão feita pela Polícia Federal em escritórios de advocacia. Conheço um caso, no Rio de Janeiro, de um associado que tinha como cliente um advogado cujo escritório também foi invadido e de onde levaram não apenas o objeto da denúncia ou da investigação, mas também arquivos completos de outros clientes que não tinham nada a ver com aquilo. E o pior é que o Ministério Público requereu e o juiz autorizou a escuta telefônica. Só que, em vez de se restringirem ao telefone do próprio advogado envolvido na questão, ouviram a conversa de outros advogados, de estagiários, de funcionários, invadindo searas que não lhes pertenciam. Isso tem de acabar, são abusos. Vejam como o direito de defesa no Brasil é tênue, como não está sendo respeitada a Constituição.

São coisas que assustam e é por isso que, para finalizar, faço duas citações. Uma delas de uma aula de Ribeiro da Costa, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o papel do advogado: "Só uma luz nessa sombra, nessa treva, brilha intensa no seio dos autos. É a voz da defesa, a palavra candente do advogado, sua lógica, sua dedicação e seu cabedal de estudo, de análise, de dialética. Onde for ausente sua palavra não haverá justiça, nem lei, nem liberdade, nem honra, nem vida". E Winston Churchill, numa sessão da Câmara dos Comuns, proclamou: "Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeitos. Tem-se dito que é a pior forma de governo, salvo todas as demais que têm sido experimentadas de tempos em tempos".

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM – O próprio processo democrático pode ser um caminho para a ditadura. Isso aconteceu na Alemanha de Weimar, quando em 1933 Adolf Hitler conseguiu, com o partido nazista e imensa maioria, o poder. Levou a Alemanha a um momento de glória em 1938 e 1939 e a uma derrota fragorosa em 1945. Lembro o trecho de um livro, depois transformado em filme, A Queda, em que alguém fala para o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, que o povo de Berlim estava sofrendo e os russos já estavam na cidade. Ele responde: "O povo alemão escolheu esse caminho". De fato, o povo havia feito a opção pelo nazismo, então tinha de sofrer. Na Venezuela e na Bolívia de hoje, com o processo democrático elegeram-se Hugo Chávez e Evo Morales. O presidente venezuelano já está a caminho da ditadura, pois conseguiu uma reforma constitucional e acha-se praticamente sem oposição; Evo Morales ainda está iniciando esse processo.
Outra reflexão: como justificar uma democracia consolidada no Brasil, quando se tem um clima de impunidade generalizada, seja na política, seja no crime organizado? E o constante desrespeito à Constituição demonstrado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), apoiado com recursos do governo federal e com a simpatia do presidente da República? A terceira reflexão é sobre a questão constitucional. A Carta brasileira permite que idiossincrasias beneficiem o bandido e o político corruptos. Lembro-me de que nos anos 1980 o senador Josafá Marinho, professor de direito constitucional, dizia, numa aula em Salvador sobre questões constitucionais: "Se essa Constituição que virá (a de 1988) for contra o regime militar, ou seja, se for montada para se opor ao que aconteceu na ditadura, ela tenderá ao fracasso". Foi exatamente o que aconteceu: ela engessou o país. E, para encerrar, a questão do Ministério Público. Lembro-me de um procurador que parecia o corcunda de Notre Dame em escala aumentada, Luiz Francisco de Souza, filiado ao PT. Na época de Fernando Henrique Cardoso, ele vivia atacando o governo. Agora desapareceu da mídia, ninguém o acha mais. Mas ai de nós se não fosse o Ministério Público, este país estaria entregue a uma bagunça mais generalizada ainda. E quero lembrar que o ex-ministro José Dirceu, chefe de uma gangue organizada, quis tapar a boca do Ministério Público e da imprensa.

HUGO NAPOLEÃO – A Constituição de 1988 foi natimorta, porque pouco tempo depois caiu o Muro de Berlim e os conceitos "socializantes" nela inseridos desabaram. Tanto que já temos mais de 50 emendas. A Constituição norte-americana, com 200 anos, tem poucas emendas. Em relação ao Ministério Público, nem o próprio Carlos de Almeida Castro generaliza, ele diz que o respeita muito enquanto instituição. É nesse sentido, literalmente, que devemos falar dele, sem nenhum desrespeito à instituição. Ele deve fiscalizar o cumprimento da lei e, quando houver inocência, que se peça o arquivamento e não se façam denúncias sob a luz dos holofotes.

CLÁUDIO CONTADOR – Em relação às invasões de escritórios, no Rio de Janeiro também temos esse problema, algumas delas chegam ao ponto de verdadeira caricatura. Vou citar um caso de que tive conhecimento: um colega nosso, economista, que foi diretor do Banco Central, teve seu escritório invadido. Logo na entrada havia um computador ligado e o fundo de tela era a foto de um sobrinho ou filho da secretária, uma criança pequenininha, de perninhas cruzadas, que estava nua. Imediatamente foi taxado de pedofilia. Como prova, levaram o monitor, como se isso servisse para alguma coisa. São fatos estranhos que estão ocorrendo no Brasil. Concordo que a liberdade está sob risco. Na primeira parte de sua apresentação, você falou sobre o conceito de democracia. É o conceito ocidental, pois os islâmicos não têm a mesma visão. Para eles a tradição é muito mais forte que a democracia, a maioria dos países islâmicos não têm sequer Constituição. Sua Constituição é a tradição, é o Alcorão.

JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Hugo Napoleão fez uma referência a Eric Arthur Blair, um indiano cujo codinome era George Orwell, falava do 1984, que, infelizmente, está chegando ao Brasil. A Constituição portuguesa proíbe que o cidadão seja identificado por um número, é uma forma de protegê-lo. No Brasil, um projeto do senador Pedro Simon estabeleceu a necessidade de que cada brasileiro tivesse um número agregado à sua vida e isso se transformou em lei, sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Graças a Deus ela ainda não foi regulamentada.
Eu também penso que democracia não é um sistema político, é meramente um método de escolha. Os gregos iam para a ágora e sentiam necessidade de uma verdade para construir alguma coisa. Os céticos questionavam o óbvio e daí se contrabalançaram com aqueles que acreditavam que a verdade era dita por Deus diretamente ao profeta ou a um oráculo. Daí a origem divina do poder. A segunda origem do poder é a ágora. Então, na votação que os homens livres faziam naquela ocasião (as mulheres e os escravos não participavam), aqueles que perdiam pegavam suas ostras – era com elas que votavam – e iam para o ostracismo, coisa que foi copiada pelo regime militar, que obrigava algumas pessoas a ficar oito anos afastadas da participação política.
O general Golbery do Couto e Silva, quando recebia alguém, tinha sobre a mesa uma pasta vazia com o nome do visitante. Atendia a pessoa, que ficava imaginando: o que será que ele tem a meu respeito naquela pasta? Se um elefante é paralisado por um círculo, imagine um círculo de palavras que definem uma pessoa. Com os cadastros existentes nas empresas que processam cartões de crédito é possível fazer perfis psicológicos perfeitos das pessoas, saber se elas têm propensão a engordar, se gostam de loiras ou de morenas, para onde viajam; existe um controle total de tudo. Ou seja, estamos presos dentro de uma ditadura digital, queiramos ou não.
Nos Estados Unidos há o Freedom of Information Act e o Fair Credit Reporting Act. É uma legislação fantástica, quando você vai para lá perguntam quantos dólares tem, não importa quanto, o que não pode é mentir. Se mentir, está perdido. Em uma loja, se lhe negarem crédito, são obrigados a dizer por quê, que informações receberam para não concedê-lo. Evidentemente, a queda das torres gêmeas afetou tudo isso, devem existir nos Estados Unidos alguns computadores que controlam todo e qualquer e-mail enviado. Com o uso de algumas palavras-chave, o IP [Internet Protocol] é identificado e a pessoa é localizada. Em São Paulo, na Santa Ifigênia, podem-se comprar informações sobre o imposto de renda de qualquer pessoa, à vontade. Pior, hoje se faz alarde no Brasil de que temos uma eleição totalmente informatizada, e ai de quem questionar a legitimidade e a legalidade das urnas, elas não falham. Os hackers entram na Nasa, mas nas urnas não. E os sacerdotes que trabalham com essas máquinas são capazes de controlar a porta de entrada da democracia. Se quiserem que alguém seja eleito, ele será eleito. Se não quiserem, não será. Para que as eleições não sejam totalmente "inauditáveis", há a necessidade de imprimir o voto, que ficaria guardado dentro da urna. Um grupo de professores da USP pleiteia esse processo de transparência e segurança das eleições há muito tempo. José Dirceu, Nelson Jobim e Eduardo Azeredo, que foi colega meu na IBM e conhece bem informática, vetaram isso. Você está preocupado com o direito de defesa, mas vamos chegar a um ponto em que não teremos direito algum.

VICENTE MAROTTA RANGEL – Convivi com algumas das personalidades citadas pelo conferencista. Em São Paulo, com os professores Gama e Silva, Dalmo Dallari e outros colegas. Em relação ao conceito de democracia, destaco a importância, como sublinha Georges Burdeau em famoso opúsculo sobre o tema, da distinção entre democracia formal e substantiva. Em verdade, temos tido no Brasil, em grande parte, apenas a formal, a que resulta da coleta de votos e, em conseqüência, como a afirmação de que tal candidato ou partido é o vencedor. Não temos tido até hoje a democracia substantiva, aquela que realmente resulta da participação efetiva da comunidade, sobretudo dos necessitados, daqueles que exigem ser compreendidos e apoiados para poder ascender também ao poder decisório. Evoco essas distinções para mencionar um fato curioso. Também conheci Juscelino Kubitschek, mas numa circunstância diferente da mencionada aqui. Foi num jantar em homenagem a ele na Universidade de Columbia, em Nova York, onde fui visitante em 1973. Para minha surpresa, fui colocado ao lado do ex-presidente e por mais de uma hora tive o privilégio de conversar com ele e admirar sua cordialidade, simpatia e a imparcialidade com que se referia aos acontecimentos de nossa pátria. Nenhuma palavra de censura, de angústia, de reprovação de quem teria o direito de queixar-se, de reclamar.

ADIB DOMINGOS JATENE – O palestrante se referiu à Revolução Francesa, cujo lema era liberdade, igualdade e fraternidade. Hoje, mais de 200 anos depois, o mundo nunca foi tão desigual, entre os países e dentro de cada um deles. A fraternidade cedeu lugar ao egoísmo e ao interesse pessoal e dos grupos. A liberdade não faz nenhum sentido para quem tem dificuldade para alimentar sua família. É nesse clima que os aventureiros, os atrevidos, utilizam o espaço democrático para identificar adversários, conquistar aliados, compor maioria e ganhar eleição. O que preocupa é que suas campanhas e seus movimentos são mantidos pela elite econômica e financeira. Sempre pensei que o país só poderia resolver seus problemas com a ajuda das elites – econômica, financeira e intelectual –, que têm capacidade de formulação e que podem minimizar os problemas da pobreza. Mas nos cargos públicos que ocupei aprendi que quem convive com a riqueza tem dificuldade para entender a pobreza. Tanto que o desenvolvimento científico e tecnológico cresce no mundo e a pobreza também aumenta. A única coisa que me deixa um pouco mais tranqüilo é que a responsabilidade social das empresas está maior, elas se mostram cada vez mais preocupadas com a pobreza. É esse o caminho para diminuir as desigualdades, o que reduziria o desemprego e a violência. A tecnologia favorece o desemprego estrutural e não resolve os problemas da pobreza, que se auto-alimenta. Tenho muita preocupação de que os regimes democráticos em países com grande desigualdade levem exatamente ao que estamos vendo hoje na Venezuela e na Bolívia. São pessoas despreparadas para trazer equilíbrio à sociedade.

MUSSALÉM – A tecnologia realmente cria o desemprego estrutural e produz um novo desemprego que é o da exclusão. Ela exclui as pessoas do processo produtivo.

JATENE – E somente a elite pode equacionar esse problema, desde que se preocupe com ele.

EDUARDO SILVA – Atualmente a democracia não é tão difícil de compreender. O que está prejudicando o país é outra área. Nossa Justiça está paralisada, tanto a civil quanto a criminal. A população parece já não acreditar na ação da Justiça. Ela precisa se modernizar, porque somente assim a democracia será acessível a toda a população.

MÁRIO AMATO – A realidade brasileira se deteriorou de tal forma que a população não possui os valores e os princípios básicos da educação e da família. Adib Jatene falou sobre emprego. Vi numa estatística recente que a taxa de 1% de desemprego numa cidade dos Estados Unidos significou 568 crimes. Então como querer que o povo tenha princípios básicos? Emprego é muito importante. A tecnologia, que tanto apreciamos, reduziu-o. O Brasil passa por uma fase muito difícil, basta ver o que está acontecendo com a escola, com a Justiça, que não funciona. Conheço um caso que está há 22 anos no Judiciário e não se resolve, porque os recursos são de tal ordem que não se chega a resultado nenhum.

FARIA LIMA – É que a tecnologia não chegou à Justiça.

JATENE – Ouvi no rádio que 167 empregados da antiga Companhia Mogiana moveram uma ação trabalhista em 1967. Ganharam agora, mas há somente cinco sobreviventes.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – A palestra de Hugo Napoleão me fez lembrar algumas afirmações que traduzem certo desencanto com o momento que vivemos. O ministro Marco Aurélio de Mello referiu-se a um país de faz-de-conta. Há muito tempo venho alimentando a noção cada vez mais cristalizada de que vivemos de fato num mundo de faz-de-conta. Faz-de-conta porque, como disse Marotta Rangel, somos uma democracia apenas formal e, mesmo assim, nem sempre com fidelidade. E esse aspecto formal tem servido muitas vezes como manto para cobrir atividades antidemocráticas, para esconder a corrupção e justificar desvios, sempre impropriamente em nome da democracia. Faz de conta que os direitos individuais escritos na Constituição são respeitados, faz de conta que os poderes do Estado, que não considero poderes, mas funções, são independentes e harmônicos. Não são. Vejam, por exemplo, a indicação de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Quem faz a escolha é o chefe do Executivo, o candidato é sabatinado pelo Senado, do Poder Legislativo, e o Judiciário fica apenas com a pompa e circunstância de dar-lhe posse. Onde está a independência? Outro faz-de-conta é o tipo de estrutura político-eleitoral em que se acredita que os eleitores são efetivamente representados pelos eleitos. Não são, a representação não existe porque nenhum dos eleitos presta contas de seu desempenho no mandato que lhe foi outorgado. E, finalmente, faz de conta que temos partidos, quando o que temos na realidade são legendas eleitorais, ávidas por acordos e negócios quase sempre ilícitos e injustificáveis.

JOSEF BARAT – A democracia pressupõe a existência de instituições fortes e duradouras. Sem dúvida, houve um grande avanço no Brasil quanto ao fortalecimento das instituições, o que nos diferencia de outros países da América do Sul. No entanto, vivemos uma contradição. De um lado instituições que se fortalecem e de outro lado um processo contínuo de desgaste, de desmoralização, quase uma sabotagem da própria democracia. Como é que isso se resolve num país com a dimensão e a importância que o Brasil tem no quadro mundial? Como é que a democracia se consolida com essas contradições?

SAMUEL PFROMM NETTO – A história nos ensina que regimes e governos há que caem de podres, outros desmoronam por força de sublevação popular, pelo poder das armas ou por intervenção externa. Mas há também regimes e governos do tipo joão-teimoso, os que não caem e se mantêm ao longo de muitas décadas. O cubano Armando Valladares há tempos publicou um livro que dá a justa medida da tragédia de seu país. Chama-se Contra Toda Esperança. À luz do que há de estarrecedor, de sombrio e de sem-vergonhice despudorada, seria o caso de experimentarmos em relação ao Brasil de hoje esse sentimento de Valladares?

ZEVI GHIVELDER – Também tive o privilégio de conviver com Juscelino e jamais ouvi dele uma palavra má a respeito de qualquer político, de qualquer pessoa. Mais do que isso, nenhuma nostalgia do poder.

HUGO NAPOLEÃO – Gostaria ainda de abordar a questão dos partidos políticos. Penso que há um número excessivo deles e é preciso usar a cláusula de barreira e deixá-los em quatro, cinco, seis no máximo.

 

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