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Hora de participar

Conselhos populares, uma conquista ainda pouco conhecida

GUSTAVO PRUDENTE


Reunião do Conselho de Saúde de Jundiaí
Foto: SMG Jundiaí

Desde o fim da ditadura militar, quando expressar opiniões próprias deixou de ser perigoso, falar de política no Brasil tornou-se um constante ruminar sobre a corrupção e a inoperância dos governantes. A maior parte das pessoas, desde então, sentiu-se livre para debater suas teorias sobre como "mudar o país". "Tem de investir em educação", diz um. "É preciso fortalecer a polícia", fala outro.

Ainda assim, essas "conversas de bar" não passam na maioria das vezes de mero bate-papo. A opinião se perde no ar, enfraquecida pela incapacidade de atingir a esfera pública, supostamente restrita a políticos e militantes, ou pelo desconhecimento de como fazê-lo.

Nos últimos anos, porém, ganha cada vez mais força e velocidade um movimento que busca abrir espaço para quem quer discutir as questões sociais, e que começou a se configurar justamente no fim do regime militar. Amparados pela Constituição de 1988, ativistas sociais de diversas áreas passaram a lutar pela "democracia participativa", um conceito que prevê a presença em massa da população não apenas "pedindo" ao Estado aquilo de que precisa, mas formulando e decidindo as políticas públicas do país.

Desse movimento surgiram diversos mecanismos, como assembléias populares, fóruns, conferências, audiências públicas, orçamentos participativos e, especialmente, conselhos de políticas públicas. Espaços em que a opinião – ao menos em teoria – não precisa mais se perder no vazio, mas pode reverter em diretrizes e ações concretas, fazendo do cidadão um participante direto do poder.

"Uma decisão de várias pessoas costuma ser melhor que a de uma só", afirma Luiz José de Souza, técnico de telecomunicações aposentado e morador de um bairro periférico de São Paulo. Ele é um dos líderes da União dos Movimentos Populares de Saúde de São Paulo e participa como representante em três conselhos da cidade: um que gerencia a Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima à sua casa, outro que administra as mais de 20 UBSs de seu distrito, e o Conselho Municipal de Saúde. Nas reuniões em que toma parte, decide-se, por exemplo, se um mamógrafo recém-comprado pela prefeitura deve ser alocado num hospital ou numa UBS mais acessível para todos do distrito. "É um canal de diálogo: o governo explica por que não pode fazer certas coisas e a sociedade mostra por que tem de ser feito. Aí se chega a um meio-termo", diz.

Assim como acontece na área da saúde, questões sobre meio ambiente, educação, direitos da criança e do adolescente, da mulher, do negro e muitas outras estão sendo discutidas em conselhos específicos em todo o Brasil. Criados por lei e vinculados ao Poder Executivo (por meio de secretarias municipais e estaduais ou ministérios), esses espaços públicos devem contar com um mínimo de 50% de integrantes da sociedade civil. Para a representação em conselhos municipais, estaduais ou nacionais, elege-se não uma pessoa, mas uma instituição – organizações não-governamentais (ONGs), movimentos sociais, entidades de classe, etc. –, que escolhe, então, seu representante. Quando são locais (por exemplo, o conselho de uma Unidade Básica de Saúde), a pessoa indicada não precisa necessariamente estar vinculada a alguma entidade. Nas reuniões, os representantes dos diversos setores sociais decidem sobre políticas públicas e orçamentos (quando o conselho é deliberativo) ou dão sugestões e pareceres sobre projetos do governo (caso dos conselhos consultivos).

Espaço de polêmicas

O número e a variedade de conselhos, cada um com regras específicas, são cada vez maiores, e grande parte dos estudiosos e participantes desses espaços concorda com a importância de sua existência. Ainda assim, "há um balanço negativo da atuação dos conselhos nestes últimos dez anos", afirma Raquel Raichelis, professora de pós-graduação em serviço social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Segundo ela, a expectativa era que substituíssem os movimentos sociais como espaços de articulação e pressão política, o que não aconteceu. Eles, na verdade, tornaram-se um canal oficial e institucionalizado de negociação, mas que não substitui a luta dos movimentos de base. "Os conselhos funcionam bem onde a sociedade civil é organizada – ou seja, onde as pessoas sabem que podem chamar ‘a turma’, caso não sejam ouvidas ou respeitadas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), por exemplo, senta para negociar, mas também é capaz de fazer uma marcha para cobrar o cumprimento do acordo", afirma Silvio Caccia Bava, diretor do Instituto Pólis, ONG paulistana dedicada ao estudo e à formulação de políticas públicas.

A verdade é que os conselhos têm dado motivo a várias polêmicas, entre as quais está o fato de que, apesar de serem anunciados como espaços destinados à participação popular, continuam praticamente desconhecidos de quem não tem uma atuação direta na política ou no terceiro setor. Pouca gente sabe que as reuniões dos conselhos, dos locais aos nacionais, são abertas a todas as pessoas que queiram participar – ainda que não se tenha direito a voto. No caso de certos conselhos municipais, qualquer cidadão pode inclusive votar em seus representantes, mas esse processo é pouco conhecido. "O único espaço de divulgação dos conselhos é o ‘Diário Oficial’, que ninguém lê", diz Orlando Alves dos Santos Junior, diretor da ONG Fase – Solidariedade e Educação e um dos organizadores do livro Governança Democrática e Poder Local – A Experiência dos Conselhos Municipais no Brasil. Mesmo nos sites dos governos e de suas secretarias, freqüentemente é difícil encontrar informações sobre o funcionamento dos conselhos ou mesmo sobre sua existência.

A falta de uma cultura de participação política também propicia o desconhecimento sobre esses espaços. "Nossa sociedade é acomodada – sempre esperou que decidissem por ela. As pessoas precisam exercer sua cidadania. Vivemos num país democrático, com canais de participação, e todos podem contribuir", afirma Luiz de Souza. A seu ver, é grande o número de pessoas que sabe da existência dos conselhos, o envolvimento é que é pequeno. "São 15 anos de conselhos contra 500 anos de cultura de não-participação", avalia Maria da Glória Gohn, professora de pós-graduação em educação na Universidade Uninove, em São Paulo, e autora do livro Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica.

"O problema é que a cidadania dificilmente se desenvolve sem articulação, que acontece por meio de movimentos sociais e ONGs", afirma Rubens Naves, presidente da Fundação Abrinq, entidade que faz parte dos conselhos municipal e estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente em São Paulo, além de ter assento no conselho nacional. E o Brasil ainda é deficiente em termos de articulação, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Como lembra Orlando Alves, apenas 27% dos brasileiros admitem fazer parte de alguma organização social, aí incluídos os grupos religiosos.

Sem maniqueísmos

Longe dos olhos da população, os conselhos ganham um papel democrático relativo ou apenas marqueteiro. Ou seja, podem servir para que determinado governo legitime suas ações como democráticas, na medida em que são aprovadas por um conselho formado por "representantes da sociedade civil", os quais, aliás, grande parte da sociedade civil nem sabe quem são. "Quem vai à reunião de condôminos no próprio prédio onde mora? Se você não participa, o síndico deita e rola. Começa por aí", afirma Pedro Paulo Martoni Branco, economista e diretor do Instituto Via Pública, em São Paulo, entidade dedicada ao desenvolvimento da gestão pública.

"Não cabe mais aquele discurso maniqueísta do governo vilão e da sociedade civil boazinha. Essa visão idílica da sociedade civil como um lugar irmanado, em que as pessoas estão voltadas para objetivos comuns, é balela. Sociedade civil é o lugar das classes sociais e das disputas", diz Raquel Raichelis. Segundo ela, há entidades que querem participar dos conselhos para obter informações privilegiadas e ter acesso a lobbies políticos – ou seja, motivações bem menos "nobres" que as imaginadas para esses espaços.

No âmbito do poder público, a situação não é muito diferente. "Alguns governantes manipulam e influenciam os conselhos", afirma Martoni Branco. Entre os estudiosos e conselheiros, as críticas referem-se ao fato de que alguns gestores públicos não dão real liberdade aos conselhos – determinam que o presidente seja sempre indicado pelo poder público, por exemplo, ou não respeitam as deliberações tomadas nas reuniões. Em outros casos, os representantes da sociedade civil são seduzidos pela oferta de cargos comissionados após o fim do mandato ou de outras vantagens pessoais. Há também o caso de entidades que temem entrar em conflito com o governo por depender de verbas públicas para sobreviver.

Por fim, existem governantes que desmoralizam os conselhos de diversas formas: enviam pautas para decisão "urgente", de modo que os representantes não tenham tempo de buscar informações e debater o assunto, levando-os a seguir a orientação do governo por não ter outra alternativa; não oferecem recursos ou um espaço físico adequado para seu funcionamento; marcam reuniões em horários comerciais e em locais de difícil acesso. "Aos governantes não interessa a partilha do poder", diz Caccia Bava, do Instituto Pólis.

Conquistas

Nos últimos anos, os conselhos têm se multiplicado, e existem cerca de 28 mil pelo país. Segundo todos os entrevistados por Problemas Brasileiros, a existência desses espaços, apesar dos problemas, é extremamente positiva. "É algo que veio para ficar. Não são modismos", afirma a professora Maria da Glória. Daí a importância da participação da população: eles estão crescendo, mas ainda são dominados por uma "elite política" formada por membros do poder público e algumas lideranças de movimentos populares e do terceiro setor, que nem sempre prestam contas de suas ações à população que representam.

A "elite política", no entanto, tem legitimidade, pois em muitos casos é composta pelas próprias pessoas e instituições que lutaram pela existência dos conselhos e que trabalham há anos pelo desenvolvimento desse espaço de atuação – esteja ele no campo da saúde, do meio ambiente, da educação ou dos direitos humanos. São integrantes de movimentos sociais e populares, entidades sem fins lucrativos e empresas socialmente responsáveis, intelectuais e pesquisadores, personalidades da mídia, entre outros. O próprio poder público por vezes nomeia representantes que são especialistas ou militantes naquela área específica. "O conselho tem todas as ideologias políticas, mas na hora das decisões elas ficam de fora", afirma Agostinho Moretti, referindo-se ao Conselho Municipal de Saúde de Jundiaí (SP), do qual participa como representante dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).

Apesar das dificuldades, as conquistas dos conselhos não são poucas. "Aprovamos o Plano de Políticas Públicas para Mulheres no final de 2004. Além disso, montamos um comitê de monitoramento com indicadores das principais ações desse plano – temos um site em que cada ministério coloca dados das providências que está tomando", afirma Lia Zanota, representante da Rede Nacional Feminista de Saúde, com sede em Belo Horizonte, no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). "Em 2004, reunimos 120 mil mulheres em nossa primeira conferência nacional. E não é só: neste governo, conseguimos criar a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com status de ministério, que era uma reivindicação antiga", afirma Maria Laura Sales Pinheiro, representante desse órgão.

"As maiores lutas sempre partem da sociedade civil, mas sem o governo não se aprova nada", diz Terezinha de Fátima Bitencourt, presidente do Conselho Estadual de Assistência Social do Paraná até maio deste ano, e representante da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Juntamente com outros conselhos estaduais, o do Paraná está engajado na implementação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), semelhante ao SUS, que irá estender os serviços da área a todos os brasileiros.

Os conselhos municipais têm a vantagem de estar mais próximos da realidade local, e por isso podem formular ações mais concretas. Em Jundiaí, o estabelecimento de convênios para a instalação de um serviço cardiológico na cidade começou por iniciativa do Conselho de Saúde. Segundo Agostinho Moretti, a instância é "o grande canal de inclusão social dos usuários do SUS no sistema, e se ainda não alcançou seus objetivos, está a caminho disso".

Debate ampliado

"A distância entre o papel dos conselhos e os resultados alcançados é abissal, mas eles são muito melhores que o mecanismo tecnocrata tradicional", afirma Martoni Branco. Além de ampliar a participação da sociedade civil, estudiosos e integrantes de conselhos apontam outros atrativos desses espaços, como a possibilidade de concentrar diferentes setores da sociedade na discussão de problemas e soluções para uma determinada área, o que ajuda a qualificar o debate sobre as questões sociais.

O Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI), por exemplo, ampliou seu leque de discussões. "Até poucos anos atrás, a Organização das Nações Unidas (ONU) via o idoso apenas pelo prisma da saúde, mas ele tem de ser compreendido em sua diversidade, pois quer viajar, trabalhar, casar, etc.", afirma Perly Cipriano, representante do poder público e presidente do conselho. A instância, criada em 2002, conta com a participação, por exemplo, dos Ministérios do Esporte, da Cultura e da Educação. Em 2003, conseguiu a aprovação do Estatuto do Idoso e tem trabalhado em projetos como o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Pessoa Idosa e o Indicador Social da Pessoa Idosa. "Em janeiro de 2006, reunimos gente do Brasil inteiro em Aparecida do Norte (SP) para protestar contra o fato de a aposentadoria não receber um aumento equivalente ao do salário mínimo", diz Geraldo Adão Santos, representante da Confederação Brasileira de Aposentados, Pensionistas e Idosos (Cobap) no conselho.

A recente criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) é outro exemplo. Teoricamente uma pauta para os conselhos de educação, talvez não tivesse surgido sem a pressão direta do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). "Há um número muito grande de conselhos, o que pode fragmentar as ações, e por isso é preciso articular as atividades. O Conanda e o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) estão trabalhando juntos, por exemplo, para aprovar um Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária", diz José Fernando da Silva, presidente do Conanda e representante da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong).

Os conselhos, além disso, constituem espaços permanentes de diálogo com o poder público, o que significa que não acabam depois que uma determinada reivindicação é alcançada – como a desapropriação de um terreno para famílias de sem-terra ou a ampliação do número de vagas numa escola. Durante todo o ano, são discutidas questões como reforma agrária, habitação e ensino público.

Segundo Vanderlei Siraque, deputado estadual em São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e autor do livro Controle Social da Função Administrativa do Estado: Possibilidades e Limites na Constituição de 1988, os conselhos já são um avanço, mas ainda são necessárias outras formas de parceria entre sociedade civil e poder público que incluam a participação individual. "Com o uso da Internet, poderíamos ter assembléias eletrônicas, em que toda a sociedade pudesse se manifestar, via computador", diz. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, como lembra Sônia Draibe, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), são cada vez mais utilizados mecanismos como os citizen panels (painéis do cidadão). Por esse sistema, qualquer indivíduo tem a possibilidade de ser consultado, pela Internet, telefone e até pessoalmente, a respeito de todo tipo de questões relativas a seu bairro e sua cidade, podendo inclusive dar sugestões para a resolução de problemas. "Temos outras formas de participação popular, mas são poucos os mecanismos direcionados ao indivíduo, como as consultas públicas e os orçamentos participativos", pondera a pesquisadora. Essa situação, na verdade, não causa estranheza, já que mesmo os instrumentos de atuação organizada, como os conselhos, ainda não fazem parte do cotidiano da população. 

 

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