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Moléstia grave

Afundados em dívidas, hospitais filantrópicos pedem socorro

ANA PAULA SOUSA e LEONARDO FUHRMANN


Protesto das Santas Casas em Brasília
Foto: Divulgação

A Esplanada dos Ministérios, em Brasília, foi transformada em um enorme cemitério em outubro do ano passado, quando integrantes do Movimento Nacional das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos fincaram 1,7 mil cruzes brancas com balões coloridos que continham a inscrição "SOS Santas Casas" para simbolizar a situação precária dos hospitais filantrópicos que atendem majoritariamente o Sistema Único de Saúde (SUS). A manifestação mostra não apenas o tamanho da crise desse tipo de estabelecimento, mas também o poder de mobilização de suas entidades de representação, uma delas inclusive presidida por um deputado: o padre José Linhares (PP-CE), que foi presidente da Santa Casa de Sobral, importante cidade de seu estado.

Realizado após uma rodada de negociações entre os deputados que compõem a Frente Parlamentar da Saúde e a Frente Parlamentar de Defesa das Santas Casas de Misericórdia, o protesto fez parte do movimento iniciado em 18 de outubro de 2005 com a paralisação simbólica de 70% dos hospitais filantrópicos do país ligados ao SUS. Só em São Paulo, cerca de 90% das entidades beneficentes aderiram à manifestação, e no estado do Paraná apenas um dos 83 hospitais não participou. Durante 24 horas, os grevistas limitaram-se a atender casos de extrema urgência, agendando consultas básicas para outras datas. Além da reivindicação de reajustes na tabela de pagamentos do SUS, a paralisação serviu de alerta ao governo para a gravidade da crise financeira que o setor atravessa.

Atualmente, existem 2,1 mil entidades filantrópicas hospitalares no Brasil, de acordo com a Federação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas do Estado de São Paulo (Fesehf). A importância desses estabelecimentos é tão significativa que, de cada três leitos hospitalares no país, um é beneficente. Legalmente, são consideradas filantrópicas as instituições portadoras do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Ceas), concedido pelo Ministério de Assistência e Promoção Social. Com a certificação, os hospitais obtêm isenções fiscais e tributárias, mas em contrapartida devem destinar, no mínimo, 60% de seus leitos ao atendimento do SUS.

No estado de São Paulo, são 451 entidades detentoras do título de filantrópica, das quais 51 estão situadas na capital. Juntos, esses hospitais oferecem cerca de 44 mil leitos para atendimento pelo SUS. Das instituições que se localizam no interior do estado, em 56% dos casos elas são a única opção para a população de um município ou mesmo de uma região.

Defasagem

De acordo com a Confederação das Santas Casas de Misericórdia (CMB), o déficit permanente verificado nas contas dos hospitais filantrópicos tem como explicação a defasagem dos valores repassados pelo SUS – circunstância agravada pelo fato de a maioria dos leitos se destinar ao atendimento público.

Para José Reinaldo Nogueira de Oliveira Junior, presidente da Fesehf, as dificuldades financeiras são o principal problema das entidades. "Segundo levantamento da CMB, a dívida desses hospitais em todo o país ultrapassa R$ 1,5 bilhão, e os motivos estão concentrados no repasse. Por exemplo, a tabela do SUS continua a não acompanhar a evolução dos custos, os tetos financeiros são insuficientes e o atraso de pagamento nas esferas federal, estadual e municipal é freqüente", diz ele.

O SUS é um sistema nacional de atendimento médico, mas sua administração fica a cargo dos estados e municípios. Muitas vezes, o pagamento aos hospitais conveniados atrasa por conta da viagem dos recursos pela esfera pública. "A média de espera para receber do SUS pelos procedimentos é de 30 a 90 dias após o atendimento. Alguns hospitais chegam a aguardar quatro meses", revela Oliveira Junior.

Segundo os representantes do setor, os problemas financeiros das entidades começaram com a criação do SUS, há 17 anos, e foram agravados pela disparidade entre o que os diretores das Santas Casas chamam de "valores reais" dos procedimentos e o que efetivamente é pago. Essa defasagem, no caso dos dez procedimentos mais realizados nas Santas Casas, já alcançava a média de 188% em 2003. Hoje, basta analisar as tabelas do SUS para perceber que a diferença permanece. De acordo com a Fesehf, o custo para atender emergencialmente um adulto é de R$ 1.031,37. No entanto, os hospitais recebem do SUS apenas R$ 538,34. Além disso, o teto financeiro estabelecido para os gastos é baixo e, depois de atingido, não é mais coberto pelo SUS. "As Santas Casas entraram nesse turbilhão de dívidas quando, no governo Fernando Henrique Cardoso, houve o reajuste de 15% na tabela do SUS apenas para procedimentos complexos, como uma cirurgia cerebral. Os valores pagos por procedimentos de média e baixa complexidade não tiveram alteração. Para muitas entidades, os empréstimos bancários foram a única saída", explica o deputado estadual Simão Pedro (PT-SP), ao falar sobre o endividamento dos hospitais. "Mais recentemente, o Ministério da Saúde reajustou a tabela do SUS, mas muita coisa não pode ser feita para não estourar o orçamento", explica o parlamentar.

Embora necessários para cobrir a defasagem num primeiro momento, os empréstimos acabaram elevando ainda mais o déficit já constante dos hospitais beneficentes. Não foram raros os casos em que, por falta de recursos para saldar o débito, as entidades viram os altos juros cobrados pelas instituições bancárias multiplicarem suas dívidas. A atual política monetária do governo federal, vigente desde a administração anterior, só agravou a frágil situação dos endividados. Por todos esses fatores, boa parte das entidades filantrópicas deve milhões de reais a diversas instituições bancárias, inclusive o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Fornecedores de material hospitalar, a Receita Federal e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) também são vítimas do calote das Santas Casas.

Conseqüências do déficit

Um levantamento realizado em 2003 pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) revelou que 70% dos hospitais filantrópicos têm problemas estruturais e também apresentam o pior desempenho na análise de salas de cirurgia, equipamentos e equipes de prontos-socorros. Atualmente, cerca de 30 estabelecimentos em todo o país estão sob intervenção municipal, estadual ou federal – a maioria por problemas financeiros e administrativos. Muitos outros fecharam as portas ou passaram por processo de desativação nos últimos cinco anos. Esse é o caso, em São Paulo, das Santas Casas de Buri, Sumaré e Porangaba, no interior, e da Maternidade São Paulo, na capital.

Quarto maior hospital da cidade e o mais importante centro de referência da zona leste – a região mais populosa do município de São Paulo –, o Hospital Santa Marcelina também vem enfrentando dificuldades nos últimos anos. Os problemas se multiplicaram depois que seus administradores tomaram um empréstimo de cerca de R$ 36 milhões com os bancos Itaú, Real e Nossa Caixa para cobrir a defasagem dos pagamentos do SUS. Hoje, o hospital, que realiza basicamente procedimentos de alta complexidade, acumula R$ 53 milhões em dívidas. A irmã Rosane Guedin, responsável pela administração do Santa Marcelina há um ano, afirma que o déficit mensal já atinge R$ 3 milhões. "Recebemos cerca de R$ 9 milhões mensais, mas precisamos de R$ 12 milhões para nos sustentar. Todas as áreas do hospital acabam sendo prejudicadas pela insuficiência de verbas: os equipamentos se tornaram obsoletos com rapidez espantosa e não pudemos substituí-los, e a maneira como realizamos os atendimentos teve de ser revista", admite ela.

Só no último ano, o quadro de funcionários do Santa Marcelina precisou ser reduzido em 15%. Mesmo assim, a irmã Rosane garante que foram feitos esforços para evitar o pior: que a população carente, que tem o hospital como única opção na região, deixasse de ser atendida em razão da falta de pessoal. "Modificamos o procedimento, e os atendimentos sem grande complexidade, que antes eram feitos em nosso pronto-socorro, agora são encaminhados para a rede básica. Trabalhamos em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde para reorganizar o esquema, sem prejudicar ninguém."

Outro importante hospital paulistano que busca soluções para driblar a crise financeira sem comprometer o atendimento a gestantes carentes é o Amparo Maternal de São Paulo. Desde que foi fundado, em 1939, por dom José Gaspar de Alfonseca e Silva, arcebispo de São Paulo na época, e pela franciscana madre Dominique, cerca de 60 mil gestantes já passaram por esse hospital, que se tornou a maior maternidade beneficente da América Latina. No entanto, o custo para manter a meta de mil partos por mês e dar continuidade ao projeto de alfabetização e ensino profissionalizante para as mães necessitadas tem sido bastante alto. "Nossa dívida com o INSS e a Receita Federal beira os R$ 8 milhões. Com os repasses, cobrimos apenas 50% do que é gasto, e as perdas nunca são compensadas pelo governo", critica Emílio Ferranda, diretor administrativo da instituição.

Para reequilibrar o balanço, tanto a administração do Amparo Maternal quanto a do Hospital Santa Marcelina contam com campanhas e ajuda de políticos e empresários. A campanha em prol do Amparo Maternal, que teve início em 2005, é conduzida pelo vereador Paulo Teixeira (PT) e conta com a colaboração de figuras representativas da sociedade paulistana, como o cardeal dom Cláudio Hummes e o presidente da Bolsa de Mercadorias & Futuros, Manoel Felix Cintra Neto. "Pretendemos utilizar o dinheiro arrecadado para saldar as dívidas com a Previdência. É preciso acabar com esse déficit e lutar para não contrair mais débitos", afirma Paulo Teixeira. Em 2006, uma das estratégias é oferecer a empresas leitos para serem adotados por R$ 50 mil cada um. De acordo com o deputado Simão Pedro, R$ 120 mil foram liberados em janeiro deste ano para o Amparo, e, graças a outra emenda proposta por ele, já aprovada no relatório da Comissão de Orçamento, em breve mais R$ 120 mil devem ser destinados a esse hospital.

No Hospital Santa Marcelina, a administração aposta nos planos de saúde. A meta é dobrar o número de contratos existentes e assim ocupar o restante dos leitos – a instituição destina 87% de sua capacidade a atendimentos do SUS. Isentos de impostos, esses planos são mais baratos e competitivos e, por isso, podem ajudar a garantir a sobrevivência da instituição. Em 2005, as doações financeiras de 17 empresas, entre elas a Companhia Brasileira de Alumínio, e de 2 mil pessoas físicas para a campanha Adote um Leito resultaram em R$ 1,5 milhão para complementar a verba do hospital. Simultaneamente a essas iniciativas, o Ministério da Saúde oferece verba extra por meio de políticas específicas para estabelecimentos filantrópicos.

Apoio oficial

A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo ainda negocia com o Ministério da Saúde, mas o Amparo Maternal e mais de 150 hospitais paulistas já adotaram o Programa de Reestruturação e Contratualização dos Hospitais Filantrópicos ligados ao SUS. Criada em 2005, a iniciativa conta no total com a participação de 746 hospitais de vários estados e oferece R$ 200 milhões em recursos adicionais, em duas etapas, para cobrir o déficit orçamentário dos filantrópicos. De acordo com Amâncio Paulino de Carvalho, diretor do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, o objetivo é estabelecer um novo tipo de ligação entre os gestores e os hospitais que atendem o SUS. "A partir desse programa, o gestor fará o papel de um contratante de serviços, atentando para o interesse público."

As condições para receber o benefício são estabelecidas pelos representantes do hospital em parceria com o Ministério da Saúde. Metas de atendimento, programas de humanização e nível de satisfação dos pacientes são pontos que serão desenvolvidos e analisados em cada uma das instituições que receberem recursos do projeto. "É fundamental acompanhar e avaliar as melhorias nos hospitais, senão o Programa de Reestruturação e Contratualização se torna apenas uma maneira de garantir dinheiro às entidades, sem que o público seja beneficiado", adverte Carvalho.

Além de atentar para a qualidade dos serviços prestados, os administradores dos hospitais também terão de se comprometer a fazer uma gestão mais profissionalizada. O Ministério da Saúde diz que não vai intervir diretamente na estrutura administrativa dos filantrópicos, mas quer racionalização no emprego das verbas e bom rendimento das instituições. "Pretendemos melhorar a maneira como os hospitais são geridos, com a participação de colegiados e da própria comunidade. Exigir também que o diretor tenha, no mínimo, formação na área administrativa é essencial", diz Carvalho. O estabelecimento de metas e a constante supervisão dos gestores também devem evitar casos de má administração e de falência, como aconteceu com a Maternidade São Paulo.

Antigo centro de referência em ginecologia e obstetrícia, a Maternidade São Paulo, localizada na região central da capital paulista, encerrou suas atividades em 2003, com R$ 33 milhões em dívidas trabalhistas, tributárias e com fornecedores. Com o fechamento do hospital, houve perda de 300 leitos e troca de acusações entre os dois provedores que administraram a instituição entre 2001 e 2003, período em que a crise financeira se agravou. No final do ano passado, o Tribunal Regional do Trabalho tentou leiloar sem sucesso o prédio da maternidade, que funcionou durante 109 anos. Só em janeiro de 2006, o edifício avaliado em R$ 40 milhões foi arrematado, em novo leilão, por uma empresa ligada ao Banco Safra.

Iniciativas bem-sucedidas

De acordo com Oliveira Junior, presidente da Fesehf, o Programa de Reestruturação e Contratualização dos Hospitais Filantrópicos e outras iniciativas públicas direcionadas à área de saúde (como o programa voltado para hospitais de pequeno porte) podem ser uma providência inicial, mas não são a solução para a crise: "As políticas que tentam reduzir os problemas das entidades muitas vezes são burocráticas e redundam em repasses demorados. É preciso que o pagamento dos serviços que prestamos seja adequado à realidade. Por conta da defasagem na tabela do SUS, o déficit nas contas das entidades no final do mês é muito alto".

Para ajudar a superar a defasagem, a implantação de convênios pode ser a melhor saída. A Santa Casa de Santos (SP) sobreviveu a uma forte crise financeira que teve início nos anos 1980 depois de optar por essa alternativa. Atualmente, Manoel Lourenço das Neves, provedor da entidade, afirma que o hospital não passa por sérias dificuldades. "É claro que buscamos reforço no sistema bancário para regularizar o fluxo de caixa, devido à defasagem do repasse do SUS, mas os outros serviços oferecidos pela irmandade, como plano de saúde próprio e serviço de funerária, ajudam a manter o equilíbrio orçamentário", explica. Criado há 15 anos, o plano de saúde da Santa Casa mais antiga do Brasil – fundada em 1543 – conta atualmente com 84 mil usuários e garante a complementação das verbas do SUS.

Segundo Euler de Paula Baumgratz, superintendente da Associação Congregação de Santa Catarina (ACSC), utilizar recursos provenientes de outros serviços para complementar os repasses do SUS é o melhor caminho para garantir a sobrevivência dos hospitais filantrópicos. Dona de um dos primeiros hospitais privados da cidade de São Paulo, o Santa Catarina, a entidade filantrópica ainda é responsável pela administração de outras 20 instituições de caráter beneficente. No entanto, a matemática que garante verba suficiente para sustentar todas elas é bastante simples. O lucro excedente do Santa Catarina, localizado na Avenida Paulista, e da Casa de Saúde São José, no Rio de Janeiro, é revertido para obras assistenciais.

Atualmente, a associação administra três creches, cinco escolas, três lares de idosos, um centro de convivência e nove hospitais, entre eles o Hospital Geral de Pedreira, no extremo sul da capital paulista. Criada pela Secretaria de Saúde do estado de São Paulo, essa instituição é gerida pela Associação Congregação de Santa Catarina desde junho de 1998 e atingiu 90% de satisfação no atendimento no último ano. A parceria entre a Secretaria de Saúde e a associação é beneficiada por investimentos pesados, feitos para garantir a qualidade do tratamento. "Contratamos uma consultoria para avaliar o grau da defasagem dos repasses do SUS nas contas dos hospitais que administramos. Em outubro de 2005, o SUS pagou R$ 195.560,98 pelos atendimentos feitos no pronto-socorro de um de nossos hospitais do Rio de Janeiro. O custo real era de R$ 601.012,17. Ou seja, a associação bancou cerca de R$ 405 mil", afirma Baumgratz. Mas, com a fórmula usada pela congregação, sua saúde financeira não está ameaçada.

Parcerias como essa firmada entre a ACSC e o governo ainda são incipientes, mas já surtem efeitos positivos onde foram implantadas. O presidente da Fesehf acredita que esse tipo de interação seja promissor, mas reitera que mudanças na estrutura do SUS são fundamentais: "Não há como manter um hospital recebendo menos do que se gasta. O que esses administradores, funcionários e voluntários realizam são verdadeiros milagres! Se amanhã o sistema filantrópico fechar, a saúde brasileira entra em colapso".

 

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