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Missão impossível

Defender excluídos, a dura opção de religiosos no norte do país

CARLOS JULIANO BARROS


Ocupação avança na floresta
Foto: Leonardo Sakamoto

À primeira vista, é difícil acreditar que um carismático francês de 76 anos, de fala lenta e andar compassado por conta da saúde debilitada, encabece a lista dos jurados de morte pelos fazendeiros e madeireiros que transformaram o Pará num apimentado caldeirão de conflitos fundiários. Henri des Roziers, advogado e frade dominicano que há quase três décadas escolheu o Brasil como palco de sua militância social e religiosa, já não anda mais sem a sombra de seguranças pagos por um programa de proteção do governo federal. Depois do assassinato da freira norte-americana Dorothy Stang, ocorrido em fevereiro do ano passado em Anapu, às margens da rodovia Transamazônica, não lhe restou alternativa. Desde então, é acompanhado dia e noite por dois policiais que se revezam para garantir sua integridade. Um deles, por sinal, é filho de Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, conhecido sindicalista do sul do estado morto em 1980 por se envolver, assim como frei Henri e Dorothy, na luta pela reforma agrária.

O processo de ocupação da Amazônia desenhado nos últimos 40 anos deixou um saldo preocupante de crimes contra o meio ambiente e os direitos humanos. De acordo com dados oficiais, mais de 16% da cobertura original da maior floresta do mundo já foram devastados – área equivalente aos territórios de França e Portugal juntos. Somam-se a isso o desrespeito às populações tradicionais e a superexploração do trabalho de milhares de migrantes que enxergaram na imensidão verde um meio de driblar a escassez de emprego em seus locais de origem, principalmente no semi-árido nordestino.

A Amazônia pagou um preço muito alto pela noção de progresso associada ao fomento de atividades agropecuárias e de extração de madeira e minérios – desenvolvidas por grandes grupos empresariais e poderosos latifundiários vindos, em sua maioria, do sul do Brasil. Depois do golpe de 1964, a vontade dos militares de "integrar para não entregar" o norte ao restante do país incendiou a disputa por terras. Somente no Pará, onde os conflitos revelam sua face mais sangrenta, ocorreram 772 assassinatos de lideranças sindicais, trabalhadores rurais e defensores dos direitos humanos entre 1971 e 2004 – uma assustadora média de duas mortes por mês.

Na raiz dos movimentos populares de resistência a essa ocupação desordenada encontra-se uma instituição que, se não tem mais a mesma influência de tempos atrás, faz sentir seu legado quando se analisa o atual cenário político nacional: a Igreja Católica. Ela teve participação decisiva na gestação de expoentes da esquerda, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e o Partido dos Trabalhadores (PT), por exemplo. E, principalmente no campo, ainda constitui um importante espaço de articulação de militantes que se dedicam à causa da reforma agrária.

Por essa razão, não é difícil encontrar na região norte do Brasil missionários estrangeiros que, da mesma forma que Henri des Roziers, deixaram seus países para mergulhar no meio do povo marginalizado, onde o poder público é incapaz de oferecer assistência adequada à população. Religiosos que acreditam que a Igreja Católica não deve só confortar espiritualmente seus fiéis, mas também se empenhar na resolução dos problemas urgentes dos excluídos.

Opção radical pelos pobres

Essa linha progressista do catolicismo ganhou contornos fortes quando, em 1968, bispos de todo o continente se reuniram na cidade colombiana de Medellín – marco do surgimento da doutrina que ficou conhecida como Teologia da Libertação: uma leitura do Evangelho influenciada por conceitos da filosofia marxista, que passou a contestar a miséria de boa parte das populações de países como Brasil e Peru. "Quem primeiro formulou essa opção pelos pobres, contra a pobreza e em favor da vida e da liberdade foi a Teologia da Libertação. É marca registrada da Igreja latino-americana", afirma Leonardo Boff, ex-frade franciscano e um dos principais pensadores dessa corrente.

A princípio, quando os militares tomaram o Palácio do Planalto, os dirigentes da Igreja viram com bons olhos essa iniciativa, por medo da escalada mundial do comunismo. Contudo, quando vieram à tona as denúncias de abusos cometidos pela ditadura, os setores engajados da instituição se solidarizaram com os anseios do povo oprimido, conquistando espaço entre os fiéis. Naquele período, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de cada dez pessoas, nove se declaravam católicas. Hoje, esse índice caiu para 70%. São números que atestam a importância da Igreja na sociedade à época do golpe de 1964.

Já na década seguinte, a fama de progressista do catolicismo nacional espalhou-se pelo mundo inteiro, atraindo o interesse daqueles que buscavam sintonia entre a leitura da Bíblia e a vontade de lutar contra as injustiças sociais. De acordo com o Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris), dos 2.447 religiosos que hoje moram na região norte, 40% vêm de outros países. Porém, é impossível afirmar com precisão quantos desses missionários estão de fato engajados em alguma ação social. Certamente, a maior parte cumpre apenas suas obrigações cotidianas em paróquias e conventos, sem se envolver em qualquer tipo de militância. Entretanto, não é nada desprezível a parcela de padres, irmãos e irmãs que não percorrem milhares de quilômetros somente para pregar e arrebanhar fiéis – como fizeram os jesuítas com os índios brasileiros, séculos atrás.

No Brasil, os ideais da Teologia da Libertação ecoaram mais alto no campo do que na cidade, fortalecendo a luta pela terra. Prova disso é que muitas lideranças do maior movimento social do país, o MST, formaram-se nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Essas entidades surgiram em meados dos anos 1960, depois de uma série de mudanças introduzidas pelo papa João XXIII com o objetivo de popularizar a Igreja Católica em todo o mundo. Por meio delas, um grande número de fiéis do interior do país, que não contavam com assistência regular de um sacerdote nos locais onde moravam, passou a organizar as celebrações por conta própria.

"Na Europa, o cristão é um consumidor de serviços feitos pelo padre. No Brasil, ocorreu a responsabilização dos leigos. Mas isso não implica necessariamente uma Igreja libertária. Essa reorientação foi provocada pela situação de opressão e pela presença de intelectuais orgânicos de esquerda ligados a ela", explica o frade dominicano francês Xavier Plassat. Os encontros religiosos foram um dos poucos espaços públicos de discussão que o regime militar não aboliu. Era natural, portanto, que nas CEBs também se fizessem debates a respeito da realidade social e política brasileira. "A Teologia da Libertação aproveitou esse envolvimento popular", acrescenta frei Xavier. Nomes como o da atual ministra do Meio Ambiente, a acreana Marina Silva, despontaram dessas comunidades.

A "opção radical pelos pobres" da Igreja Católica saiu do papel com o advento, por todo o país, de pastorais que lidam com os mais variados públicos, como detentos, moradores de rua e profissionais do sexo. Mas uma delas merece destaque pelo importante papel de resistência à ocupação predatória da Amazônia. Em 1975, quando a floresta foi cenário de crimes graves, como assassinatos, grilagem de terra e violação de direitos trabalhistas, foi fundada a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Atualmente, ela constitui um dos principais núcleos de pesquisa sobre problemas fundiários do Brasil. Além disso, mantém um corpo de agentes religiosos e leigos para organizar trabalhadores e defender seus direitos, em nome de uma reforma agrária que respeite a agricultura familiar e o modo de vida típico do camponês.

Violência x resistência

Com a decadência da economia da borracha, que até os anos 1920 consistia na principal fonte de divisas da região, o garimpo, a extração de madeira e a pecuária provocaram uma espécie de corrida para o norte do país – a que se assiste até hoje. A partir da década de 1940, o Estado tomou algumas medidas para tentar disciplinar esse novo ímpeto "colonizador", por meio da instalação de bancos e aeroportos. No começo dos anos 1960, a abertura da rodovia Belém-Brasília provocou um grande fluxo migratório em direção àquela área.

Mas foi com os militares que o processo de ocupação se desenrolou a pleno vapor. Em 1966, com o intuito de atrair investimentos por meio da concessão de benefícios a empresários, foi criada a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Projetos de ampla envergadura – da extração de minérios à criação de gado, passando pela plantação intensiva de eucaliptos para a produção de celulose – nasceram nesse período. A retirada de ferro da maior jazida do mundo, localizada na serra dos Carajás (PA), é um dos exemplos mais conhecidos. Para fornecer energia a essas atividades, foram construídas hidrelétricas de grande porte, como a de Tucuruí, também localizada no Pará. Novas estradas retalharam a mata a fim de garantir o escoamento da produção e facilitar o povoamento, como a Cuiabá-Santarém e a famosa Transamazônica.

Entretanto, a estratégia de ocupação do "vazio demográfico" do norte do Brasil, representada por slogans do tipo "uma terra sem homens para homens sem terra", não correspondeu ao sonho de uma multidão de migrantes pobres que chegavam à Amazônia de todas as partes do país. "O governo usou a floresta como forma de desviar a atenção dos movimentos organizados dos principais focos de tensão fundiária, como Rio Grande do Sul, Paraná e Pernambuco. Em vez de realizar uma verdadeira reforma agrária, fez uma política de assentamentos, jogando os agricultores em lotes sem nenhuma infra-estrutura", explica Paulo Santilli, professor de antropologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp). As medidas desenvolvimentistas também não pouparam os povos indígenas. Pelo contrário, "na década de 1970, seu contingente populacional atingiu o nível mais baixo em toda a história: pouco acima de 60 mil", completa Santilli.

Com a perseguição implacável da ditadura a sindicatos, movimentos sociais e partidos de esquerda, a Igreja era a única instituição de âmbito nacional com capacidade de fazer frente aos desmandos dos militares e de apoiar a classe trabalhadora. "A primeira década de atuação da CPT foi uma fase heróica, de enfrentamento e formação de verdadeiras lideranças", conta frei Xavier, que coordena a pastoral de Araguaína, no norte do Tocantins. Essa parte do estado, apelidada de Bico do Papagaio devido a seu formato geográfico, já foi uma das áreas de maior ebulição fundiária do Brasil.

Frei Xavier segue os passos do padre Josimo Tavares, assassinado em 1986 por incentivar os posseiros a resistirem contra a expulsão das áreas que ocupavam há gerações. "Ele abria a Bíblia e dizia às pessoas que o direito à terra era algo sagrado, que não bastava rezar junto, mas que era necessário formar um sindicato, um partido que representasse a classe trabalhadora. A CPT dava esperança às comunidades ameaçadas", resume. Vinte anos após a morte de padre Josimo, a apropriação ilegal de áreas que pertencem à União mediante violência e falsificação de escrituras – prática conhecida popularmente por "grilagem" – ainda deixa muitos militantes da Igreja e dos movimentos sociais de cabelo em pé. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estima que pelo menos 100 milhões de hectares tenham sido abocanhados de maneira criminosa, em todo o país. Mais da metade deles estão na região norte.

Compromisso social

Na França, não é muito comum a Igreja se ocupar do debate dos problemas do país, postura que incomodava frei Henri des Roziers. As notícias sobre a barbárie da ditadura militar despertaram nele a vontade de conhecer o Brasil. "O que me motivou não foi o problema da terra, e sim a questão dos direitos humanos", conta. Logo nos primeiros meses, ele passou uma temporada na diocese de Goiás Velho (GO), comandada pelo bispo dom Tomás Balduíno, presidente nacional da CPT. "Esse estágio me impressionou muito. Senti afinal uma coerência entre as lutas sociais e a minha interpretação do Evangelho. Era a primeira vez que ficava feliz por participar das celebrações", afirma. Depois da experiência, não teve dúvidas quanto ao destino a seguir, e entrou para a Pastoral da Terra. Por quase dez anos, trabalhou na região do Bico do Papagaio, onde se espantou com a violência policial contra os posseiros e a omissão do Poder Judiciário. Mas foi no Pará, estado em que atualmente reside, que ele fez história ao participar, em 2000, da acusação que levaria pela primeira vez na história do país um fazendeiro à prisão pelo assassinato de um trabalhador rural.

Hoje, na CPT de Xinguara (PA), o advogado e missionário Henri tenta pôr na cadeia latifundiários que submetem à condição de escravos peões vindos de estados nordestinos pobres, como Maranhão e Piauí. Seres humanos descartáveis que sobrevivem da chamada expansão da fronteira agrícola amazônica. Mão-de-obra pouco qualificada que realiza serviços pesados – como o desmatamento da floresta para formação de pastos, plantações de soja e algodão –, sem direito a salário ou à liberdade para abandonar as fazendas. Essa prática vem de longa data: as primeiras denúncias sobre escravidão contemporânea foram feitas na década de 1970 pelo espanhol dom Pedro Casaldáliga, então bispo de São Félix do Araguaia (MT).

Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que desde 1995 designou um grupo especial de auditores para fiscalizar propriedades do interior do Brasil, mais de 15 mil pessoas já foram resgatadas desde o início das operações, principalmente no Pará, Mato Grosso e Tocantins. Apesar de o Código Penal prever reclusão de até oito anos para esse crime, apenas um fazendeiro até hoje foi condenado na Justiça comum. Mesmo assim, sua sentença foi revertida para distribuição de cestas básicas.

O combate ao trabalho escravo também consome a maior parte do tempo de frei Xavier Plassat. Mas, afirma ele, nos últimos anos a CPT vem encarando novas missões. "Quando cheguei ao Brasil, em meados da década de 1980, o principal desafio era lutar contra a grilagem e resistir à expulsão. Hoje, precisamos pensar com os trabalhadores rurais uma outra maneira de se relacionar com a terra e rever o sistema de produção, permitindo o desenvolvimento da agricultura familiar", afirma.

Apesar da intensa atuação das pastorais, é fato que institucionalmente a Igreja Católica brasileira não possui mais o mesmo vigor na defesa dos direitos básicos das populações excluídas. Frei Xavier, por exemplo, diz que a CPT de Araguaína nem sequer é convidada pelo bispo a participar das assembléias diocesanas, reflexo das nomeações de dirigentes menos progressistas durante o longo pontificado do conservador João Paulo II. "Atuamos praticamente como uma organização não-governamental, buscando financiamentos de agências de cooperação internacional", diz. Por outro lado, não se pode dizer que os preceitos da Teologia da Libertação estejam em decadência absoluta. Ainda existem muitos religiosos brasileiros e estrangeiros que vêem no Evangelho a motivação para lutar por uma sociedade igualitária, olhando por regiões onde a presença do Estado ainda é rarefeita. A Amazônia só tem a agradecer a Deus por isso.


O fim da passividade

O trabalho missionário não é feito apenas por padres e irmãs. Há diversos cristãos leigos que também vêm para o Brasil à procura da união entre fé e militância social, como a espanhola Carmen Bascarán. Pertencente à ordem italiana dos combonianos, ela chegou ao país em meados da década passada e, em 1996, fundou o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH) de Açailândia (MA). A maior parte das pessoas que hoje trabalham com ela na direção da entidade saiu dos quadros da Pastoral da Juventude. "Os padres combonianos que moravam aqui fizeram um ótimo trabalho na formação de lideranças", afirma.

Só no primeiro mês de atuação, o grupo liderado por Carmen, "com a Constituição Federal nas mãos", conseguiu o registro gratuito de 6,8 mil pessoas que não possuíam certidão de nascimento nem podiam pagar pela sua emissão – direito garantido por lei às populações de baixa renda. Nestes dez anos, o CDVDH alcançou outras proezas, como o fechamento de 19 carvoarias que mantinham trabalhadores em regime de escravidão, depois de fiscalizações do MTE – para desespero de siderúrgicas da região que se alimentavam do combustível barato.

Além de fornecer orientação jurídica à população do município e encaminhar denúncias às autoridades competentes, o CDVDH também mantém atividades de dança, teatro e capoeira em seis núcleos espalhados pelo município, das quais participam cerca de 400 jovens entre 8 e 21 anos de idade. "Nossa maior obra foi incentivar a criação de associações de bairro e rádios comunitárias, entre outras iniciativas, por pessoas formadas no centro. Dez anos atrás, chamava a atenção a passividade dos cidadãos de Açailândia. Hoje é uma cidade efervescente", conclui Carmen. 

 

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