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Ficção
Pai Inácio e Sinhá Dona

Eduardo Silva
Meio por acaso ou não, o fato é que toda vez que eu consultava revistas ou jornais muito antigos, geralmente em busca de assuntos mais importantes, eu dava com um certo Príncipe, uma figura popular, um negro de dois metros de altura, barba à moda de Henrique IV, sempre elegantíssimo com suas finas roupas pretas, de fraque, cartola, luvas, guarda-chuva, bengala e pince-nez de aro de ouro.
Às vezes, nem era assim. Às vezes, quando a ocasião merecia, lá vinha ele, muito ereto e importante, metido em seu bem cuidado uniforme de Alferes do Exército, com seus galões dourados, suas dragonas douradas, sua espada brilhante, seu chapéu armado com penachos coloridos, sua medalha de guerra, seu pacholismo admirável.
O povo das ruas o reverenciava como a um príncipe real africano. Para o pessoal da elite, contudo, aquilo não passava de grossa megalomania. Onde já se viu preto metido a príncipe? Isso não pode. É claro que não pode e não podia.
Outra prova de desequilíbrio era encontrada nos próprios artigos que o Príncipe escrevia para se defender e que eram publicados na imprensa da capital, em português ainda mal assimilado, onde afloravam algumas pitadas de ioruba e mesmo, para maior glória e importância, latim.
A grande prova de seu desequilíbrio, contudo, era o fato de usar sempre – e ao mesmo tempo – bengala e guarda-chuva. E aquilo me intrigava completamente. Na verdade, todas as acusações anteriores podiam ser perfeitamente creditadas à ignorância senhorial. É claro que existem os príncipes pretos como existem os príncipes brancos e amarelos. Quanto aos erros de português, caro marquês, eu acho que não é bom nem comentar. Grande sabedoria, às vezes, é saber escolher as perguntas certas, muito mais do que ter resposta pronta para elas.
Daí que naquela noite me deu uma doida, fiz as malas e peguei o primeiro vôo para Salvador. De Salvador peguei um ônibus direto para Lençóis, o coração diamantífero da Bahia, terra de jagunços e heróis. Só que eu não sabia de nada disso e fui chegando na maior inocência do mundo.
Tentei achar os arquivos da velha Comercial Vila dos Lençóis, mas os arquivos estavam perdidos ou foram transferidos para a capital da Bahia. As coisas não iam nada bem. Tentei saber se existia ao menos uma memória oral sobre o Príncipe e, como quem não quer nada, saí perguntando pela cidade. Não, ninguém viu nada. Ninguém sabia de nada, e a memória parecia totalmente perdida no tempo. Mas, do dia para a noite, a história do Príncipe se espalhou pela cidade e eu, de modesto pesquisador assistente que era, de um momento para outro, virei uma das atrações da cidade. Minha fama, modéstia à parte, durou bem mais de 15 minutos. Deve ter durado uma tarde inteira. Todos na pequena cidade se mostravam contentes e, ao mesmo tempo, estupefatos, ao ouvirem que em Lençóis nasceu não apenas o grande polígrafo Afrânio Peixoto, que é uma espécie de príncipe das letras, mas um príncipe de verdade, da melhor nobreza africana.
Fiquei tão famoso que arranjei uma namorada. Pois foi naquela mesma noite que eu tive meu primeiro grande estranhamento metodológico. Nos dias globalizados de hoje, quem não tiver pelo menos um estranhamento metodológico na vida pode se considerar completamente perdido. Para os cultores da boa literatura, o recomendável seria um estranhamento metodológico, pelo menos, de seis em seis horas.
Pois naquele dia nós havíamos visitado o Morro do Pai Inácio, um contraforte belíssimo da serra do Sincorá, imenso paredão de rocha talhado a prumo, com uma única trilha oculta que permite a subida e descida. Só quem viu pode dizer. Não existe morro mais bonito que o do Pai Inácio, com seu jeito de castelo adormecido e misterioso, sempre envolto em brumas e lendas.
Sobre o morro existe uma lenda do tempo da escravidão. Não sei se já lhes contei a história de Pai Inácio. No tempo dos barões do diamante, na então movimentadíssima Comercial Vila dos Lençóis, existia um escravo, em todos os sentidos, especial. Pai Inácio era jovem, elegante, e possuía um guarda-chuva. Com tal gabarito se portava aquele homem, tão especial ele era, que teve um caso de amor com a própria sinhá-dona, a patroa do patrão. Deixo ao leitor a imaginação dos pormenores românticos de uma história de amor que parecia querer desafiar todos os limites, todos os padrões do antigo sistema. Quando o caso veio à tona, Pai Inácio fugiu para a caatinga brava levando apenas seu guarda-chuva. Seu barão, que foi o último a saber, ficou furioso, juntou seus jagunços, os homens mais temidos da região, e saiu pelo mundo para ajustar contas com Pai Inácio, aquele ingrato, aquele aproveitador, aquele filho da égua.
Pai Inácio havia desafiado a própria essência do sistema. Era um homem marcado para morrer de bala perdida. O senhor furibundo, com sua gangue de furibundos, virou todo aquele sertão pelo avesso. E foram na gruta do Lapão, que atravessaram de ponta a ponta, na gruta das Areias Coloridas, na Toca dos Noivos, no garimpo do Ribeirão do Inferno, no garimpo do Veneno, na Pratinha, nas cascatas do Serrano, na bela praia do Rio São José, no Zaidá, na cachoeira da Fumaça, que, depois, segundo dizem, um americano descobriu e rebatizou com seu próprio nome, de cachoeira Glass. Todos os esconderijos possíveis e nada. Por fim, só faltava procurar no mais bonito monte da região, o morro que ganharia seu nome. Quando os jagunços percebem que estavam sendo observados do alto, o tempo todo, resolvem pegar a trilha da subida. Como todo homem livre arrancado da mãe África, Pai Inácio era um homem encurralado. Já não podia tomar o caminho de volta e não lhe restava senão o abismo a sua frente. Os jagunços subiram e ganharam o morro. No último momento, quando tudo parecia perdido, salvou-se Pai Inácio pulando no espaço com seu guarda-chuva aberto como um pára-quedas.
Não creio que seja conveniente lançar aqui a hipótese de que o povo brasileiro, muito antes de ter inventado o avião, tenha inventado também o pára-quedas. Parece confuso, mas nada é realmente impossível. O mais interessante é tratar-se de uma história de amor naquele sertão bruto, onde manda quem pode e obedece todo mundo. Trata-se de uma obra aberta, tudo terminado com Pai Inácio no ar, com seu maravilhoso guarda-chuva e sua habilidade de caminhar por sobre a brisa.
Trata-se de uma velha história do tempo da escravidão, onde um escravo vence o senhor em toda linha, usando não a força física, mas seu charme de príncipe, suas estratégias verbais de envolvimento, sua inteligência e, na hora H, seu velho guarda-chuva. Na tradição africana somente um príncipe de sangue poderia usar, com tal desenvoltura e elegância, um guarda-chuva.
Trata-se também de uma história de amor, não apenas entre classes diferentes, mas entre raças diferentes. Talvez, no fundo, seja até uma história de miscigenação, embora a lenda deixe também no ar a questão da participação feminina. E afinal, podemos nos perguntar, sinhá-dona ficou grávida ou não?
Foi no alto do Pai Inácio, de onde se pode obter visão total e magnífica, que eu percebi, pela primeira vez, certas vertentes epistemológicas que não tenho tempo para especifcar aqui, mas que foram como um delicioso mergulho no rio Ribeirão.
Eduardo Silva é escritor e autor de Dom Obá II d’África, o Príncipe do Povo – Companhia das Letras