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Entrevista
Aldir Blanc

Em entrevista exclusiva, o poeta e compositor nascido no Estácio e criado em Vila Isabel fala de música popular brasileira e analisa as novos

modismos culturais, numa crítica endereçada à indústria fonográfica

Quem não se lembra do irmão do Henfil? Nos tempos do regime militar, quando a repressão afrouxou e eclodiu o clamor pela anistia geral, ampla e irrestrita, foram versos de Aldir Blanc que cristalizaram o sentimento de época. Versos especificamente de O Bêbado e o Equilibrista, cuja mensagem se esgueirava pelas brechas insensíveis da censura. Naquele tempo (na verdade, bem antes dele) o poeta e compositor de Estácio já escrevia a fina flor da música popular brasileira. No mês do Carnaval não haveria nome mais apropriado para falar de música e cultura popular.

Como anda a qualidade da música brasileira? A MPB está restrita aos rebolados das loiras do É o Tchan?

Em primeiríssimo lugar, o rebolado do tchã pode ser tudo, menos MPB. Nossa música, no aspecto criativo, vai muito bem, como sempre. O problema são os modismos impostos pela mídia gananciosa, pelos anunciantes de antolhos e pelos produtores idiotas. O sucesso espontâneo da música "Resposta ao Tempo" (que está dando o primeiro disco de ouro da carreira de Nana Caymmi), o aparecimento de jovens como Dudu Nobre e Jayme Vignoli, a permanente renovação na música instrumental, as produções independentes, o florescimento de pequenos selos, tudo isso atesta que a música brasileira vai bem, no que diz respeito ao poder de criação e inventividade de seus artistas mais combativos. Agora, a arrecadação de direitos autorais está quase em colapso e as grandes produtoras multinacionais copiam umas às outras da maneira mais tacanha. Acrescente ao quadro o jabá correndo solto em muitas rádios (com exércitos de lobistas no Congresso Nacional). Aí a coisa fica feia – mas, repito, isso não tem nada a ver com a qualidade de nossos artistas.

 

Cada vez mais esse tipo de MPB, principalmente o axé e o sambão, têm letras que lidam com o duplo sentido. São versos ou palavras sempre com uma conotação de dúbia sexualidade. O brasileiro é um povo que só pensa naquilo?

Se o brasileiro só pensasse naquilo, "Resposta ao Tempo" não teria sido eleita pelos leitores a melhor música do ano, pela "Revista de Domingo" do JB e pelos funcionários da Rede Globo melhor canção do ano de 1998, tudo isso em voto direto e insuspeito, além das expressivas vitórias na crítica especializada dos jornais O Globo, JB, O Estado de S. Paulo, na TV Cultura etc.

 

Sua música ‘O Bêbado e o Equilibrista" transformou-se no hino do movimento em favor da Anistia. Canções com esse espírito ainda hoje são possíveis de serem feitas, ou seja, há algo que catalize a alma do brasileiro com aquela intensidade?

É uma resposta difícil. "O Bêbado e o Equilibrista" não foi feita para ser hino. Virou hino espontaneamente. O hino da Anistia, assim como "Coração de Estudante", tornou-se música-símbolo da abertura política, das Diretas. Nesse sentido, o hino contra a globalizaçao que traz fome e desemprego pode surgir a qualquer momento.

O senhor concorda que a indústria cultural do disco colocou de escanteio autores mais sofisticados ou mesmo engajados com estéticas não popularescas?

Claro que sim.

 

No rádio brasileiro, os grandes hits de hoje são grupos de axé, de sambão, duplas sertanejas e grupos de rock cantando baladas. Ou seja, a chamada riqueza histórica musical brasileira está reduzida somente a tais estilos. Há uma saída para a preservação de outros estilos, como samba, chorinho etc?

Excelentes músicos de choro e de samba surgem a todo momento. Para citar o antológico verso de Nelson Sargento, nossa música "agoniza, mas não morre". O comercialismo desenfreado prejudica, mas não silencia a música popular.

 

Quem tem interesse em manter no ar somente estes atuais estilos popularescos de sucesso? É um retrato do nível cultural do brasileiro? Ou a população é vítima de um processo de lavagem cerebral-musical?

Os produtores gananciosos, títeres das multinacionais, associados aos poderosos do rádio e da tevê, a troca de participação em programas como forma de "divulgação" espúria, sem o devido pagamento, agentes "culturais" que desejam aparecer a qualquer preço, sem nenhum senso ético, a burrice de músicas pseudo-religiosas só para faturar etc. A lavagem existe, tanto cerebral quanto intestinal.

 

E com qual intuito esse tipo de lavagem é feito?

Ganhar dinheiro corrompendo, maculando, prostituindo, aplicando selvagemente as "regras de ouro do livre mercado", que de livre não tem nada – está mais no cabresto do que nunca.

 

O senhor acredita que a diversidade, a riqueza e criatividade brasileiras não cabem dentro do padrão das gravadoras?

Evidente que cabem. Ainda hoje, na hora do sufoco, inúmeros produtores têm que apelar para os tesouros de Lupicínio, Cartola, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Noel Rosa... E, apesar das dificuldades, sempre surgem novos valores.

Salvo engano, o senhor continua morando em Vila Isabel, bairro célebre de Noel Rosa e outros grandes sambistas cariocas. Por que Vila Isabel? Sem qualquer ofensa, é um algum tipo de manifestação estética em favor da tradição musical?

Eu moro na Muda, parte da Tijuca, perto de Vila Isabel. Morei em Vila Isabel dos quatro aos l2 anos. Nasci no Estácio. Obviamente não escolhi esses lugares para nascer e morar na época, mas tenho orgulho deles, um orgulho, digamos, crítico. Como escrevi num samba com João de Aquino "eu vim da Maia Lacerda e essa merda faz parte de mim...". Hoje, sou um homem da Zona Norte do Rio porque quero e isso implica seguir determinada tradição cultural. Com muita honra.

 

Através de suas letras é possível um retrato do brasileiro comum: aquele que gosta de dançar, de namorar, aquele que se irrita com as falcatruas, ou seja, o cidadão comum. Este cidadão comum de suas letras ainda existe ou é uma idealização romântica de uma era já esgotada pela globalização?

O cidadão comum não é produto da minha pretensa criatividade. Pode ser encontrado, graças a Deus e ao Diabo, em cada esquina, em cada boteco, espoliado no país inteiro pelos patifes de sempre. O verdadeiro milagre pátrio é a renovação inesgotável do humor em nossa cultura popular, apesar da violência e da estupidez dos poderosos. Faço letra de música porque não sei fazer outra coisa, faço letra de música desde menino. E tenho, sim, a pretensão, que considero sagrada, embora não seja religioso, de emprestar minha voz aos que são amordaçados por injunções sociopolíticas impostas de cima pra baixo.

 

Hoje, quais seriam seus principais parceiros musicais e quais as diferenças que cada um deles provoca em seu trabalho?

Moacyr Luz mais nos sambas; Guinga numa área entre a tradição do choro até a música experimental, quase jazzística; Jayme Vignoli numa avaliação consciente de nossa tradição clássica: choro, samba-canção, valsa, calango, lundu... Cristovão Bastos, em vários gêneros, principalmente compondo para trilhas sonoras, além de outros parceiros que por serem esporádicos não são menos queridos, como Ivan e Claudio Lins, Edu Lobo, Gilson Peranzzetta, Sueli Costa, Fátima Guedes, Luis Avellar, Sombra, Claudio Jorge, Paulinho da Viola, com quem fiz recentemente a primeira parceria, o samba "Botafogo, Chão de Estrelas" para o CD de Walter Alfaiate, que está saindo pelo selo Alma. Relembro também com emoção os parceiros Maurício Tapajós, Paulo Emílio e Rafael Rabello, já falecidos.

 

O Carnaval morreu? Durante os próximos dias de Carnaval, onde o senhor estará? Em casa, na avenida ou numa outra cidade distante da folia?

Por uma circunstância pessoal, um acidente que sofri, estarei em casa, mas acompanhando tudo por rádios, tevês, jornais e revistas. O Carnaval, mesmo descaracterizado em alguns aspectos, ainda é a maior festa popular do mundo, um acontecimento cultural de proporções e conseqüências tão vastas que não convém abordá-lo de forma simplista.

 

Uma pergunta em cima de dois versos famosos: todo poeta é malandro? O poeta finge a dor que sente?

Não lembro se foi Oswald de Andrade que se referiu ao "ócio fecundo". O problema com a visão que as pessoas têm do poeta é o seguinte: o cara fica lá, no canto dele, com o dedo no nariz, avoado, ar sonhador, ruminando um verso que está nascendo, penteando uma imagem, bolando quem sabe uma bobagem, quem sabe uma tirada imortal, num papel de pão, num maço de cigarros. O cara está trabalhando justamente na hora em que olham para ele e resmungam "olha lá o maluco tirando meleca". "Fingir a dor", no sentido de percebê-la de fato pelo Outro, e tentar traduzi-la para todos é o que o poeta faz de mais bonito.

 

Como é o cotidiano de um compositor popular como o senhor? Que horas levanta, que horas deita, onde se diverte, o que o inspira a compor?

Sou uma decepção para quem gosta de folclore: levanto cedo, brinco com os netos, leio e escrevo de manhã, de tarde, de noite... Bebo, sei lá, de quinze em quinze dias. Quase não saio. Não tomo drogas (eu as detesto devido aos horrores que testemunhei em meu passado como médico). O que mais gosto nesse trabalho é que toda hora é hora de compor. Eu estou sempre compondo e sei que vou compor até o último suspiro.

 

No Brasil de hoje quem seria aquela querida figura do compositor popular, como o foram Lamartine Babo, Ary Barroso?

Vou citar dois nomes, pela luta cultural que travam, pela criatividade sem par, pela nobreza de caráter, pela ética, pelo rigor: Edu Lobo e Nei Lopes.

 

Os atuais sambas-enredos como soam aos seus ouvidos de poeta? Uma última pergunta: o senhor, como compositor popular, respeitadíssimo pela crítica e pelos músicos, ficaria no sambódromo por oito horas seguidas assistindo aos desfiles das escolas? Ou isso hoje é coisa de turista e de paulista?

Feliz ou infelizmente, não sou tão respeitado assim por parte da crítica que se atrela alegremente à carroça da "mudernidade". Quanto à pergunta em si, a resposta é um sonoro SIM. Ficaria no Sambódromo, sim. Quando os desfiles acabam, eu lamento, acho pouco, quero mais. Vi desfile de escola de samba em poste, em caixote, várias vezes na arquibancada mais barata, e em camarote. Vale a pena. As gozações ao Carnaval paulista são saborosas, mas não se justificam. O Carnaval de São Paulo cresceu em qualidade e em 1997 e 1998 ensinou com sobras umas coisinhas aos professores cariocas e baianos. O Carnaval da Bahia, esse sim, vai mal – isso não tem nada a ver com o maravilhoso povo baiano, tão bem retratado nos tipos inesquecíveis de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro. O problema é que não se coloca impunemente uma cultura a serviço de jogadas publicitárias, "marketeiras" e politicóides.