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Música
Em nome de Deus (e do Rei)

A música produzida entre os séculos 16 e 19 tinha uma função muito clara: glorificar a monarquia e seduzir os fiéis da igreja. Ostentação e religiosidade eram o guia dos compositores latino-americanos que tiveram sua obra resgatada no Festival de Música Antiga Colonial

A igreja se ergue monumental, ornada pela mão genial de um Joaquim Antonio Lisboa, o Aleijadinho. Diante dela, o povaréu no adro sai em procissão vigiado por Deus. Durante horas marcha pelas ruas tortuosas, no íngreme dos morros que recortam as cidades históricas mineiras. O impulso que guia a multidão é a fé ardente e a música gloriosa.

Música, que em séculos pregressos abundava nas igrejas, tornou-se um dos baluartes essenciais da imposição cultural e religiosa européia na América recém-empossada, mas que, hoje, infelizmente, não recebe importância adequada nos meios de difusão. Para romper o silêncio forçado às partituras de outrora, o Sesc Ipiranga organizou, entre os dias 17 e 24 de janeiro, o Festival de Música Antiga Colonial com a presença de grupos e maestros de todo o mundo.

"Considera-se antiga colonial a música erudita produzida até o fim do período barroco e o início do período clássico, de caráter predominantemente religioso, que no Brasil se estende até 1830", explica Maurício Monteiro, doutorando em História da Música, comentarista e produtor da Rádio Cultura FM e que gravou todos os concertos do Festival para a realização de um programa especial na rádio. "Quando os europeus chegaram, a música tinha uma função muito bem definida: ostentar a monarquia absolutista."

A música erudita composta na América, portanto, era dotada de caráter sacro, ou seja, produzida especialmente para acompanhar a liturgia católica. "Pode-se afirmar que durante o período colonial, a música era de orientação totalmente européia, adequada às condições da colônia, sem nenhuma influência indígena ou africana. Se, por exemplo, a composição original previa dois violinos e duas flautas, na falta desses instrumentos, adaptava-se a música para duas rabecas e dois oboés", completa o musicista.

Apesar da ausência do elemento musical autócne, o sincretismo entre as culturas pode ser observado nas entrelinhas das partituras, como explica o maestro escocês, radicado há 12 anos no Brasil, Graham Griffiths, conselheiro do Festival e regente do Canto Colonial de Curitiba que se apresentou no Sesc Ipiranga: "O Oficio dos Defunctos, composto pelo padre José Maurício, encara a morte com alegria. Isso é inédito. Na Europa, nunca uma missa tão solene foi escrita com esse espírito. Quando escreveu o Oficio, o padre quis ressaltar a felicidade de quem morre ao reencontrar o Senhor, o Pai Superior. Portanto, mesmo sem a intenção de se criar uma música latino-americana, o valor local esteve sempre presente".

O evento promovido pelo Sesc apresentou concertos e palestras que desvelaram a particularidade da produção latino-americana, além de resgatar e divulgar a música colonial. Uma outra conclusão importante serviu para esclarecer alguns pontos dúbios sobre o período. "Há uma grande diferença entre a música escrita no Brasil e na América Espanhola", prossegue Maurício Monteiro. "Os estilos particulares de colonização interferiram diretamente na produção musical."

Enquanto a Espanha deixou raízes profundas na nova terra, criando uma relação de reciprocidade com a colônia, externadas por atitudes que garantiram o desenvolvimento dos rincões ocupados, Portugal manteve com o Brasil um relacionamento espoliante e superficial, com o objetivo de desterrar o maior número de riquezas possíveis em seu favor. "O resultado dessa discrepância é que a música na América Espanhola se desenvolveu em mais larga escala, pois havia um intercâmbio muito maior entre Castela e suas colônias do que entre Portugal e o Brasil", explica Monteiro.

A diferença de ocupação acarretou o florescimento tardio das artes nacionais. "A música antiga colonial brasileira não é barroca, como muitos pensam, mas é clássica", ensina o maestro Griffiths. Devido à distância cultural do reino, a estilística barroca tardou em aportar na colônia. Quando os ventos de aquém-mar começaram a insuflar com mais vigor, foi pré-clássica a influência dos músicos nacionais. Maurício Monteiro explica que, ao contrário do que a maioria acredita, o período barroco apenas resvalou nos artistas nacionais. Mesmo na arquitetura das igrejas setecentistas, houve um predomínio rococó, posterior ao barroco, pois, segundo o musicista, para que um estilo artístico viceje devem estar presentes, além dos elementos próprios, a filosofia que o consagra e a aura peculiar que o caracteriza. "No Brasil, devido à mentalidade portuguesa, essa atmosfera não ocorreu. Já na América Espanhola, houve possibilidade para o desenvolvimento da arte barroca", completa.

 

O som do altar

No Brasil colônia, música era sinônimo de religiosidade. Ensinam a teologia e os tratados teóricos musicais anteriores a 1800 que a música é tão antiga quanto Deus, um dom divino por excelência. A sacralidade inspirava os artistas a buscar n’Ele o frescor para o espírito. Partituras escritas, os intérpretes assenhoravam-se dos instrumentos para dar vida aos acordes. Até a chegada de D. João VI, o ofício de músico era prática artesanal (artifex), considerado intermediário entre a faina bruta dos negros e o ócio dos nobres. Era exercido na maioria das vezes por mulatos, que livres da senzala, viam-se capazes de ascender socialmente. Após a chegada do monarca em 1808, quando a Corte completa foi transferida para o Brasil, houve um grande estímulo para o desenvolvimento das artes, inclusive com a contratação de músicos europeus e a influência maciça do período clássico, em voga no Velho Continente. Para se ter uma idéia da proficuidade dos compositores, havia em Minas Gerais em 1810 a Confraria de Santa Cecília dos Compositores Intérpretes de Vila Rica (atual Ouro Preto) com cerca de 500 músicos congregados.

Infelizmente, as partituras que chegaram intactas até hoje formam apenas uma pequena mostra de tudo o que foi composto. Grande parte da vasta obra da época foi irremediavelmente perdida, carburada como pavio (o papel onde eram escritas as partituras era de lenta combustão) ou permanece obscura em meio à poeira dos arquivos. Na lástima do regente escocês sobrevive um resto de consolo: "Cada manuscrito descoberto desperta uma alegria imensa nos apreciadores da música antiga. A cada papel encontrado a salvamos da extinção". Durante uma semana, o Festival de Música Antiga e Colonial colocou o paulistano em contato com uma parte da música relegada por muitos.