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Ficção

Filhinho de peixes

 

Marcelino Freire

 

Vendo assim não tem quem diga.

Não tem quem diga.

Menino como ele, calmo como ele, educado como ele, fazer o que fez. Meu Deus! Fazer o que fez. Cadê sua sensibilidade à flor? Sua sensibilidade à flor? Onde socou? Ele que sempre foi a própria flor. Delicado e cheio de amor.  Típico pisciano, romântico. Nunca fez maldade a uma mosca. A uma mosca. Meu Deus! Nunca assassinou uma formiga.

Dizia: “Pobrezinho do passarinho”.

Ou, ou: “Coitadinha da lagartixa”.

Nunca atirou a primeira pedra. Ou a última. Nunca se envolveu em briga, baixaria do tipo... assim, agora, eu não lembraria. Meu coração não lembraria. A pessoa mais amiga e compreensiva. Que Deus pôs na terra. Dos frutos bons que Deus pôs na terra, acredito.

Desde que nasceu, um bom filho.

Lembro como se fosse agora, como se fosse hoje o seu nascimento. Dia 20 de março, há 19 anos. A família reunida e o médico dizendo: “É um menino bonito e grande. Cheio de saúde para todo o sempre”.

Para todo o sempre.

Do signo de Peixes. Nunca lembrávamos o ascendente. Alguém sabe o seu ascendente? O problema talvez tenha sido o seu ascendente. Por que não pensei nisso antes?

O ascendente.

Há quem diga que Peixes é o “sanatório do Zodíaco”. Vai ver que é isso. Que outra explicação há para o acontecido? Nesta madrugada, cena tão horripilante. Não eram dele aqueles olhos, não eram. Tem certeza que foi ele mesmo? Não houve engano? A polícia é sempre do contra, não respeita quem vive no mundo da lua. A polícia sempre acusa a primeira alma fraca que encontra, é isso.

Não tem sentido.

Logo ele, que sempre estudou na melhor escola. No melhor de tudo. No melhor do melhor. Condições sempre teve de viajar pelo Brasil e pelo mundo. Fala fluentemente, fluentemente. Tudo que é língua.

How are you, mother? I love my mother.

Mammy.

Menino cheio de ternura, um capetinha azul. A coisa mais linda correndo pela casa, bagunçando os móveis, pedalando as plantas. Que maravilhoso futuro o aguardava. Nada parecido com esse futuro, agora. Com esse futuro. E agora,  que horas são essas? Que horas? Minha cabeça anda tonta.

E tonta.

Tudo é um sonho, um sonho. Um pesadelo de mau gosto. Ele nunca foi um menino assim, bruto. Assim, desumano. Deselegante. Desamável, inculto. Muito pelo contrário: ouvia Beethoven, tocava piano. Nunca gostou de rock. Nunca pôs um cigarro na boca, bebida, droga de maconha.

Sempre pedia à mesa suco de morango. E um canudo. Consumia um litro de água por dia. Cuidava da saúde. Sempre dizia: “O corpo é a casa do espírito. E a casa sempre precisa estar arrumada e limpa e protegida”.

Bem protegida.

Amigo e companheiro como ele não havia. Gostava também de poesia. Vivia recitando coisas pelo jardim. No computador ainda pisca um verso assim: “Eu nasci assim capim”. E eu achava aquele verso engraçado, enfim.

Dizia também que o Brasil era um país sem cultura. Sem cultura. Ele ajudava a cultura. Não entendia tanta gente no olho da rua. Ajudava a filantropia. Quantas vezes saiu para dar aula no subúrbio? Adorava os pobres. Pelos pobres era capaz de fazer tudo.

Tudo.

Não quero pensar nisso. Os pobres estragaram o menino, quem sabe? Alguém pôs um mau caminho no seu caminho.

Não, não acredito. É impossível. Fazer o que ele fez deve ter sido a conjugação dos planetas, o movimento da maré. Alguma nuvem má que se aproximou do seu signo. A lua crescente, minguante. A força dos planetas, algum desastre no céu de março. Mercúrio e Plutão em quadratura.

Não sei onde li isso. De repente, a gente vai lembrando de coisa muito maluca. O ascendente dele é Câncer. Lembrei: é Câncer.

Câncer.

Ouço a chegada da viatura. Outros tiros pela casa. Outros tiros pela casa.

O estardalhaço que a imprensa vai fazer do caso. O povo à rua querendo queimá-lo vivo.

Saiam já da minha porta. Da minha porta. Não deixarei que façam isso. É tudo mentira. Não existe sangue. Não estou morrendo, o mundo não está morrendo, ninguém está morrendo. Estamos todos bem. Pai-nosso que está no céu.

No céu, amém.

Venha e abrace sua mãe, hã, hein? Fique calmo, fique tranqüilo. Este inferno é só um inferno astral.

Só um inferno astral, meu filho.

 

Marcelino Freire é autor, entre outros livros, de Balé Ralé (Ateliê Editorial, 2003)