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Turismo para todos

 

O seminário Turismo e inclusão Social, no realizado no Sesc Bauru entre 20 e 22 de outubro, teve como objetivo analisar a democratização do acesso ao turismo – princípio que orienta o Programa de Turismo Social do Sesc São Paulo. O evento apresentou práticas, experiências, projetos e ações não oferecidos pelo mercado convencional, e buscou ampliar o planejamento de futuras práticas inovadoras. Dois participantes do encontro, a mestre em ciências da comunicação na área de turismo, pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Maria José Giaretta, e o doutor em geografia física pela USP e professor do Programa de Mestrado em Hospitalidade da Universidade Anhembi Morumbi, Davis Gruber Sansolo, debatem o tema em artigos exclusivos

 

 

Turismo e planejamento participativo

 

por Davis Gruber Sansolo

Estamos numa época de revolução cultural? Quem promove o turismo? É quem o vende. As empresas que vendem o ecoturismo, por exemplo, nem sempre têm em vista uma atividade de base comunitária. A perspectiva da maioria dessas empresas é, sobretudo, ganhar um segmento de mercado e lucrar o máximo possível com isso. Não se trata de apontar culpados, mas, de qualquer forma, essa orientação termina por se configurar num elemento que dificulta a promoção de um turismo cuja maior parte da renda gerada fique no local visitado. Tanto as agências quanto as operadoras querem abocanhar a maior fatia desse bolo, fazendo com que locais distantes de mercados consumidores – como Amazônia, por exemplo – acabem por ter grandes dificuldades de viabilização de um turismo que tenha como premissa básica a inclusão social, por conta de empecilhos de ordem tarifária ou mesmo em termos de manutenção da própria atividade. Ou seja, do ponto de vista do negócio, ainda há um desafio no campo da promoção e da própria qualidade na prestação de serviços na área turística de base comunitária que contemple um planejamento participativo. Diante desse quadro, os promotores acabam sendo aqueles que vendem a atividade, tornando muito difícil um equilíbrio, principalmente quando percebemos que uma atividade comunitária demanda, sobretudo na atual e incipiente fase do desenvolvimento dessa modalidade no Brasil, financiamento de capital de giro e de manutenção, o que não está disponível no mercado nem nos órgãos financeiros oficiais.

É certo que sempre existem alguns parceiros que acabam promovendo um tipo não convencional de turismo – muitas vezes ONGs preocupadas com o que se chama de turismo responsável e que acabam conduzindo grupos para determinadas regiões. O problema é dar a esse tipo de atividade uma constância com a qual ela possa ser auto-sustentável e, ao mesmo tempo, tornar-se satisfatória tanto para quem a promove quanto para quem usufrui dela.

Mais recentemente no Brasil, o Estado tem assumido a tarefa da divulgação e propagação de destinos e produtos turísticos. Contudo, iniciativas comunitárias e que não dispõem de poder de influência nem poder aquisitivo têm ficado fora da promoção de seus lugares e de eventuais empreendimentos turísticos.

O turismo e a inclusão social – Eu entendo a própria discussão sobre turismo e inclusão social, de uma forma geral, como um paradoxo. Isso porque a atividade turística – na verdade, qualquer atividade econômica dentro do modelo de desenvolvimento brasileiro – tem em si um caráter de exclusão. É pura retórica achar que dentro deste nosso modelo se possa exercer a atividade turística a pleno emprego, trabalho ou inclusão social.

À medida que o turismo sirva como mote para um olhar crítico sobre a sua dinâmica e, ao mesmo tempo, busque novos caminhos – entre eles a discussão política e a participação coletiva –, surgirão formas de apontar para um novo caminho.

Quando eu falo em turismo e inclusão social, considero um caráter de olhar crítico àquilo que já existe. E, ao mesmo tempo, não só crítico, como também propositivo, no sentido da busca por modelos que saiam de uma visão individualista, exclusivamente competitiva e norteada pelos aspectos econômicos. Compreendo que a competição é própria de qualquer negócio e, portanto, importante para o turismo, mas também compreendo que se faz necessária a busca por outras formas que não se centrem somente nesse aspecto, mas que se pautem também pelos valores da sociabilidade, da cultura e do meio ambiente. Em todos os discursos nesse âmbito, tanto no setor privado quanto nas políticas públicas, se evidencia a promoção da iniciativa privada individual, logo, a competição. A alternativa a isso seria exatamente promover ações coletivas, cooperativas, solidárias, que poderiam vir carregadas das idéias já desenvolvidas por empresas com responsabilidade social e ambiental – e que, enfim, são temas que não podem ficar de fora da atividade turística. Qualquer atividade turística, hoje, exclui muitas dessas questões primordiais.

E o que vem a ser a inclusão social em meio a isso tudo? Ela passa por uma questão essencial, que é a do entendimento daqueles que estão direta ou indiretamente envolvidos com a atividade no sentido de uma clareza acerca do que é o turismo nos moldes de hoje e, ao mesmo tempo, de proporcionar o acesso dessas pessoas aos processos de decisão. Ou seja, dentro da discussão sobre como aumentar o número de turistas, sob o viés de incluir os menos capacitados, essa visão chama a atenção para a inclusão também das pessoas que moram nos lugares visitados, os principais atores desse debate.

Existe uma questão que comumente não se coloca muito quando se fala de turismo, que é a sua utilidade, por assim dizer. Para que serve o turismo além de ser um negócio? Não seria o turismo uma possibilidade de intercâmbio entre as pessoas, de troca cultural, de busca da melhoria da vida de uma forma geral? O que ocorre, porém, é que, hoje, o turismo ainda é uma atividade para poucos. Embora o número de turistas tenha aumentado, diante da maioria da população – no Brasil e no mundo –, nós temos um contingente pequeno de pessoas que têm recursos para poder visitar outros lugares. Assim sendo, uma das discussões é, por um lado, como permitir ao visitado participar da discussão do modelo que ele gostaria de desenvolver, e também, por outro lado, como proporcionar o desenvolvimento de um turismo no qual a maioria das pessoas possa ter acesso a viagens em busca de cultura, lazer e conhecimento.

A viagem tornou-se um direito das pessoas, como uma modalidade de lazer. Contudo, o lazer ainda está longe de ser uma prioridade nas políticas públicas. Em minha opinião, o ócio, o lazer são partes da vida do ser humano que ainda ocuparão um outro patamar de importância no cotidiano social.

Trata-se de um desafio muito grande. O discurso do turismo convencional é extremamente elitista. E ao mesmo tempo algumas políticas públicas existentes hoje apontam, de fato, para uma exclusão, para uma seleção do turista que tenha dinheiro para gastar e que teoricamente teria um comportamento adequado ao local. Ao passo que muitas pesquisas mostram que o problema não está na condição financeira do turista, mas sim na gestão pública do local que o recebe. Recentemente eu orientei o trabalho de uma aluna (Silvia Rubino) que mostrava que em Bertioga [litoral de São Paulo] a política pública é de exclusão do turista excursionista, ou seja, aquele faz o chamado bate-e-volta à praia, o famoso “farofeiro”. Porém, ocorre que, na verdade, não existe exatamente um problema com esse tipo de turista, mas sim com o modo como se lida com ele. Espaço existe, o que falta é estrutura para recebê-lo.

A gestão pública dos diversos modelos de turismo é peça fundamental para que se possa administrar a recepção do turista e para que se possa também dar condições para que os diversos tipos de público vivenciem uma experiência turística. Não excluir o visitante, tenha ele que perfil tiver, implica uma gestão local apta a receber a todos. 

Trechos de depoimento concedido à reportagem da Revista E

 

Davis Gruber Sansolo é doutor em geografia física pela USP, professor do Programa de Mestrado em Hospitalidade da Universidade Anhembi Morumbi, membro da equipe do Programa de Promoção do Turismo Inclusivo da Ilha Grande e consultor da World Wild Foundation (WWF) no Brasil em programas de educação ambiental e ecoturismo

 

 

Turismo e acesso para todos: uma ação possível?

 

por Maria José Giaretta

 

“O viajar parece-me um exercício proveitoso. Nele a alma exercita-se continuamente a observar coisas desconhecidas e novas, e não conheço escola melhor para formar a vida, senão propor-lhe a diversidade de tantas outras vidas, fantasias e usos e levá-la a saborear variedade tão perpétua das formas de nossa  natureza”

Montaigne

 

O turismo de fato deveria ser possível para todos, porque, além de uma das mais ricas atividades de lazer realizadas pelo homem, a prática da viagem traz uma série de contribuições ao ser humano. Ao viajar, o homem tem contato com a natureza e com diversas paisagens, na maior parte das vezes, de valor estético do belo, um registro na mente das pessoas tal qual uma caixa-preta de belas imagens. O efeito desta contemplação influi no estado de espírito das pessoas, trazendo uma sensação de vida, de bem-estar e de paz. A viagem traz também o contato com os aspectos culturais de diversos povos por meio de seus registros construtivos e das manifestações culturais diversas – seja pelas modalidades artísticas, pelos hábitos de vida, comidas típicas etc.

No que diz respeito aos jovens, público-alvo do meu trabalho, enxergo o turismo como contribuição à formação. Cada vez que vejo um “alberguista” (denominação que damos aos jovens que se hospedam em albergues) observando uma novidade pela vivência de outro lugar, tenho a esperança de que esta juventude construirá um mundo melhor. Fico mesmo fascinada com as informações que vão se agregar à formação e ao desenvolvimento dos jovens pela viagem.

Ao estudar os hostels (albergues da juventude) como prática de turismo e inclusão sociais, verificam-se relações sólidas entre as ações, práticas e um encontro de filosofia e ideais entre as partes. Mathieson (1990) coloca que “o objetivo do turismo social é assegurar que seja acessível a todas as pessoas”. O turismo é, por si só, um fato social. Não existe turismo que prescinda de seu lado social, quer seja de negócios, quer seja de desportos, religião, cultura, extensão profissional, arqueologia ou ecologia. A atividade turística resulta da interação social permanente de estímulos para a cultura ou mesmo para a ascensão social. Fernando Luiz Vieira Ferreira, em seu livro Turismo Social (1996) refere-se à prática do turismo como um “conjunto de relações e de fenômenos resultantes da participação (...) das camadas sociais com rendas modestas, participação que se torna possível ou é facilitada por medidas de caráter social bem definidas”.

Conforme verificamos nos conceitos e colocações selecionados e apresentados acima, comprovamos que uma das propostas do turismo social é criar condições de acesso à sua prática por pessoas que, por falta de poder aquisitivo ou por falta de hábito, permaneciam fora dessa dinâmica.

No caso específico do movimento alberguista – tanto mundial quanto nacional ou local –, desde o surgimento do alberguismo, em 1909, as associações e federações da área buscam inserir principalmente os jovens na prática do turismo, justamente por se tratar de uma atividade rica para o desenvolvimento do ser humano. Como disse Italo Calvino: “No curso da viagem há sempre alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte não é nunca o mesmo que regressa”.

Voltando aos hostels, presentes no Brasil desde a década de 70, tais locais foram definidos pela Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), na década de 80, como sendo órgãos oficiais de turismo da União: “Meio de hospedagem peculiar de turismo social, integrado ao movimento alberguista nacional e internacional, que objetiva proporcionar acomodações comunitárias de curta duração e baixo custo, com garantia dos padrões mínimos de higiene, conforto e segurança”.  O fundador do movimento no Brasil, o professor Joaquim Trotta, definiu-os da seguinte forma: “Os albergues da juventude internacionais existem para ajudar jovens a viajar, conhecer e amar a natureza, e apreciar os valores culturais das pequenas cidades e grandes metrópoles”.

Conforme verificamos no conceito do fundador do movimento alberguista brasileiro, ele insere no ato de viajar, conhecer e amar o meio ambiente. A relação entre o hostel e o turismo social se dá a partir das facilidades em possibilitar a prática do turismo para  pessoas que não teriam condições de usufruir sua versão convencional .

Embora em quase todos os lugares do mundo a rede de hospedagem não estabeleça limite de idade para freqüência dos hostels, a maior parte do público ainda é constituída por jovens – que se encontram numa faixa etária repleta de mudanças, idade, padrão de vida, início e término da formação universitária, início da vida profissional, busca da quebra do cotidiano, quebra de barreiras, teste dos limites, conquista de novos horizontes, ou seja, uma fase cheia de ritos de passagem. No entanto, a parcela da demanda que não se encontra na faixa etária considerada jovem é constituída por pessoas que buscam uma forma de viajar diferente da do turismo de massa.

O termo juventude é polissêmico, revestindo uma série de significados, mas três adjetivações principais estão associadas a ele: um período etário situado entre a infância e a juventude, um certo estado de espírito ou um estilo de vida (Schmidt, 2001).

Ao passo que Eric Hobsbawn, em Era dos Extremos (1994), coloca que “a cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural; ela revolucionou os modos, os costumes, os meios de gozar o lazer e as artes”. Ou seja, o movimento alberguista tem de trabalhar com essa característica de mudança de comportamento constante, por parte da demanda e para possibilitar a prática do turismo para este público. “A juventude deve ser considerada uma fase crucial para a formação e a transformação de cada um, quer se trate da maturação do corpo e do espírito, quer no que diz respeito às escolhas decisivas que preludiam a inserção definitiva na vida da comunidade” (Levi & Shimitt,1996).

Conforme citado anteriormente, a juventude encontra-se numa fase de transição, inclusive de condições próprias para viajar, por isso os hostels possibilitam acesso à prática da viagem em função de várias razões. Entre elas, a possibilidade de viajar só, mas não ficar sozinho durante a viagem, a de encontrar pessoas da mesma idade ou com o mesmo propósito de viagem, fazer novos amigos, realizar troca de cultura, experiência e informações sobre as necessidades e os desejos comuns e viajar mais tempo gastando menos. Ao mesmo tempo, esses albergues mostram-se lugares propícios para o desenvolvimento comunitário, fomentando o respeito e desenvolvimento das pessoas e do meio ambiente para a educação, para o lazer, para a prática da aventura com segurança, para o autoconhecimento, a tolerância e o espírito comunitário.

De acordo com a Federação Internacional de Albergues da Juventude (International Youth Hostel Federation, IYHF), os princípios filosóficos desses albergues devem ser voltados para “promover educação para jovens de todas as nações, mas especialmente para jovens com condições econômicas limitadas, encorajando-os ao desenvolvimento do conhecimento, amando e cuidando da região, apreciando os valores culturais nos lugares em todas as partes do mundo, promovendo os albergues da juventude sem discriminação de raça, cor, religião, sexo, classe social ou política, desenvolvendo o melhor entendimento entre os homens no seu país e fora dele”. O órgão traçou como missão da organização mundial promover o intercâmbio cultural por meio da segurança, higiene, conforto, hospitalidade e bom preço, premissas básicas aos empreendimentos que pertencem à rede oficial.

Como resultado, registramos que só no estado de São Paulo, onde a Associação Paulista de Albergues da Juventude (Apaj) completou 20 anos em março de 2004, já passaram por esses estabelecimentos mais de 400 mil jovens associados e praticantes desta forma de viagem. Em resposta à pergunta que dá nome a este artigo – se é possível uma ação de acesso ao turismo para todos –, cito o artigo 180 de nossa Constituição: “A União, o Estado, o Distrito Federal e os municípios promoverão e incentivarão o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico”.

 

Maria José Giaretta é mestre em ciências da comunicação, na área de turismo, pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e autora do livro Turismo da Juventude (Editora Manole, 2003)