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Entrevista

 Renina Katz

 

A artista plástica, homenageada com uma exposição na Pinacoteca do Estado de São Paulo, analisa a posição da gravura no contexto da arte brasileira e fala sobre a importância de repassar conhecimento às novas gerações

 

 

A carioca Renina Katz cursou pintura na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e licenciou-se em desenho pela Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1950, estudou gravura em metal com Carlos Oswald, no Liceu de Artes e Ofícios, e xilogravura com Axl Leskoscheck, na Fundação Getulio Vargas.  Mudou-se para São Paulo em 1951, lecionou desenho e gravura no Museu de Arte de São Paulo, de 1952 a 1955, e publicou seu primeiro álbum de gravuras, Favela, em 1956. De 1956 a 1988, deu aulas de programação visual na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP). Em entrevista exclusiva à Revista E, a artista plástica falou sobre a história da gravura no Brasil, sobre a carga política em trabalhos seus e de seus contemporâneos e sobre o ofício de ensinar arte.

 

Podemos começar falando sobre essa produção que está na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Como foi a realização desse trabalho?

O que está lá na Pinacoteca – e isso está explicado inclusive no catálogo da exposição – é o resultado da escolha de 50 peças das 300 que eu já doei para lá. Eu não tive nenhuma influência nessa escolha – ainda bem, ela está perfeita e a montagem é maravilhosa. O diretor da Pinacoteca, Marcelo Mattos Araújo, junto com outras pessoas, entre elas o doutor José Mindlin, proprietário de grande parte de minha obra, não tiveram a intenção de fazer uma retrospectiva. Eu diria que é um resumo. Numa única vitrine há coisas dos anos 50, 60 e alguns álbuns que nunca tinham vindo à luz por ser edições muito pequenas e já com destino a colecionadores. Por isso acho a idéia da exposição tão boa. Outra parte do material vem do que eu fiz em litografia, principalmente no século passado [risos] e neste século, além das gravuras em metal. Acho que a exposição está muito bem montada, como disse. Enfim, não haveria forma melhor de comemorar o aniversário do doutor Mindlin. São esses os motivos, por assim dizer, dessa mostra: a comemoração dos 90 anos do bibliófilo José Mindlin e a inauguração do gabinete de artes gráficas, que é uma velha reivindicação dos artistas.

 

A gravura brasileira tem comprovada importância, mas há pouco espaço para exibi-la. Há preconceito nisso?

No Brasil talvez a gravura não tenha mesmo muito espaço, mas fora ela tem. Todas as vezes em que houve uma representação brasileira em exposições no exterior, as gravuras apareciam entre as obras escolhidas. Eu me lembro que em 1956, na Bienal de Veneza, a representação brasileira era só de gravuras, inclusive minhas. Ou seja, isso sempre dependeu muito dos curadores. Ela não tem aqui no Brasil muito espaço mercadológico. Agora, do ponto de vista artístico, a gravura é muito respeitada. Isso porque ela exige uma paciência enorme, demanda muito conhecimento do ofício – faço questão dessa palavra. Não dá para deixar “baixar” um anjo. É preciso uma disciplina muito grande para chegar ao objetivo que se quer, não pode haver pressa, tampouco fazer concessões. É possível reparar uma coisa muito curiosa quando se fala em gravura: sempre ela é boa ou ruim, nunca frívola. Mesmo uma pessoa que conheça bem os mecanismos e as técnicas do estilo, sem uma boa compreensão do que é a gravura, não realiza, não chega lá. Tanto é que poucas vezes ela é objeto de decoração. Ela não cumpre esse papel. Eu não tenho nada contra objetos de decoração, acho a Capela Sistina [no Vaticano, em cujas paredes o pintor, escultor e desenhista italiano Michelangelo pintou O Juízo Final, no século 16], que tem esse sentido, maravilhosa. Mas existe, hoje, um lado mercantil da decoração que está dominando o mundo.

 

Por que a senhora acha que a gravura não se presta a decoração?

Primeiro porque há uma noção equivocada de que o papel [suporte no qual é feita a gravura] é um estágio de pré-produção da grande obra artística. Isso não é verdade. A obra gravada de Goya [pintor e gravador espanhol] tem a mesma importância de todo o restante de sua produção. Mas eu não sei por que aqui no Brasil se pensa assim. Além disso, nós temos um elenco de gravadores maravilhosos. Se o papel é alvo de preconceito daqueles que preferem a tela, eu aviso que a tela também exige cuidados. Ambos são feitos da mesma matéria: ou linho ou algodão. Se você expuser uma tela ao sol, ela racha. O papel também. Eu tenho uma aquarela feita em papel que tem 30 anos e está perfeita. Mas porque ela está num lugar adequado. Ou seja, ela recebe todos os cuidados de que uma obra de arte necessita. E isso vale para trabalhos em qualquer suporte, papel, tela ou o que seja. Se você puser uma escultura feita de um determinado material sob a chuva, ela vai apodrecer. Cuidados são mesmo necessários. Veja o livro. Se ele ficar guardado num ambiente úmido, ele mofa. A gente mofa [risos].

 

Certa vez, Maria Bonomi [gravadora e pintora brasileira, entrevistada da Revista E de junho de 2002] disse que achava que os gravadores conseguiram imprimir um traço de brasilidade às artes plásticas que a pintura não teria alcançado. O que a senhora acha disso?

Maria Bonomi tem uma certa razão, sim. Eu acho que a gravura brasileira não é parecida com nenhuma outra. Já a pintura é muito sujeita à informação – ou pressão, pode-se dizer – que vem de fora. Como a nossa gravura teve de crescer sozinha, meio órfã, ela acabou criando uma natureza própria. É só ver, por exemplo, os gravadores gaúchos com o seu cunho quase regionalista; ou os nordestinos com seus cordéis, que têm uma raiz medieval européia, mas que se tornou tipicamente brasileira. Se observarmos esse tipo de gravura de ilustração popular vinda do mundo inteiro, é possível reconhecer qual é brasileira. Esse dado é importante. Outro fato que é muito interessante na gravura, e que rendeu muita discussão no Brasil, é que ela não provoca escassez. Ou seja, como é arte de grandes tiragens ela torna-se de todo mundo, e há algumas pessoas que não gostam disso. São pessoas que não compreendem o sentido de divulgação de uma obra de arte e querem exclusividade, porque dá prestígio.

 

Em que momento a senhora acha que se deu o encontro da gravura brasileira com a pintura?

A gravura no Brasil começa a surgir a partir dos anos 30 – Lívio Abramo foi certamente a grande figura dessa época. Ele deu nobreza à gravura, era um desenhista maravilhoso e insistiu na gravura. Ele viveu muito tempo fora do Brasil, e sua gravura é realmente impecável. Lívio entendeu a exuberância, e isso aparece no tratamento de seu trabalho. Na década seguinte, nos anos 40 e no Rio de Janeiro especialmente, aconteceu um desses acasos: apareceu um gravador vienense, Axl Leskoscheck, que foi meu professor, uma pessoa extremamente aberta e encantada com o Brasil. Aliás, ele dizia do Brasil que se tratava de um país esquisito. Pois se podia encontrar na natureza o magenta misturado com o verde, num contraste exuberante. “Tudo é contrastante aqui”, ele dizia. Axl teve uma grande importância, ele nos deu tudo o que podia em termos de conhecimento.

 

Olhando a trajetória da gravura no século 20, percebem-se duas implicações fortes: a primeira é o caráter regional que ela acaba adquirindo e a segunda, a questão política. Como a senhora vê isso?

A minha série Retirantes tinha esse componente político, ela dava um reflexo daquilo que a gente achava uma injustiça social. Mas nós tivemos também influência mexicana, do Leopoldo Mendes, do Ateliê de Artes Gráficas, que tinha esse viés, e do Posada, que era um gravador diário, cujos trabalhos eram impressos em jornal e tinham esse aspecto do comentário, por assim dizer, da vida política. O que já vinha desde Daumier, que fazia isso magnificamente bem com sua litografia. Enfim, todas essas heranças acabaram influindo. Toda a gravura pode ser um veículo de comunicação, de mensagem, de uma determinada posição. E, no caso, de uma posição política. Isso depois foi perdendo um pouco o sentido. O curioso é que os artistas que seguiram esse caminho, no que eu me incluo, tinham uma visão externa do problema. O que levou a algo um tanto quanto estetizante nas nossas gravuras. Elas circulavam nos meios em que a gente achava que elas não iriam circular. Eu me lembro de ter feito uma exposição no Sindicato dos Gráficos, há muito tempo, e todas as minhas gravuras foram extremamente criticadas. Isso porque elas não tinham nada a ver com eles, era a minha visão do mundo deles, mundo do qual quem entendia mesmo eram eles.

Eu fazia uma ilustração de algo que eu via de fora, com muito carinho e até com a intenção de querer fazer alguma coisa por aquilo, mas que era uma visão realmente de fora. Isso é complicado, porque eu estava querendo fazer uma reflexão sobre um problema sério: a disparidade da distribuição de renda, para começar.

 

A senhora pensava que essa reflexão funcionaria de alguma forma?

Na ocasião, sim. Mas aconteceu que minha exposição Retirantes foi para o Museu de Arte Moderna de São Paulo! Onde mais eu iria expor? Quando houve essa minha exposição no Sindicato dos Gráficos, nenhum dos freqüentadores se comoveu com ela. Isso nos fez, a nós, os artistas, refletir. Concluímos que não era isso que se esperava de nós. É como diz o Joãosinho Trinta: “Quem gosta de pobreza é intelectual”.

 

Na verdade sua obra escapa daquele realismo socialista tradicional, com aqueles operários vigorosos etc., não?

É uma contradição. O realismo socialista soviético falava de uma sociedade em construção. Então os operários eram formidáveis, musculosos, bem vestidos etc. Nos países de terceiro mundo isso não existe. As mulheres na série Favela, por exemplo, eram sensuais e elegantes porque faziam muito exercício. Subir uma favela com uma lata d'água na cabeça não é fácil. São mulheres bonitas e todo mundo sabia disso. Está aí a crioula carioca, muito valorizada. Mesmo em meio àquela pobreza, elas mantinham uma certa dignidade. Por isso, as mulheres que aparecem nos meus desenhos são muito dignas, não há ninguém mendigando. Eu achava que era o mínimo que eu podia fazer em termos de valorização. Já em Retirantes havia uma coisa pesada de tristeza. Há uma gravura nessa série, chamada Pau-de-Arara, em que não se vê ninguém bonito ou contente. As crianças não são bonitas, são barrigudas, como eram de fato. No que diz respeito ao meu trabalho nessa perspectiva social, eu tiraria o socialista e deixaria só o realista. Ou então um realismo social... Mas esses títulos são muito complicados. Não designam de fato os trabalhos. São categorias criadas. Aliás, todos os títulos são complicados. O que seria o expressionismo? Expressão? Expressão existe desde a pré-história. A mesma coisa o impressionismo. A meu ver, esses nomes todos só servem à catalogação.

 

E sobre as cores na sua obra? Sobre a alternância delas com o preto e branco...

Por incrível que pareça, quando eu faço uma gravura em preto e branco a cor está implícita. Afinal, tem luz e sombra. Eu apenas uno as pontas, mas há gradações de luz e sombra. Se for aplicada uma cor, o resultado funciona. É sempre a questão da luz. Além disso, a cor sempre me fascinou. Não me formei gravadora, não havia isso na Escola de Belas Artes, formei-me em pintura. Logo, ela está presente na minha vida de maneira muito forte. Além disso, tenho períodos. Agora, por exemplo, parei de fazer gravuras em metal e estou produzindo uma série grande de aquarelas. Já vinha fazendo isso, de certa forma, intercalando com outros trabalhos. Por exemplo, tenho uma aquarela de 1 metro por 70 centímetros. Isso para desmistificar um pouco essa história de que aquarela tem de ser aquela coisa pequena pintada à beira de um lago ou ao pé de uma montanha, à moda dos ingleses. Com uma garrafinha d'água do lado e fazendo anotações que só depois viram quadros grandes. Em 1986, quando fui à Bienal de Veneza, levei aquarelas grandes também. A curadora, Radha Abramo, achou razoável. Era uma minha e outra de Geraldo de Barros. Ela me perguntou se eu teria algum preconceito com relação a isso. Respondi: “Eu não, os outros é que têm”. Levamos, ficou muito bonito. Além disso, gosto de papel porque para mim ele não é suporte. A tela, sim; sobre a tela eu pinto, mas o papel incorpora a tinta. Na aquarela, por exemplo, o papel é o ponto zero da luz, o branco, a partir de onde você começa velando e criando transparências luminosas. Por isso digo que ele não é suporte. Na litografia, a cor entra no papel, e, dependendo do tipo com o qual você trabalha, ele valoriza ou não a imagem. Isso sempre me fascinou. Tanto que eu andei fazendo umas experiências em digigrafia [técnica por meio da qual um desenho é digitalizado e manipulado em um programa de computador para tratamento de imagens e depois impresso], mas não é a mesma coisa.

 

E sobre o seu lado de professora? É interessante esse papel do artista que se propõe a formar.

Eu gosto de ensinar, principalmente porque sou brasileira. E, no Brasil, se você sabe alguma coisa, tem de passar para a frente, e imediatamente. E, assim, lá fui eu. Talvez movida por uma coisa meio idealista, quiçá utópica. Mas decidi que, o que eu sabia, iria ensinar. Aliás, ensinar, não. Mas, sim, fazer com que as pessoas aprendessem. Digo isso porque ensinar, para mim, sempre soa como algo que dá certa direção. Já no ato da aprendizagem você tira recursos por meio de uma troca. Eu passo uma informação, um conhecimento, e o aluno trabalha do jeito que ele pode, quer e na dimensão dele. E, depois, eu converso com ele sobre isso, abrindo os caminhos. Eu acho que esse é o papel do professor. Nenhum aluno meu tinha traços parecidos com os meus em seus trabalhos. E isso era algo que eu fiscalizava muito. Passar o conhecimento não é dar uma direção. Esse tipo de sectarismo não é bom. Primeiro porque o aluno fica com dois trabalhos: aprender e desaprender – afinal ele terá de encontrar o próprio caminho, logo, não é uma boa ajuda. O interessante nesse meu lado de professora é que, embora eu fosse muito rigorosa – o aluno tinha de apresentar tudo o que podia dar –, a avaliação era sempre feita com a presença ele, nunca a distância. Coisas como sentar com ele e perguntar “você acha que isso está bem resolvido?” ou “por que você escolheu esse caminho?”. Ou seja, eu o fazia tomar consciência daquilo que ele estava fazendo. E isso dava um trabalho danado. Mas parece que deu algum resultado [risos]. E foi bom para mim também, porque são tantas respostas que a certa altura a gente se vê obrigado a rever algumas coisas. Coisas como “e não é que esse menino propôs algo que eu nunca tinha pensado?”. Não é um processo de cima para baixo.

 

Como a senhora acha que se ensina arte?

Não se ensina, você dá um conjunto de condições. Eu fui parar na faculdade de arquitetura [FAU-USP] porque tinha amigos que achavam, naquela época, que a formação do arquiteto tinha de incorporar a arte. E eu tinha um amigo, Flávio Mota, um professor de história da arte fantástico, que me dizia que a obra de arte é o aperfeiçoamento da subjetividade da vida. Ou seja, o que a gente fazia era criar situações objetivas para o aperfeiçoamento dessa subjetividade que iriam se refletir na vida dos alunos. Há pessoas que dizem que eu “perdi” muito tempo dando aula. Mas quem disse que eu perco?

 

Talvez por um certo preconceito de que o artista que “não deu certo” parte para dar aulas.

Exato, como o poeta que não deu certo vai ser crítico. Isso é uma coisa ridícula. Ora, Leonardo da Vinci não tinha lá o seu ateliê que formava artistas, assim como Michelangelo? Não tem essa de artista que não deu certo virar professor. Afinal, se a pessoa não deu certo como artista pode não dar também como professor. Eu tive professores fantásticos na minha vida e convivi com arquitetos maravilhosos que eram professores. Porque eles tinham, inclusive, uma postura política: a de formar bons profissionais. É assim que se constrói uma cultura e uma civilização. Além disso, esse tipo de pensamento passa uma falsa visão do artista. Ele fica como uma figura olímpica, destacado como uma espécie de paradigma endeusado. E, diante disso, se você conseguir descobrir a experiência de vida dele, muito bem; se não, azar seu. Mas ele, artista, acaba por não dizer a que veio. Além disso, há motivos como competição mesmo. Eu já ouvi coisas como “não vou abrir o que eu sei para não criar concorrência”. Colegas meus diziam: “Mas você fica ensinando tudo o que sabe, está criando concorrentes”. Eu respondia: “Tomara que sim”.

 

E em que estágio a senhora acha que estão as artes plásticas brasileiras?

Eu nunca vi tanta exposição na minha vida. Assim como nunca vi tanto livro, inclusive no Brasil, sobre artistas como vejo agora. O que é uma coisa boa. Mas o mundo inteiro está num momento de trégua. Certa vez, li que na história do mundo sempre há períodos de alta “artisticidade” e outros de baixa “artisticidade”. E é isso mesmo. Vivemos de picos de criatividade, nada se mantém no nível das alturas, há os movimentos, e, às vezes, esses movimentos de baixa “artisticidade” têm o valor de manutenção para poder criar condições para as épocas de alta “artisticidade”. E o Brasil está incluído nisso tudo. Eu nunca vi tanta produção no Brasil como agora. Claro, há coisas mais bem realizadas que outras, mas há uma espécie de impasse. Estamos num período de transição.