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Dança

Arte em movimento

 

A dança contemporânea deixa de mostrar grandes enredos para apresentar o cotidiano

 

 

Quando o assunto é dança, para grande parte dos amantes dessa forma de arte o que vem à mente são os movimentos harmoniosos e visualmente aprazíveis de um corpo esguio embalado pela cadência do ritmo. Até mesmo em tempos de música eletrônica – por mais estranha que ela soe a ouvidos tradicionais –, o compasso entre o que os DJs tocam e o que se dança marca a dinâmica das raves, festas que costumam varar a noite e invadir o dia seguinte.

No entanto, assim como nas artes plásticas, cinema, teatro ou música, expressões que aboliram cânones – sobretudo a partir do início do século 20 –, a dança também soltou as amarras. O que equivale a dizer que vai longe o tempo em que a graça diáfana da bailarina reinava exclusiva na cena, hipnotizando a platéia com movimentos ao mesmo tempo delicados e de alto grau de dificuldade. Esse tipo de espetáculo continua ocupando milhares de palcos mundo afora. No entanto, na abrangente seara do que se convencionou chamar de dança contemporânea, a figura principal não é mais a primeira bailarina.

Hoje, tudo pode acontecer no palco: dança sem música, improvisações e até a não-dança. Isso mesmo. O corpo parado no palco, sem rodopios, saltos ou movimento algum. Aliás, nem mesmo o espaço sagrado do palco é imprescindível, assim como figurinos ou cenários. Há quem faça performances em qualquer espaço, vestindo a roupa do dia-a-dia. “A dança moderna rompeu com as tradições do clássico”, explica a pesquisadora Cássia Navas, pós-doutora em dança pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). “E a dança contemporânea fez isso com a dança moderna. A principal mudança se deu na forma da narrativa, que deixou de lado os grandes enredos e se concentrou em mostrar o cotidiano, as pequenas histórias da vida do homem.”

Insisto, logo existo

No que toca ao público, há desde os adeptos radicais até os que alegam falta de identificação para entender novas formas de expressão. De todo modo, assim como as artes plásticas, campo no qual a polêmica que envolve a nova onda de instalações reacendeu a chama da discussão artística, a dança divide opiniões. “A arte contemporânea caracteriza-se por propor uma discussão sobre ela mesma por meio das diversas formas de expressão artística”, afirma Cássia. “No palco, é como se a discussão sobre a dança substituísse a própria dança. Nem sempre há técnicas envolvidas. Mas sempre há uma construção.” De outro lado, há vozes, como a do escritor e crítico de arte Ferreira Gullar, que questionam essa nova produção. “Existe uma tese da arte conceitual, da arte feita só por idéias, que para mim não tem cabimento”, afirma o crítico, categórico. “Para refletir, preciso mesmo é ler filosofia, não vou me ocupar do estilo de tal artista para fazer isso.” Para ilustrar seu ponto de vista, Gullar lembra de um concerto que ouviu em São Paulo e que o deixou estupefato. Não exatamente de uma maneira positiva. “Era uma enceradeira e um liquidificador. Isso é um absurdo!” Já, para  Cássia Navas, hoje existe uma arte que também quer ter voz.  “Tomemos, por exemplo, a não-dança”, diz a pesquisadora. “O bailarino chega ao palco e fica parado, olhando para a platéia. Tem-se a impressão de que qualquer um faria aquilo, mas o fato é que, apesar dessa impressão, ninguém fez aquilo antes.” Em defesa da reflexão sobre essa nova realidade artística, a professora cita o escritor italiano Umberto Eco, que certa vez, num seminário, teria dito que a realidade é aquilo que insiste. “E a dança contemporânea, conceitual, está aí, é uma realidade”, analisa a pesquisadora.

 

Arte e reflexão

A pergunta é: existe uma tendência? Segundo os estudiosos, não existe apenas uma, e sim várias. No entanto, mesmo em meio a essa anarquia criativa, é possível detectar alguns pontos em comum. “O artista cifra e nós, público e pesquisadores, deciframos”, afirma Navas. E, nesse baile de códigos, uma das principais tendências apresentadas pelos grupos é a valorização de elementos regionalistas em seus trabalhos. “Muitas vezes os trabalhos têm algo a ver com o lugar de onde seu autor vem, utilizando a música local, por exemplo. É, na verdade, um contraponto à globalização”, explica.

No Brasil, se poderia dizer, existe um significado “a mais” no que se refere a esses elementos regionalistas. “É também um modo eficaz de estabelecer uma comunicação mais potente com o público”, diz a pesquisadora. Alguns grupos propõem uma reflexão sobre o mundo contemporâneo. Porém, as discussões esquentam quando a questão é aonde quer chegar essa reflexão. “Na dança há desde o bailarino que leva anos para se aperfeiçoar até o que fica parado no palco, e que também leva o patrocínio. Mas, claro, cada grupo tem sua proposta. Há muita coisa boa e muita coisa ruim”, completa a pesquisadora. O ambiente volátil não deve desanimar os amantes dessa manifestação artística que acompanha a história do homem. “Só insisto com o público para que não desista da dança”, pede Navas. “Estamos na era em que o artista mostra o que bem quer, mas a prerrogativa do público é a mesma: não se acanhe por não ter gostado, mas procure outro espetáculo. É como acontece com o cinema ou a televisão. Ninguém deixa de ir ao cinema porque não gostou do último filme ao qual assistiu, tampouco desliga a televisão porque a novela do momento é ruim. Ou seja, a dança também merece essa tolerância.”

 

 

O país da dança

Em sua quarta edição, a Bienal Sesc de Dança, que acontece de 10 a 15 de novembro, reúne dezenas de grupos vindos de todo o Brasil

 

Se na teoria a dança contemporânea parece difícil de entender, talvez a prática contribua para esclarecer o que anda acontecendo entre os agentes dessa manifestação artística em mutação. Nada melhor do que uma farta vitrine para ajudar os interessados a escolher o que mais lhes agrada. Esse é um dos méritos da já tradicional Bienal Sesc de Dança, realizada pelo Sesc Santos. Em sua quarta edição, o evento traz cerca de 30 grupos, entre convidados e selecionados, que apresentarão de 10 a 15 de novembro trabalhos inéditos, especialmente preparados para a ocasião. Nesse imenso painel, um ponto em comum: o Brasil. “A nossa diversidade étnica e cultural foi o ponto de partida para a escolha do tema: o corpo brasileiro na dança”, afirma Évelim Moraes, técnica do Sesc. Nessa atitude de mexer com a tradição, a ordem é transcender e substituir as palavras pelos movimentos. O corpo auxilia a contar histórias e a traduzir as múltiplas culturas das quais é feito o País. A programação completa do evento pode ser conferida no Em Cartaz desta edição.