Postado em
História extra-oficial
Como os negros no Brasil ainda não conquistaram a liberdade
MARGARIDA MARIA KNOBBE
|
A Lei Áurea, proclamada em 13 de maio de 1888, declara extinta a escravidão no Brasil com poucas palavras em dois artigos:
"Art. 1º - É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.
"Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário".
As disposições em contrário, no entanto, não foram revogadas nos corações e mentes. Os episódios de negação da humanidade dos negros resistiram, assim como a destruição física e cultural dos indígenas, apelidados pelos colonizadores de "negros da terra".
Havia a necessidade de um terceiro artigo, cuja redação poderia ser:
"Art. 3º - É obrigação do Estado e da sociedade cuidar da integração social do negro para reparar o horror da escravidão".
Na opinião da cientista social e professora da Universidade de São Paulo (USP) Maria Lúcia Montes, a implementação do texto não escrito, que se esboçava no desejo de abolicionistas adeptos da monarquia, como José do Patrocínio, Antônio Rebouças e Joaquim Nabuco, foi descartada pelos republicanos que, em 1889, assumiram o governo do país.
Houve até um movimento que exigia o pagamento de indenização aos ex-donos pela mão-de-obra perdida. Rui Barbosa reagiu: "Se alguém deve ser indenizado, indenizem os escravos!" Porém, último país do mundo a aderir formalmente à abolição, o Brasil trilhou um caminho diferente daquele dos Estados Unidos. Apesar do racismo explícito e da segregação, os norte-americanos permitiram a posse da terra aos ex-escravos e o acesso à educação. Outra diferença é que nos Estados Unidos aportaram 600 mil negros e no Brasil chegaram 4 milhões.
A indignação de Rui Barbosa não encontrou eco entre as oligarquias nacionais. E sua revolta transformou em cinzas a memória desse impasse: mandou queimar os documentos de prova de propriedade de escravos e das pressões por indenização.
Os auto-identificados como afro-descendentes, que hoje representam 46% da sociedade brasileira, foram e ainda são tratados como "sem direitos". No mercado de trabalho, o homem negro ganha aproximadamente 30% a menos do que a mulher branca, que, por sua vez, já se encontra na base da pirâmide, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O negro passa menos tempo nos bancos escolares e, quando consegue chegar à universidade, não garante um rendimento semelhante ao dos brancos. As conquistas de cidadania foram tímidas e descontínuas durante todo o século 20, embaladas por um racismo cordial que só recentemente começou a ser desmascarado.
Neste início de século 21, três principais forças atuam sobre a questão: o mercado de consumo, valorizando a diversidade; grupos organizados política e culturalmente, e o Estado, com a criação de políticas afirmativas.
Soma de demandas
Do lado do mercado globalizado, há a tendência de que o produto, além de dar lucro, associe sua imagem a uma idéia de cosmopolitismo. As empresas estão percebendo que há um potencial de consumo que foge dos modelos hegemônicos construídos pela cultura ocidental, com relação ao cabelo, à cor da pele, ao uso do corpo.
Há quem se posicione contra essa exposição, alegando que, no fundo, ela ilumina uma imagem inacessível para grande parte da população. É certo que a maioria dos afro-brasileiros não tem acesso aos produtos que uma revista como "Raça", por exemplo, anuncia. Ou que a propaganda acaba escondendo mais do que revelando. E há quem considere que os efeitos são positivos porque detonam um processo de transformação, de auto-imagem positiva.
Ao lado do Estado e do mercado, é muito relevante a atuação das organizações políticas e culturais. A política formal está mudando, analisa o professor do Departamento de Antropologia da USP Vagner Gonçalves da Silva, "porque não se trata mais de apenas reger direitos e deveres; trata-se também de olhá-los de acordo com as culturas que constroem formas de tradição e formas de compreensão do mundo".
Além das reivindicações de direitos, essa atuação micropolítica comporta grupos voltados para a cultura negra e a religiosidade. "Recentemente", lembra Vagner Gonçalves, "houve um revival do folclore negro, enfocando expressões que estavam em ampla decadência, como congada, samba-de-roda, etc. O Sesc de São Paulo tem um trabalho fundamental nesse sentido, sobretudo em sua unidade da Pompéia."
Nesse contexto se coloca um problema que é de reflexão e de ação prática. Como é possível construir uma idéia de Estado universal se temos de contemporizar as diferenças existentes, sejam de cultura ou as que se referem à biologia dos corpos? A tendência internacional é de criar legislações diferenciadas para necessidades específicas, como no caso das cotas para negros, para mulheres, para deficientes. Ou então são as reparações a agressões de um povo em relação a outro, como acontece com os judeus.
O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em viagem oficial à África, pediu perdão pela escravização dos africanos. É claro que não foi seu governo o responsável, mas não podemos esquecer que a população brasileira é herdeira tanto da chibata do senhor quanto da dor do escravo torturado. E com esse paradoxo temos de nos haver.
Para alguns críticos, atrelar a conquista de direitos políticos à visibilidade cultural é o mesmo que reintroduzir o racismo num país no qual essa questão estava debaixo do tapete, ou criar um racismo invertido. Por outro lado, para muitos, como o pesquisador Vagner Gonçalves, "é melhor que a questão seja colocada às claras".
Tudo o que se refere ao afro-descendente tem raízes e conexões que se espalham pelo planeta. Envolve fatos e contextos ainda em grande parte expulsos dos livros escolares. O surpreendente é que, mesmo que extra-oficialmente, a realidade "raspada" das páginas da história ganha visibilidade. Através de pesquisas científicas e artísticas, de novas leis e de novos personagens, antigas faces, velhos dados estão sendo recuperados.
Racismo cordial
A sucessão de articulações contra a discriminação parte da identificação de que o racismo brasileiro é heterofóbico, ou seja, nega absolutamente as diferenças, funcionando como um racismo cordial. Para informações mais palpáveis, o último censo do IBGE (2000) foi fundamental, detalhando melhor a questão da auto-identificação étnica e até da religiosidade, "com a possibilidade de as pessoas se dizerem adeptas das religiões afro-brasileiras, e não mais só do espiritismo, como antigamente", esclarece Vagner Gonçalves.
Mesmo assim, pela própria relação estrutural do negro, é difícil falar de racismo e de preconceito no Brasil. "Por uma situação histórica e cultural, o racista ou preconceituoso é sempre o vizinho", explica o pesquisador.
A cientista social Maria Lúcia Montes é da mesma opinião: "Quando se pergunta a um brasileiro se ele é racista, a negação é a resposta mais comum: "Não, imagine... tenho tantos amigos negros". Se a indagação for: "Você conhece alguém que é racista?", quase sempre a resposta é afirmativa: "Ah! Conheço um monte. Minha mãe, meu pai, meu irmão, meu vizinho..."
Essas respostas são "honestas, porque não há ódio racial contra aquele negro conhecido. A lógica é a de que com o negro meu conhecido não tem o menor problema. Agora, o negro desconhecido é sempre suspeito", diz Maria Lúcia.
Costuma-se também esconder o racismo atrás do biombo da piada. No mês de junho deste ano, alunos da faculdade de direito mais tradicional do país, a da USP, no Largo de São Francisco, publicaram um informativo onde estavam impressos dizeres como: "A escravidão como salvação dos negros africanos". Diante dos protestos quanto a tais insanidades, os responsáveis disseram que foram mal-interpretados, não eram racistas e sua intenção era brincar com a hipocrisia e o preconceito dos outros.
Se a comparação for entre países, os brasileiros dizem que racista é o norte-americano. Ou seja, continua a ser o vizinho. Acontece que, no Brasil, raça, cor, status e classe social estão intimamente ligados. Se o negro é rico, ele perde a cor. Passa a ser visto pela condição econômica. Ao mesmo tempo, o racismo se perpetua por meio da restrição da cidadania, da imposição de distâncias sociais, criadas pelas consideráveis diferenças de renda e de acesso à educação.
Quando o jogador de futebol Ronaldo Fenômeno disse, durante uma entrevista a jornalistas, que é branco, ele estava coberto de razão, de acordo com Maria Lúcia: "Essa associação perversa da cor e da condição social resulta na desatenção à cor de quem ‘venceu na vida’ ". Segundo a professora, Ronaldo está falando a língua da sociedade brasileira, na qual negro é pobre; se deixou de ser pobre, deixou de ser negro.
Há muitos exemplos desse tipo, lembra o artista plástico e fundador do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo. Pessoas que conhecemos pelas lições escolares ou como nomes de ruas tiveram sua cor apagada pelos historiadores, embora enquanto viveram não tenham renegado suas origens. "Teodoro Sampaio, Cruz e Souza, Luís Gama, Juliano Moreira, Paula Brito, Carlos Gomes, todos descendentes de negros, viraram personagens nacionais sem cor." O "branqueamento" atingiu até as fotografias desses nomes ilustres.
No início do século 20 também se "branqueavam" literalmente os jogadores de futebol. Os craques eram obrigados a usar pó-de-arroz porque os times só admitiam brancos. Daí persistir o apelido de "pó-de-arroz" dado a alguns times.
Na periferia das lições aprendidas nas escolas estão outros episódios que tentaram forçar o "branqueamento" da população. No livro Uma História não Contada - Negro, Racismo e Branqueamento em São Paulo no Pós-Abolição, o doutor em história pela USP Petrônio Domingues sustenta a tese de que a imigração européia maciça foi calculada pela elite paulista para que os negros não ocupassem espaço como operários na indústria emergente.
Em pleno século 20, apesar de existir uma pequena, porém respeitável, classe trabalhadora negra especializada, formada por artesãos sapateiros, escultores, ourives, fundidores, em São Paulo o negro era impedido de entrar em hotéis, bares, cinemas, lojas e teatros. Até os anos 1950, as religiões afro-brasileiras eram perseguidas em todo o país, os templos destruídos.
Ainda hoje há denúncias de negros impedidos de entrar pela porta da frente ou ocupar o elevador social em alguns prédios. A diferença é que, atualmente, a discriminação configura crime.
Não é à toa que mestiços reneguem a gota de sangue africana. A vergonha de ser negro é fruto de um estigma colocado sobre a população e de uma estratégia de sobrevivência social. É difícil exigir que, vitimizadas nas relações sociais, políticas e econômicas, as pessoas construam um senso de auto-estima ou de autoconsciência.
O "fascínio da brancura" igualmente contaminou a literatura. A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, e O Mulato, de Aluísio de Azevedo, provam que os escritores vacilavam diante das complexidades raciais. Essa ambigüidade fez Guimarães afirmar em outro texto: "No Brasil, ninguém pode gabar-se de que entre seus avós não haja quem não tenha puxado flecha ou tocado marimba".
Mas quem é negro no Brasil? O Censo 2000 registra que os brasileiros se auto-identificaram como: pardos (39%) e pretos (6%). Os pardos são produto do racismo do século 19, que assim rotulava a miscigenação entre as raças branca e negra. A genética moderna nega a existência de raças humanas e atesta que quase 90% da população brasileira tem significativa ancestralidade africana.
Percorrendo essas dualidades, o ex-ministro da Cultura Francisco Weffort resumiu, em texto publicado no catálogo da exposição comemorativa da Data Nacional da Consciência Negra, em 20 de novembro de 2001, o que está nas entrelinhas da nossa história: "Nossas confusões em torno da questão do negro estão na base das nossas confusões sobre a nossa própria identidade como povo".
Brasileiro de corpo e alma
Todas as imagens que revelam essas ambigüidades moram no Museu Afro Brasil. Mais de 2 mil obras - esculturas, pinturas, fotografias, documentos, livros, vídeos, instalações, artesanato, tecidos, roupas e adornos - estão expostas num dos locais mais nobres do país: o Pavilhão Manoel da Nóbrega, projetado por Oscar Niemeyer no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.
As culturas africana, indígena e européia, impregnadas nas peças de arte, de religiosidade, de festa e de tortura, mostram aspectos importantes da mestiçagem brasileira. Mais de 500 anos de história dialogam com os visitantes. Dialogam porque não são apenas obras para ver, é possível igualmente escutar, como as vozes do navio negreiro.
Inaugurado em novembro de 2004, o museu é principalmente resultado do esforço de seu criador e diretor, Emanoel Araujo, escultor, professor de arte da Universidade de Nova York, filho de Ogum, ex-diretor da Pinacoteca do Estado e ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo.
O acervo foi coletado com obstinação durante mais de 20 anos, desde que o pesquisador se impôs essa missão ética e estética, "amplamente sentimental", de acordo com ele próprio, surgida a partir de três experiências pessoais.
A primeira foi uma visita à Nigéria, onde conheceu os "agudás", descendentes de escravos brasileiros que voltaram à África. A segunda, a convivência com o etnólogo Waldeloir Rego, profundo conhecedor da cultura afro-brasileira.
E, por último, a raiva que sentiu quando viu de perto as diferenças entre a população negra norte-americana e a brasileira, durante sua permanência de dois anos como professor convidado na Universidade de Nova York. "Esta foi uma experiência muito doída para mim. Eu estava convivendo com uma sociedade na qual, apesar de todo o preconceito, os negros alcançaram uma escala social muito importante. O Brasil, sob esse aspecto, andou para trás. A angústia tomou conta de mim", relata.
Munido desse misto de raiva e angústia, antes de planejar e executar o museu, o curador realizou algumas exposições temáticas. Entre elas, A Mão Afro-Brasileira (1988); Os Herdeiros da Noite (1995); Arte e Religiosidade no Brasil - Heranças Africanas (1997); Negro de Corpo e Alma (integrante da Mostra do Redescobrimento - Brasil 500 Anos, em 2000); Para Nunca Esquecer - Negras Memórias / Memórias de Negros (2001).
Esses e outros temas roteirizam o Afro Brasil como fios condutores. A equipe de educadores se dedica, por exemplo, a um curso para professores do ensino fundamental e médio sobre História da África e Cultura Afro-Brasileira, agora uma exigência curricular. Na proposta pedagógica estão sendo implementadas também as visitas monitoradas com públicos diversos: crianças, adultos e idosos. É importante ressaltar que, diferentemente de outros congêneres, a visita ali é gratuita.
Segundo a professora Maria Lúcia, um dos propósitos inéditos já se revela no nome. "Não é afro-brasileiro; é afro Brasil porque não fala apenas do negro ou do afro-brasileiro, fala do Brasil para os brasileiros com o olhar do negro."
Reproduzindo o imaginário nacional, o projeto destaca as raízes, a mestiçagem e o sincretismo, bens adquiridos que não devem ser descartados, sem esconder a violência sobre a qual eles se produziram. Há desde peças criadas na África, passando pelo período colonial brasileiro, até obras de arte contemporânea.
A implantação do museu recebeu patrocínio da Petrobras. A meta, agora, é garantir sua consolidação. Segundo seu diretor, a instituição é jovem e "ainda não está inserida numa política municipal. Espero que a sociedade brasileira perceba sua importância". Mas, com menos de um ano de existência, o Museu Afro Brasil passa por sérias dificuldades financeiras.
Massa crítica e empreendedorismo
Cultura e educação fazem parte da solução para muitos problemas brasileiros, inclusive para a ascensão social da população discriminada e excluída. Pensando dessa forma, um grupo nascido dentro da Escola de Sociologia e Política de São Paulo criou a Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sócio-Cultural (Afrobras), em 1998. Essa organização não-governamental (ONG), sediada em São Paulo, pretende contribuir para a inclusão dos negros brasileiros pela via do ensino formal.
A plataforma da Afrobras se dirige ao ensino superior para criar uma massa crítica de afro-descendentes em posição de construir seu próprio destino. Há basicamente quatro projetos em execução: a Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares, a primeira faculdade para negros na América Latina; convênios com outras universidades para a concessão de bolsas de estudo; a preparação de estudantes para o vestibular; e a revista bimestral "Afirmativa Plural".
"No início, fizemos um curso preparatório para o vestibular voltado para as faculdades públicas. Não deu certo, o fosso era muito grande entre a formação dos estudantes e a exigência dessas instituições", relata José Vicente, presidente da ONG. O caminho, então, foi preparar os jovens para ingressar em outros cursos superiores privados, também negociando bolsas de estudo para manter as matrículas.
Como a preocupação é permitir o acesso à educação superior aos alunos provenientes de classe econômica desfavorecida, as mensalidades são reduzidas no curso para o vestibular e na Universidade da Cidadania. A taxa mensal do cursinho é de R$ 50 e a da faculdade, de R$ 220. Outra estratégia é destinar a maioria dos postos de professores do cursinho para os estudantes universitários bolsistas.
Convênios com empresas e órgãos governamentais ajudam a manter as salas de aula, adquirir equipamentos e pagar professores. "Não temos um braço religioso, não temos um braço sindical nem um braço internacional. O que temos são parcerias pontuais", explica José Vicente.
A Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares é uma alternativa à polêmica política de cotas no ensino superior. Fundada em 2003, exibe outro pioneirismo: é a primeira, no Brasil, que tem 40% de seu corpo docente formado por negros. E, na composição das vagas, 50% são destinadas a alunos negros. Os atuais 600 matriculados contam ainda com assistência psicológica, um programa de estágio e conteúdos voltados para questões culturais afro-brasileiras.
O foco é a área de administração, em quatro especializações: administração geral, administração financeira, comércio exterior, serviços e comércio eletrônico. Segundo José Vicente, os cursos foram planejados para que "os negros possam ser contaminados com o germe do empreendedorismo. Precisam usar seu talento, seus dons para gerir negócios, montar suas empresas".
Até hoje o negro foi usado como produto. Vende o corpo, a cultura, e não consegue administrar esses seus bens. "Precisamos ter condições de intermediar e interferir nesse mercado para haver uma mobilidade social mais sustentável", diz o presidente da Afrobras.
A ONG, portanto, investe na capacitação dos afro-descendentes para que participem do jogo de forças sociais, econômicas e políticas. Ou, segundo as palavras de José Vicente, "para tirar o negro do porão, onde ele foi colocado também pelos anos de governos militares, por toda desmobilização social neste país".
Alforria, ainda que tardia
As demandas da sociedade civil das últimas décadas forçaram ressonâncias no poder público. Os projetos governamentais tiveram início a partir do Plano Nacional dos Direitos Humanos e do Programa de Ações Afirmativas, estabelecidos durante o governo Fernando Henrique Cardoso. As ações se espalhavam por nove ministérios sem que houvesse o gerenciamento de um órgão específico.
Isso mudou em 2003. A articulação passou a ser de responsabilidade da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Criada no governo Lula, com status de ministério, a secretaria é coordenada pela ministra Matilde Ribeiro. Alguns projetos em execução referem-se a uma campanha para combater a anemia falciforme (que atinge a população afro-descendente), à luta contra os crimes raciais e à demarcação das terras pertencentes aos remanescentes de quilombos.
Um outro elemento a ser conquistado, na área jurídica, é o Estatuto da Igualdade Racial, em tramitação no Congresso Nacional. Para o senador Paulo Paim (PT/RS), o documento "é a carta de alforria que os afro-brasileiros não receberam quando da abolição da escravatura". O tal terceiro artigo da Lei Áurea que não foi escrito.
No entanto, se a missão da Seppir, por definição, deve atender à demanda dos grupos discriminados do ponto de vista racial e étnico, com ênfase na população negra, o desafio é enorme. Não só pela magnitude dos problemas a ser enfrentados, mas porque reverter essa situação não é tarefa que se realize por decreto.
Além disso, a ênfase nos afro-descendentes, mesmo que sejam a maioria da população brasileira, faz surgir justas demandas dos grupos indígenas, dos ciganos e outros, conforme aconteceu durante a 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, realizada em Brasília, de 30 de junho a 2 de julho deste ano.
De qualquer forma, assistimos a um grande avanço. O debate democrático foi iniciado, sabendo-se que a diversidade brasileira exige trilhar caminhos ainda desconhecidos no país. Exige também, como diz a letra do hip hop Guerreiro Guerreira, de Hélião, altas doses "de responsabilidade, de verdade. Correr pelo certo e não trair a nossa fé. E ter humildade. Para qualquer eventualidade. Para estar à vontade. Para o que der e vier".
Origens do preconceito
Para entender o que é o racismo e o preconceito precisamos visitar as idéias que funcionam como piloto automático. Essas idéias, a partir das quais criamos o mundo que habitamos, são transmitidas pela família, pela religião, pela escola e por outras inserções culturais, transformando-se em verdades incontestáveis, mesmo que a experiência individual prove o contrário.
Saber identificar essa carga de ancoragem muito profunda, que alguns cientistas sociais chamam de "representações", já é um bom começo. As raízes do racismo têm, pelo menos, três origens inter-relacionadas: antropológica, histórica e religiosa, explica a professora Maria Lúcia Montes, da USP.
A humanidade é etnocêntrica, ou seja, cada grupo toma suas características culturais como certas e como medida para avaliar os demais. Há sempre dois processos complementares: o da identidade e o da alteridade. O outro (alter), o diferente é sempre visto com suspeita.
Por conta disso, a humanidade viveu a idéia - que ainda sobrevive em nós - de que os outros são bárbaros, ameaçadores e fascinantes ao mesmo tempo. Porém, o pré-conceito que permaneceu com mais força em nosso piloto automático vem do século 19, quando a ciência estabeleceu que os povos das Áfricas e das Américas, por exemplo, eram primitivos. E os primitivos teriam de evoluir até chegar a ser como os ocidentais civilizados.
É com esse ranço de uma ciência equivocada que ainda lidamos. Muitas impressões advindas de séculos anteriores ainda povoam nossas representações do mundo. Somado a essa imagem, há o fato histórico concreto de que, no Brasil, negro foi sinônimo de escravidão.
Associações perversas ainda encontram aporte em interpretações religiosas. Negros eram os mouros infiéis (muçulmanos), contra os quais lutaram os cruzados cristãos. Igualmente havia a imagem negativa dos "filhos de Cam" (ou Cã). Julgava-se que os africanos seriam descendentes de Cam, um dos três filhos de Noé. Cam seria maldito por ter visto seu pai nu, além de tomar como esposa uma descendente de Caim. Atualmente, as religiões neo-pentecostais atacam os cultos afro-brasileiros, recriando estigmas católicos como o diabo e o inferno.