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Abismo social

O Brasil é vice-líder mundial de concentração de renda

OSWALDO RIBAS


Foto: Célia Thomé

A sociedade brasileira torna-se, a cada dia, uma candidata mais forte a entrar no livro dos recordes como a mais desigual e contrastante do século 21. Nenhum outro país do mundo ostenta a capacidade de produzir, num único ano, aproximadamente 7 mil supermilionários e, ao mesmo tempo, ver a massa de excluídos do sistema econômico avançar para cerca de um terço da população.

Uma pesquisa do banco de investimentos norte-americano Merrill Lynch, realizada em parceria com a empresa de serviços financeiros Capgemini e divulgada no primeiro semestre deste ano, descobriu um filão maravilhoso para seus negócios, exatamente no Brasil. Só em 2004, o contingente de super-ricos no país cresceu à velocidade de 7%, saltando para aproximadamente 100 mil indivíduos, pessoas físicas, com recursos aplicados no mercado financeiro superiores a US$ 1 milhão. Enquanto isso, outra fonte internacional, desta vez da Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), apurava que, nesse mesmo período, o coeficiente de desigualdade social no Brasil, no que diz respeito à distribuição de renda, numa escala que vai de zero a 1, registrava o placar bem pouco confortável de 0,6 para o time da casa. Ou seja, no mundo todo, segundo a ONU, a sociedade brasileira, em termos de concentração de renda, é vice-líder inconteste. Só perde mesmo para a de Serra Leoa, na África subsaariana, país classificado entre os cinco mais pobres do globo.

Embora o Brasil seja apenas mais um entre as dezenas de nações com amplo contingente populacional pobre ou remediado, o que diferencia o país dos demais é o fato de ele não só ser extremamente rico em recursos naturais, mas também ter um considerável poder de geração de riqueza. "O problema é que vivemos sob um sistema que distribui essa renda de forma absolutamente desequilibrada", avalia o economista Ademir Figueiredo, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese). "A desigualdade brasileira é estrutural e histórica", acrescenta.

No Relatório da Riqueza Mundial, da Merrill Lynch, no entanto, o Brasil é avaliado pelo seu volume de milionários, independentemente da massa de pobres, e vem se tornando um atrativo para Wall Street. Destinada a rastrear o movimento de capitais de 8,3 milhões de super-ricos em todo o mundo para sua divisão de administração de fortunas, o private bank, a pesquisa revelou que 98 mil deles têm domicílio no Brasil (o que não quer dizer que seus investimentos estejam também dentro das fronteiras brasileiras).

"A taxa de crescimento do número de indivíduos de alta riqueza líquida no Brasil, de 7,1% em 2004, acompanhou a elevação mundial no período, que ficou em 7,3%, e atribuímos a dois fatores principais essa extraordinária criação de riqueza: expansão econômica e capitalização de mercado", afirma James Gorman, vice-presidente da Merrill Lynch & Co. e diretor da divisão de Aquisições Corporativas, Estratégia e Pesquisa. "Esses dois fatores combinados", acrescenta o executivo, "levaram a pesquisa a apurar o maior crescimento em volume de riqueza líquida (excluído, portanto, o patrimônio em imóveis) observado nos últimos anos."

O estudo destaca que as economias emergentes - Brasil, Rússia, Índia e China, conhecidas pela sigla Bric - continuaram a se expandir como "força econômica, criando riqueza nesse processo". Hoje, respondem por 41% do total da população mundial e 8% do Produto Interno Bruto (PIB) de todo o planeta. "Essas economias são importantes devido ao seu tamanho e ao acelerado ritmo de crescimento", diz a pesquisa. Para a Merrill Lynch, o PIB desses países emergentes superará o do G-7 - grupo dos mais ricos - até 2040 (excluídos Estados Unidos e Japão). "Essas nações têm enorme área geográfica e são ricas em recursos, com um crescimento alimentado por vastos fluxos de investimento estrangeiro. E, à medida que perseguem uma ambiciosa agenda de reformas, estão rapidamente se transformando em potências econômicas regionais", diz o estudo.

Segundo Petrina Dolby, vice-presidente da área de Gestão de Riqueza Global da consultoria Capgemini, o Brasil, em mais um indicador de sua pujança econômica, foi o maior responsável pelo avanço dos milionários na América Latina. No continente, eles cresceram 6,3% em 2004, bem acima do 1,3% registrado em 2003. A riqueza acumulada pelos milionários, ao mesmo tempo, apresentou elevação de 7,9% na região, o dobro do ritmo registrado na Europa (3,7%). "Assim como já havia sido evidenciado, houve uma grande concentração de riqueza e foram as políticas monetária e fiscal que levaram à expansão do número de milionários brasileiros", avalia Dolby. "Os três pilares do seu programa econômico - taxa de câmbio flutuante, regime de metas de inflação e austera política fiscal - permitiram que o Brasil superasse metas fiscais e reduzisse o endividamento do governo em 2004", destaca o estudo, realizado em 68 países responsáveis por 98% da renda mundial e 99% da capitalização de mercado global.

De acordo com pesquisas de outras duas fontes internacionais, as revistas norte-americanas "Fortune" e "Forbes", o Brasil também tem seus representantes no seletíssimo clube de bilionários em escala mundial, integrado por 500 pessoas físicas. Entre os mais ricos, os destaques vão para o banqueiro Aloysio de Andrade Faria, ex-dono do Banco Real e atual proprietário do Banco Alfa, e os empresários Jorge Paulo Lemann e Antônio Ermírio de Moraes, respectivamente do setor da indústria de bebidas e da construção civil, todos com um patrimônio superior a US$ 2 bilhões.

Transferência de renda às avessas

Para os especialistas do mercado financeiro, as constatações das fontes internacionais não são exatamente uma novidade. Conforme estudos de grandes consultorias nacionais, como a Tendências, de São Paulo, reside nas políticas monetária e fiscal adotadas pela equipe econômica brasileira a explicação para o fenômeno financeiro que está sendo chamado, ironicamente, de "maior programa de transferência de renda do governo federal", ou seja, o pagamento, a cada ano, de cerca de R$ 100 bilhões para cerca de 7 milhões de pessoas que estão entre as mais ricas do Brasil e aplicam em títulos públicos.

Esses dados, certamente, estão sendo colocados para servir de contraponto aos programas sociais do Estado, cujos recursos destinados ao Bolsa Família, a maior e mais ampla iniciativa de transferência de renda em curso no país, por exemplo, variam em torno de R$ 5 bilhões anuais e atendem a 6,7 milhões de famílias, mais de 50 milhões de pessoas. Na outra ponta, a dos ricos com aplicações em papéis do governo, a representatividade é de cerca de 4% da população do país.

"Os gastos com juros da dívida interna, pagos para todos aqueles que investem em títulos públicos, constituem o núcleo do crescente aprofundamento do abismo social no Brasil", comenta André Campos, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento. Citando fontes do mercado financeiro, ele enfatiza que o fantástico ganho da aplicação é resultado de seu atrelamento à tabela Selic, a taxa básica de juros da economia brasileira, considerada, em termos reais, isto é, descontada a inflação, a mais alta do mundo.

Segundo dados do Tesouro Nacional e do Banco Central, 92% dos títulos em circulação no mercado estão nas carteiras de bancos e de fundos de investimento. De acordo com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a entidade que monitora e fiscaliza todas as operações financeiras e seus agentes, os fundos de investimento, como os de renda fixa e de ações, contam com 6,75 milhões de cotistas.

Chamados de rendeiros, por obter ganhos com renda fixa, são eles os credores do governo, que tem de canalizar recursos para o pagamento dos juros da sua dívida, estimada em R$ 830 bilhões, com essa fatia da população. Daí, avaliam os economistas, sai perdendo o investimento produtivo, justamente o que cria riqueza e empregos. Nesse cenário, os pobres perdem três vezes: uma porque não têm aplicações financeiras; outra porque empregos novos e salários melhores ficam ainda mais distantes e, finalmente, porque, sem recursos, o governo acaba oferecendo minguadas políticas públicas, insuficientes para resgatar a dívida social.

Economistas como André Campos avaliam que a desigualdade causada pelos juros, por si só astronômica, vem acompanhada de outros agravantes, que aprofundam ainda mais o abismo social, como a estrutura tributária. A carga de tributos, no Brasil, é concentrada de tal forma em impostos indiretos que, perversamente, acaba pesando muito mais no bolso da população de baixa renda. "Ou seja, o governo pune o pobre na arrecadação e transfere o dinheiro para os ricos", resume o economista, ressaltando que quem aplica em títulos públicos já possui elevado grau de poupança, ao passo que a massa apenas sobrevive.

Dados da última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2002-03, revelam que, entre os 10% mais ricos da população (com renda individual superior a R$ 957,96 por mês), os empregados têm seus rendimentos pessoais abocanhados por tributos diretos da ordem de 16%, enquanto os empregadores, em 8%. Entre os 10% mais pobres (com renda mensal per capita de até R$ 40,89), os trabalhadores pagam 4%, e os patrões cerca de 2%.

Segundo o IBGE, na pesquisa, que conta com o apoio do Ipea e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o detalhamento mostra que 9,5% da renda total das pessoas físicas no país é destinada ao pagamento de tributos diretos como Imposto de Renda (IR) da pessoa física, Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e contribuições previdenciárias. O estudo considera sempre a tributação direta sobre as pessoas físicas, separando as famílias pela espécie de rendimento predominante e pelas faixas de renda per capita. No caso dos empregadores, não estão, contudo, computados os tributos pagos pela pessoa jurídica.

Pior, no entanto, que a tributação direta, na maior parte das vezes feita já na origem, no contracheque mensal, a população pobre brasileira, de acordo com o estudo, sofre de uma drenagem de recursos ainda mais severa: a carga da tributação indireta, isto é, aquela que é repassada ao cidadão no preço dos bens de consumo. Também técnico e especialista do Ipea, Fernando Gaiger Silveira destaca que, se considerado o fato de que a tributação indireta continua punindo mais as famílias dos estratos inferiores de renda, definidas como as que gastam praticamente tudo o que recebem em bens de consumo, o grau de progressividade da tributação direta - alíquotas maiores do IR para quem ganha mais - é insuficiente para alcançar a eqüidade tributária.

Segundo o pesquisador, países como a Suécia, por exemplo, têm níveis menores de progressividade na tributação direta do que o Brasil, mas o resultado final não é tão preocupante, porque a menor desigualdade de renda e o maior peso dos tributos diretos na arrecadação total contribuem para corrigir essa distorção. "A grande injustiça", diz ele, "é que, de um lado, a pessoa que produz, como trabalhadora ou empresária, tem altíssima carga tributária; já quem vive da especulação financeira, diretamente do seu capital, está em um paraíso fiscal."

Números do "Radar Social", uma radiografia da sociedade brasileira produzida pelo Ipea, mostram que cerca de 1% dos brasileiros mais ricos (1,7 milhão de pessoas) detêm uma renda equivalente à dos 50% mais pobres (86,5 milhões). Esse dado, segundo a instituição, ilustra bem a situação da desigualdade social no país.

Como se ainda não bastasse, num ranking de 15 países ricos e emergentes, o Brasil é o que mais cobra impostos no setor de alimentos. A média da carga tributária nacional embutida nos preços desses produtos atinge 18,35% - se considerados ICMS, PIS e Cofins, que correspondem a quase 70% do peso dos tributos. Segundo especialistas do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), os impostos elevam os preços dos alimentos, afetando diretamente o bolso das famílias. Na vizinha Argentina, essa taxa é alta, mas menor (17,44%). Na comparação com os Estados Unidos, o descompasso é ainda maior: a carga brasileira é quase o dobro da norte-americana (9,75%).

Pelas contas do instituto, se considerados todos os tributos do setor, incluindo IR, contribuição social, IPI, INSS e CPMF, a carga tributária do Brasil é ainda mais pesada, chegando a 26,52%. E os menos favorecidos são os mais onerados, já que a política tributária estabelece que ricos e pobres paguem o mesmo imposto para se alimentar. O macarrão, por exemplo, tem uma carga de 35,2%, em média - quem quiser comprá-lo, não importa se faz parte do grupo com US$ 1 milhão investidos ou está na lista do Bolsa Família, pagará a mesma coisa, o que estimula a distorção social.

Instrumentos da eqüidade

Para avançar no combate à desigualdade, todos os especialistas, incluindo Ademir Figueiredo, do Dieese, afirmam que o Brasil precisa adotar um modelo de desenvolvimento que viabilize inserir a população no mercado de trabalho e alcançar um nível sustentável de crescimento econômico, colocando ao mesmo tempo em prática um conjunto de políticas públicas para atacar a atual situação de desequilíbrio. Que políticas seriam essas? Entre as sugestões dominantes estão a aceleração da reforma agrária, a ampliação da rede de proteção social, a implementação de programas de transferência de renda, a elevação dos padrões de educação e o combate à discriminação racial e sexual.

Durante o atual governo, o "Radar Social" constatou alguns avanços, como a diminuição do contingente de pobres no país, apontando como causas dessa redução a estabilização econômica, a ampliação de políticas sociais e o aumento do valor real do salário mínimo. Segundo o relatório, em que pese o ainda elevado número de pobres, é possível afirmar que há uma tendência de queda, embora persistam flagrantes disparidades regionais. Dos oficiais 53,9 milhões de pobres do Brasil, Alagoas é o estado com o maior índice de brasileiros que vivem nessa situação (62,3%). No outro extremo está Santa Catarina, com cerca de 12%.

Foram consideradas pobres as pessoas que vivem com renda domiciliar per capita de até meio salário mínimo. E como muito pobres ou indigentes aquelas que têm renda de até um quarto do salário mínimo, categoria em que estão enquadrados cerca de 21,9 milhões de brasileiros. O estudo do Ipea também comprovou que a pobreza é maior entre a população negra. Em 2003, cerca de 44,1% dos negros viviam com renda inferior a meio salário mínimo. Entre os brancos, esse percentual foi de 20,5%.

Sonho possível

Mesmo estrutural e histórica, a desigualdade social, dependendo de vontade política, pode ser revertida a níveis mínimos aceitáveis do ponto de vista humanitário. Quem defende essa idéia é o economista nascido no Canadá e radicado nos Estados Unidos John Kenneth Galbraith. Em sua obra A Sociedade Justa, ele diz ser perfeitamente possível que todos os cidadãos desfrutem de liberdade pessoal, de bem-estar básico, de igualdade racial e étnica, da oportunidade de uma vida gratificante. Embora pareçam utópicas, Galbraith considera que essas são metas plausíveis, mesmo sem descartar características humanas, que deverão ser respeitadas nessa sociedade, como a motivação pela busca de dinheiro que impele os homens de formas diferenciadas. O que não pode ser aceito como fato consumado é que posições privilegiadas sejam sempre justificadas por políticas, ideologias e doutrinas econômicas e sociais que levam em conta apenas seus interesses, deixando de lado medidas para o bem-estar social geral, sob a alegação de que são ações politicamente inviáveis. A distribuição de renda também deriva da distribuição do poder, ao passo que este muitas vezes pode ser fruto da distribuição da renda. Como resposta a isso, deve haver uma proteção pública dos que não têm poder. Os trabalhadores precisam ter o direito de se associar e afirmar sua autoridade, por intermédio de sindicatos. O Estado deve fornecer provisões, como o seguro-desemprego, seguro-saúde e um salário mínimo socialmente digno.

 

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